Como um crime aos direitos humanos se torna um crime social
Por Luccas Nunes (luccas.nunes@usp.br)
A censura morreu?
Imagine uma situação em que você está completamente encurralado pela lei que deveria protegê-lo. Você não pode exercer sua profissão; não pode visitar seus parentes e amigos; não pode pisar em seu solo natal; vive com medo e não tem direito à voz. Essa é a situação de milhares de jornalistas e profissionais da comunicação espalhados — e muitas vezes refugiados — ao redor do mundo. Eles vivem na maior prisão de comunicadores do mundo: a censura.
Segundo pesquisa realizada pela ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF), 74 jornalistas foram mortos no exercício de sua profissão no ano de 2016, contra 101 em 2015. Ainda segundo a RSF, essa queda no número de mortes não é exatamente encorajadora: muitos jornalistas abandonaram o focos de tensão e censura, como Síria e Turquia, deixando um vazio informacional nessas regiões. Essas condições favoreceram o que a ONG chama de “predadores da liberdade de imprensa”, pessoas de grande influência política que decidem por sufocar arbitrariamente veículos de mídia.
Essa realidade de se faz presente de forma acentuada em áreas de conflito ou autoritarismo, mas não deixa de ser presente em áreas afastadas dos grandes holofotes da mídia — na verdade, é lá que ela ocorre, com maior recorrência, de forma impune, ainda que nem sempre de forma letal.
A ARTIGO 19, uma ONG de direitos humanos que busca promover a liberdade de expressão e de acesso à informação, publicou, no último dia 3 de maio, o Relatório Anual de 2016 de Violações à Liberdade de Expressão. Nele, é posto que, no Brasil, as maiores vítimas de agressão contra seu direito de liberdade de expressão são jornalistas e blogueiros, somando 11 casos cada, e sendo políticos os maiores agressores, com 19 suspeitas, seguidos por agentes públicos e pela polícia, com duas e uma suspeita, respectivamente.
A censura para além das terras tupiniquins
No Brasil, a liberdade de expressão foi praticamente erradicada por 21 anos, e aqueles que ousaram opor-se ao governo que lhes oprimia foram perseguidos. De forma análoga, cidadãos de países que hoje vivem sob regimes de exceção têm suas liberdades privadas e vivem a mesma caça às bruxas por se mostrarem contrários àqueles que governam sob o espectro da repressão. Essa é a situação de Kamil Ergin, um jornalista de origem turca que, no alto dos seu 33 anos, cometeu o crime de contestar à ideologia do governo ditatorial do turco Recep Erdogan; sua punição foi a lista negra; seu direito ferido, o de ir e vir.
Ele conta que veio ao Brasil, originalmente, como professor de inglês de um colégio. Devido às aproximações políticas e econômicas entre os dois países, que em 2010 eram vistos como potências regionais e nações emergentes, tornou-se correspondente turco de um grupo de jornalismo que buscava uma releitura da realidade desses países, desconhecidos entre si.
Ele explica que a censura piorou e as medidas do governo turco para com a mídia tornaram-se, em suas palavras, “menos amistosas” após a tentativa de golpe, em 2016: “Na Turquia não existe mais um veículo independente, ou um veículo que aceita jornalistas que não apoiam o governo.” Mas a verdade é que o governo já era autoritário mesmo antes do episódio de 2016, a mudança foi que ele assumiu um caráter mais ditatorial, segundo Kamil.
Após anos de perseguição velada, sanções econômicas e tentativas de fechar o cerco em torno das mídias independentes, em 2015, através de chantagens e ameaças — e ainda antes da tentativa de golpe —, o governo turco conseguiu legitimar seu avanço contra as mídias livres. Taxou-as como terroristas e confiscou grupos de mídia com linhas críticas, impondo a eles a autocensura. As linhas editoriais foram de críticas e livres a resignadas e governistas.
Mas foi só após a tentativa de Golpe de Estado que o verdadeiro terror começou. Primeiro veio a difamação, que havia ocorrido, “e depois começou uma ‘caça às bruxas’, que foi uma declaração do próprio Erdogan”, disse Kamil. Erdogan teria dito ainda que ia “executar essa ‘caça às bruxas’ a quem tivesse alguma ligação com o grupo de mídia Hizmet, um movimento civil na Turquia. Logo depois começaram a perseguição.” Kamil relata que “depois da tentativa de golpe, tudo foi fechado, tudo foi tomado. Não sobrou nada além dos veículos pró-governo.”
“Eu me introduzi como tradutor”
Em março de 2015, ele viajou pela última vez — até o momento — à Turquia com um grupo de jornalistas e teve, durante toda a viagem, um tratamento abusivo que vai contra a liberdade de expressão e o direito à informação. Ainda na fronteira, o grupo teve dificuldades para ingressar no país devido ao panorama de tensão vivenciado por problemas com o Estado Islâmico e com os curdos, cuja análise era o objetivo da viagem.
Apesar da resistência do Estado turco em permitir sua entrada, o grupo foi arrojado em sua tentativa. O cerceamento das liberdades, no entanto, iniciou-se antes mesmo de atravessarem a fronteira. Ao passar em frente ao antigo jornal do grupo que Kamil participava 一 e que havia sido tomado e fechado 一 a polícia os abordou. Kamil relata que, por medo, mentiu sua profissão, a de seus colegas, e a razão de visitar sua terra natal, apresentando-se como tradutor do grupo, que era composto por turistas estrangeiros. A polícia orientou-os, então, a deixar o lugar e seguir sua rota, sem fotografar, sem registrar e nem falar com ninguém — calados.
“Esses jornalistas [do grupo] já sentiram a dureza da Turquia.” Foi assim que Kamil descreveu a recepção turca da mídia estrangeira que entrava no país. Após entrarem no país, a censura piorou ainda mais: só puderam transitar pela cidade sob disfarces de profissão, por não serem jornalistas credenciados. Ainda assim, Kamil percebeu que o grupo estava sendo seguido por um carro civil, que os vigiava, mas isso não impediu o grupo de realizar a entrevistas pelas quais tinham viajado — refugiados sírios, pessoas que iriam voltar para a Síria, entre outros. Ao retomar à fronteira, foram parados e tiveram suas câmeras revistadas. “Depois olharam nossas fotos, apagaram algumas, e nos levaram para uma delegacia.”
O grupo ficou detido por seis horas. Foram entrevistados sobre quem eram, o que estavam fazendo e todo o tipo de pergunta que pudesse identificá-los. Kamil relata que, ao longo dessas seis horas, a tensão foi aumentando: num intervalo de um quarto de dia eles foram, entrevistados pelas esferas local, estadual e federal. Após todo o questionamento, a invasão de privacidade e apreensão, o grupo foi convidado a retirar-se do país no dia seguinte. “Apenas duas semanas depois, a Turquia não era mais um país seguro para jornalistas”, relata Kamil
Existem, hoje, mais de 200 jornalistas — nativos e estrangeiros — presos em terras turcas, segundo notícia publicada pelo Portal Voz da Turquia, formado por jornalistas independentes, dentre os quais, Kamil é um dos fundadores, que tem como proposta trazer uma análise do contexto do Oriente Médio pela ótica de quem conhece sua dinâmica e atores principais.
Mas, ao analisar a situação para além dos comunicadores, houveram mais de cem mil prisões com justificativa baseada na tentativa de golpe. As prisões turcas, como quaisquer outras no mundo, não têm capacidade para comportar tantas pessoas. E por esses encarceramentos massivos — que, na grande maioria das vezes, não têm embasamento legal perante os direitos humanos, negados à população tida como “terrorista” — os prisioneiros têm péssimas condições de vida. Sofrem abusos constantes como não ter direito de falar com seus advogados e familiares, pois qualquer um que tenha contato com os presos é preso. “Imagine uma prisão em que não se tem contato com o mundo real”, é assim que Kamil descreve as cadeias turcas. Eles têm, ainda, o problema da superlotação — numa prisão projetada para 100 pessoas vivem 400.
Kamil, que iniciou a carreira no jornalismo devido às aproximações entre Brasil e Turquia, viu por um lado, os países estreitarem relações, crescerem econômica e demograficamente. Por outro lado, viu os países tomarem rumos políticos divergentes: o Brasil, apesar de seus tropeços e problemas, seguiu pelo caminho da democracia e da defesa à liberdade de expressão; a Turquia seguiu pela via ditatorial e de silenciamento das vozes da comunicação. O turco sonha com um futuro em que os países possam se reencontrar sob a égide da democracia.
O Robocop do governo é frio
Nem só em regimes de exceção, como a Turquia, ocorre violência e censura desmedida. No Brasil, hoje, é praticada a violência para com os comunicadores de forma legítima — com embasamento legal em que o Estado ampara o agressor. A ideia da legitimidade da violência não só é absurda, como também é o fato de ela ser praticada pelo aparato que deveria proteger o cidadão — a polícia.
O abuso da violência legítima é herança de um passado ditatorial recente. A polícia, despreparada, põe-se acima da lei e atribui a si mesma a famosa “licença para matar” de James Bond, com a exceção de que as mortes são reais, e que o final não é tão feliz quanto o do espião.
Há diversos casos de abusos da polícia contra comunicadores. Um dos mais conhecidos é, talvez, o de Sérgio Silva, fotojornalista que perdeu o olho ao levar um tiro de bala de borracha em protesto contra o aumento das tarifas, em junho de 2013. A justiça o considerou responsável pelo “acidente”, alegando que ele assumiu o risco ao colocar-se naquela posição. Embora seja um caso emblemático do perigo que o comunicador brasileiro vive hoje nessa sociedade policialesca, Sérgio é só a ponta do iceberg.
Entre 2013 e 2016, a ABRAJI — Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo — coletou e arquivou informações sobre agressões sofridas por comunicadores: dentre os 314 casos, em 217 os agressores foram policiais. Esse quadro crônico de violência policial e de supressão da liberdade de imprensa tem fundamento na impunidade que o judiciário, parcial e deficiente alimenta e na naturalização da violência pela sociedade.
Parte da culpa dessa naturalização é das grandes mídias, que frequentemente divulgam — quando não abafam — casos de violência policial de forma banal. Outra parte é da justiça, que raramente pune os agressores que, sob a luz do contrato social que rege as sociedades modernas, representam o monopólio do uso da força pelo Estado. Somadas essas duas parcelas de culpa, o resultado é uma sociedade em que a força se sobrepõe à verdade, que entende aqueles que manejam a espada — muitas vezes contra eles — como os detentores da razão.
Paula Martins, de 41 anos, é diretora-executiva do portal ARTIGO 19. Ela diz que as ações de organizações como a ABRAJI e a própria ARTIGO 19 têm rendido frutos, como o reconhecimento da violência sofrida por comunicadores, mas que a situação ainda é precária, pois “ainda temos vários problemas de violência policial e inação frente a essa violência.” Isso seria, em grande parte, reflexo de um Estado que emprega o uso da força na missão de calar aqueles que denunciam seus descasos para com a população e seus favorecimentos para com as elites.
As consequências são gravíssimas e mantêm o ciclo vicioso de violência e censura: impunidade policial, a perpetuação da violência, o silenciamento de comunicadores livres e a monopolização das mídias em veículos uniformes e que servem às elites e ao Estado. O combate a essas práticas passa pela esfera civil — o cidadão comum, como eu e você — que deve desnaturalizar e combater os abusos sofridos por aqueles que buscam expor fatos; ele deve apoiar a seus semelhantes e não às elites, ou esse quadro violento e censor se perpetuará.
O outro Brasil
Existem, na prática, “dois ‘Brasis’”. Um é o mais conhecido: o das grandes metrópoles e cidades globais, com seus luxuosos carros, alto padrão de vida e vigilância constante de diversos órgãos que previnem a obstrução deliberada e direta dos direitos humanos; outro é o mais esquecido: o das pequenas cidades, no interior dos estados, com pequenos comércios e pouca — quando não nenhuma — vigilância por parte de órgãos e mesmo do próprio Estado.
Esse segundo Brasil, em decorrência da negligência estatal e da consequente impunidade, abriga a grande maioria dos abusos contra comunicadores. Esses ataques são feitos de duas formas básicas: violência e censura — legalmente legítimas e eticamente ilegítimas. A violência nessas cidades vai desde ameaças até homicídios, o que dificilmente ocorreria numa cidade grande como São Paulo pela gigantesca quantidade de olhares voltados para ela. O ponto onde há maior proximidade entre esses dois “Brasis” tão distintos é a censura jurídica.
A judicialização da imprensa
São vários os casos de abusos para com os comunicadores. Não seria, então, natural que eles buscassem amparo jurídico para sustentar seu direito — inalienável — à liberdade de expressão?
Em uma sociedade orientada por uma constituição que abarca a Declaração Universal do Direitos Humanos, como a nossa, tais denúncias não deveriam passar impunes; a realidade, porém, é outra e muito disso é, talvez, reflexo de outra faceta da censura institucionalizada: a censura jurídica.
Guilherme Alpendre, 30, diretor-executivo da ABRAJI , explica que esse tipo de censura vem se tornando frequente, no Brasil, o que é preocupante. Ela ocorre da seguinte forma: um blogueiro, radialista, jornalista ou qualquer comunicador com alguma influência realiza, por meio de mídias independentes, denúncias contra uma figura protagonista naquele ambiente. Então, a pessoa que foi denunciada entra com um processo alegando que o comunicador publica informações que ofendem sua honra; juízes de primeira instância têm grande tendência a dar uma liminar que obriga o site a sair do ar. Essa decisão tem como reflexo o impedimento da liberdade de expressão e imprensa do comunicador.
Guilherme diz que quando a pessoa tem condições de recorrer da decisão, pois isso gera gastos com advogados e uma série de outras questões judiciais, ela sempre ganha, mas, ainda que a pessoa ganhe, o período em que a liminar tem efeito impede o comunicador de de expressar-se livremente. As consequências podem ser desastrosas para a sociedade, à medida que ela for mantida às cegas quanto a escândalos de corrupção e histórico de corrupção de um candidato, práticas essas, segundo ele, comuns em pequenas cidades em período eleitoral.
A parcialidade do judiciário pode trazer para o “outro Brasil” os ditos “vazios informacionais”, colocando a população que, via de regra, já é negligenciada pelo Estado, a mercê de uma mídia monopolizada e que não a representa — muito pelo contrário, que serve às elites.
O judiciário “onipresente” brasileiro
Para Guilherme, essa judicialização da imprensa “é uma coisa cultural. Há uma cultura, aqui, de pedir sempre para que o Estado cuide daquilo que deve ou não deve ser publicado.” Isso remete à falta de empoderamento político do povo: a independência não veio por revolução, veio por interesse da burguesia internacional; a república veio por interesse das elites latifundiárias; o vazio político deixado pelo fim da política do café com leite foi preenchido pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas; e quando o povo ameaçou, o Estado tomou o controle através de um golpe militar.
Essa condição sociocultural na qual o Brasil se insere reflete, hoje, para Guilherme, na visão paternalista do Estado como uma entidade que tem como função resolver todos os problemas de todas as esferas sociais e controlá-las, de forma direta ou indireta. Essa visão tem profundas sequelas que impedem a sociedade de avançar em direção a uma maior plenitude no que tange ao respeito às liberdades e aos direitos humanos.
A luz no fim do túnel
O combate aos abusos às liberdades de expressão mantém-se, apesar disso, vivo e atuante. No seu último relatório anual sobre violações à liberdade de expressão, a ARTIGO 19 propõe práticas que podem prevenir que os comunicadores tenham seus direitos feridos, como “adotar um discurso público que contribua à prevenção da violência contra jornalistas” e “respeitar o direito dos jornalistas a manter em sigilo a identidade de suas fontes de informação, suas anotações e outros arquivos pessoais”.
Ele propuseram, também, medidas para a proteção dos comunicadores e rompimento com a impunidade dos agressores, como “condenar a violência e ataques contra comunicadores”; “proteger comunicadores que cobrem situações de maior risco, como protestos e eleições”; e “remover obstáculos legais à investigação e sanção sobre delitos mais graves contra jornalistas”. Sendo essas recomendações adotadas, o exercício da comunicação e promoção da transparência em diversos campos à sociedade dá um largo passo em direção à segurança e liberdade.