A arte é certamente um dos maiores diferenciais humanos, sendo praticada desde a pré-história. Expressões como pintura, música e literatura acompanharam o desenvolvimento social e cultural de diversas civilizações e, com o passar do tempo, algumas ganharam um forte traço nacional ou regional. Com o avanço da tecnologia, novas expressões artísticas surgem e ganham espaço, como o cinema, que já é amplamente aceito como arte e ganhou até o termo “sétima arte”. A partir da segunda metade do século XX, é o videogame que chega ao mercado: antes simplesmente um passatempo, hoje já pode ser entendido como expressão artística.
Direção de arte, trilhas sonoras, ambientes, personagens e narrativas marcantes trabalhados à sua maneira são o que transformam os videogames em elementos artísticos únicos. Em entrevista ao Sala 33, Gilson Schwartz, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e participante do movimento “Games for Change”, e Heidy Motta, gerente de operações dos estúdios Miniboss e EXOK Games, mostram suas visões sobre o universo dos jogos.
“O contato com ‘diversões eletrônicas’ vem da minha adolescência. Na época eram os ‘fliperamas’ e logo depois surgiu o ‘Pong’, o pioneiro dos jogos que podiam ser jogados na televisão. Tive o privilégio de testemunhar e vivenciar essas formas muito primitivas de videogames”, conta Gilson. Já Heidy descobriu esse universo enquanto ainda “era criança com os consoles da época – SNES, Nintendo 64, PS1 e PS2 –, mas sentia que a sociedade pressionava com o estereótipo de que videogame é coisa de menino”.
Do traço ao quase retrato
Ao falar em arte e jogos, logo vem à mente os jogos “artísticos”, isto é, videogames com design de nível muito bem trabalhado voltados à expressividade artística, como ocorre em Journey e nas duologias Ori e Unravel. Os gráficos voltados a um videogame de cores, aliados a uma maior interpretação do jogador, os transformam em uma forma de arte visual em movimento. Nesse contexto, destaca-se Celeste, jogo indie que contou com a participação de brasileiros na produção e, sem grandes investimentos de produtoras consagradas, venceu a categoria de melhor videogame independente e foi indicado na categoria de melhor jogo do ano de 2018. Heidy fez parte da produção do jogo e afirma: “Foi simplesmente inesquecível! Um orgulho para o nosso pequeno time!”.
!["Celeste", premiado jogo do qual Heidy e outros brasileiros participaram da produção [Imagem: Divulgação/Matt Make Games]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/12/unnamed-1-2.jpg)
Entre os fatores que atraem atores renomados está o aprofundamento das histórias dos jogos. Narrativas cada vez mais trabalhadas e tramas elaboradas chamam a atenção para novos públicos. Alguns jogos chegam a abordar questões discutidas na sociedade e tratar de assuntos como política e filosofia. Por exemplo, a trilogia Bioshock aborda temas como a filosofia objetivista nos dois primeiros jogos e o fanatismo religioso no terceiro, tudo isso em meio a uma cidade submersa, ou em uma cidade voadora, ambas trabalhadas de forma detalhada. Outra franquia de destaque nesse sentido é a saga Metal Gear, de Hideo Kojima. Nela são discutidas, com profundidade, engenharia genética, inteligência artificial, lealdade, guerras e censura, com uma jogabilidade furtiva característica da série.
Detalhes de outros tempos e lugares
Além da questão gráfica e narrativa, os videogames exploram bastante a ambientação, pois, como o jogador possui a liberdade de controlar personagens pelo cenário, é necessário um ambiente imersivo que dialogue com o jogador. As séries Fallout, The Last of Us e outros jogos pós-apocalípticos não só oferecem uma ideia do que o mundo pode virar em um cenário extremo, mas também levam a refletir sobre armas nucleares e controle de doenças, por exemplo.
!["The Last of Us Part II", videogame com narrativa e ambientação memoráveis, foi eleito jogo do ano de 2020 [Imagem: Divulgação/Sony]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/12/unnamed-2-2.jpg)
![Representação da natureza do velho oeste americano em Red Dead Redemption II [Imagem: Divulgação/Rockstar Games]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/12/unnamed-3-1.jpg)
A arte da escolha, da escuta e da integração
Aliado a esses elementos, um diferencial dos jogos enquanto arte é a possibilidade de controle, ou seja, cada pessoa pode adotar escolhas ou modos de jogo que tornam a experiência o mais pessoal possível. Muitos jogos permitem que o jogador possa escolher como avançar em narrativas lineares, ou explorar o cenário em busca de novas histórias em um mundo aberto. O gênero que melhor representa esse poder de escolha é o drama interativo, cuja proposta é a de que as escolhas dos jogadores afetem diretamente o rumo da história, o que leva a finais diferentes. Esse gênero de jogo já chegou a ganhar até o prêmio de jogo do ano em 2012, com The Walking Dead.
Outro destaque artístico são as trilhas sonoras que acompanham os jogos desde os consoles mais antigos. A música tema de Super Mario é conhecida até por pessoas que nunca jogaram videogame e diversas outras trilhas sonoras mantêm-se vivas na memória dos jogadores. Mas, além do som, o silêncio também é muito explorado nos jogos, como por exemplo o trabalho de Fumito Ueda em sua trilogia, principalmente em Shadow of the Colossus, já que ao cavalgar ou caminhar na Terra Proibida o sentimento de solidão se amplifica na ausência do som. A falta de som também é muito explorada em jogos de terror, pois tende a deixar o jogador mais concentrado ou mais tenso, o que leva ao aumento da imersão e do medo.
![Wander e Agro, solitários em meio à natureza da Terra Proibida no jogo Shadow of the Colossus. [Imagem: Divulgação/Sony]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/12/unnamed-4.jpg)
Mas dá para chamar de arte?
A questão do que é arte dificilmente terá fim, mas para Pablo Picasso, por exemplo, “a arte limpa da nossa alma toda poeira do dia a dia”. O videogame cumpre essa função há muito tempo, seja pela emoção transmitida pela trama de jogos como The Last of Us, Life is Strange ou Red Dead Redemption; pela representação e resgate cultural da história da humanidade em jogos como Assassin ‘s Creed, God of War, Okami, ou ainda Uncharted, que preserva a memória de lendárias cidades perdidas; e até mesmo por temas e críticas sociais como em BioShock, Metal Gear, Deus Ex e a polêmica série Grand Theft Auto, que satiriza a sociedade estadunidense. A lista de jogos desse formato é extensa, e cada qual tem sua particularidade, mas todos possuem a capacidade de nos levar a universos, narrativas e personagens únicos.
Desse modo, Gilson ressalta que os jogos podem ser usados para educação – alguns países já usam Minecraft, por exemplo – pois “a educação é um desafio para a vida toda e pode acontecer sob inúmeros modelos de aprendizagem, ensino, memória, voluntariado e empreendedorismo. Seja em sala de aula, seja como atividade no extra-turno, seja no ensino formal, seja na arte coletiva ou pública, a dimensão lúdica é o que literalmente dá graça a qualquer processo de ensino-aprendizagem”. Além disso, Gilson acredita que os jogos podem ser um caminho possível para contra-atacar tendências negacionistas, xenofóbicas, racistas, homofóbicas, fundamentalistas e elitistas de produzir arte, cultura, informação e comunicação. “É um caminho longo que nem sempre segue em linha reta, sofre inúmeros retrocessos, mas ainda assim continua como única garantia de nossa humanidade e da nossa vocação para a humanização e mesmo espiritualização da vida na Terra”, comenta.
Entretanto, para construção de um videogame é necessária qualificação técnica-informacional da equipe que o produzirá, o que impõe desafios principalmente em países em desenvolvimento, devido à baixa inclusão digital e à grande desigualdade social, que impedem muitas pessoas de ter acesso a atividades de lazer e à tecnologia. Gilson pensa que é possível superar esses obstáculos “distribuindo renda, ampliando as políticas públicas de inclusão digital, promovendo a capacitação em setores intensivos em tecnologias digitais e buscando ultrapassar os preconceitos contra o tratamento lúdico de questões sérias.” Outro obstáculo a ser superado é o machismo, como Heidy ressalta: “As mulheres têm que ficar provando que merecem estar lá, mas as coisas estão melhorando e vão melhorar ainda mais quando as pessoas entenderem que o propósito dos jogos é de entreter, se divertir, incluir e viver bem”.
Ainda que envoltos por preconceitos, estereótipos e desafios, os jogos vêm ganhando cada vez mais espaço cultural, social e econômico, com o aumento do número de jogadores e vendas de consoles. Diante do seu potencial estético e sensível, quem sabe no futuro eles sejam, de fato, reconhecidos como arte.