Por Yasmin Constante (yasminconstante@usp.br)
Em sua 30° edição, o Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade”, em parceria com o Sesc São Paulo, promove o ciclo “Especial 30! Encontros”, conectando o público com grandes cineastas. Um dos encontros que marcou a edição foi com Eliza Capai, vencedora da Competição Nacional de Longas e Médias-Metragens do festival em 2023, com o longa-metragem documental pré-qualificado para o Oscar, Incompatível com a vida (2023).
O encontro, que foi o último do ciclo, aconteceu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, com a entrevista conduzida pela jornalista Neusa Barbosa. O primeiro tema abordado na conversa foi a trajetória da cineasta. Eliza nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu em Vitória (ES), lugar que descreveu como difícil para as mulheres e viu, na faculdade, uma oportunidade de “fugir”. Mudou-se para São Paulo e se tornou jornalista pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
A conversa abordou diversos aspectos do trabalho de Eliza, o processo de criação das suas produções e os sentimentos gerados por elas. Além de Incompatível com a vida (2023), a obra da artista inclui trabalhos como Espero Tua (Re)volta (2019), O Jabuti e a Anta (2016), Tão Longe É Aqui (2013), além da direção da primeira série de crimes brasileira da Netflix, Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime (2021).
Eliza percebeu cedo que admirava a conexão com as pessoas e não queria trabalhar com uma profissão em que “uma entrevista pudesse ser resolvida por telefone”, como enxergava o jornalismo na época. Sabia de uma coisa: queria viajar e foi o que fez. Após terminar a faculdade, produziu uma série sobre a imigração na América Latina para a Revista Fórum. Após essa produção, sentiu que estava certa e encontrou o que a fazia feliz.
A cineasta destaca que encontrou na Copa do Mundo de 2010, sediada na África do Sul, uma oportunidade de trabalhar com o que havia descoberto ser sua paixão. Fazia reportagens para a televisão, mas filmava material extra para conteúdos autorais. Assim, surgiu Tão Longe É Aqui, seu primeiro longa-metragem. Segundo ela, neste momento percebeu que o jornalismo era “pequeno” para o que queria fazer.
Virada de chave: se descobrindo como diretora
Em 2016, os movimentos estudantis ocuparam a Assembleia Legislativa de São Paulo, o que despertou o interesse da cineasta que decidiu visitar a ocupação. Apontou que ao chegar lá, ela, entusiasta do movimento, não entendia o que estava acontecendo. Mas, ao lado de Mariana Genescá — a produtora que a acompanhou nessa missão — percebeu a chance de transformar aquilo em um filme e mostrar ao mundo a situação.
“O que move para fazer um filme? Para mim tem um lugar assim: o que me tira o sono? O que preciso entender? O que me angustia, que me motiva, que me apaixona?”
Eliza Capai
Eliza Capai ao contar sobre o que a guia em suas obras destaca que, junto a Mariana Genescá, acompanhou o movimento dando origem ao documentário Espero Tua (Re)volta. A produção recebeu a narração de Marcela Jesus, uma estudante preta e feminista, que representou e deu voz aos secundaristas.
A obra serve como documento de registro para aquele período da luta estudantil diferentes entidades discentes se uniram em prol do trabalho que tinha como objetivo colocá-los como protagonistas. Segundo Eliza, essa foi a virada de chave para se descobrir como diretora: “O Espero Tua Re(volta) para mim, foi o momento que aprendo sobre fazer cinema, com tempo e verba. De não ser o hobby, de ser a profissão”, aponta.
A produção conta com um ritmo descrito pela diretora como “frenético”, de acordo com ela os estudantes tiveram participação nessa escolha. Para prender seu público, entendeu que precisava “fazer um filme que a cada cinco minutos comece outro filme”.
Ser objeto de sua obra

Neusa Barbosa seguiu a conversa apontando como o trabalho seguinte da cineasta traz uma proposta diferente com um ritmo lento. Há quem diga que toda obra tem um pouco do artista, mas Incompatível com a Vida tem tudo de Eliza.
A história do longa-metragem premiado começou em 2019, quando Eliza Capai e Mariana Genescá, conseguiram a aprovação de um edital para produzirem um filme sobre o amor. Ao mesmo tempo, iniciou-se a pandemia da COVID-19,na sequência, ainda no começo do lockdown, a diretora descobriu sua gravidez.
Sobre a ideia do filme, Eliza relata: “O amor são muitas coisas, e então pensei: vou viajar pelo Brasil, só conversando com mulheres também grávidas, porque para mim isso parecia o auge da declaração de amor”. Como estudo para essa produção, a diretora começou a gravar a si mesma, sem intenção de usar o material.
Durante um ultrassom morfológico, descobriu que o filho que gerava era incompatível com a vida, ela relata que foi aconselhada pelos médicos a retirar o feto. –na época, Eliza vivia em Portugal, onde o aborto é legal. Durante um momento de muita dor, ela explica que foi tomada pelo luto e pela raiva ao pensar que mulheres que passam por isso no Brasil precisam continuar com um feto fadado à morte.
A cineasta decide que o acontecimento mais difícil da sua vida poderia se tornar um filme, segundo ela, com a esperança de que algo positivo pudesse surgir daquela situação. “Eu nunca vi um filme com esse tema aberto, então não tinha referências emocionais daquilo. As pessoas tendem a não falar sobre esse assunto e as mulheres que sofrem isso, não são ouvidas também”, destaca.
A obra apresentou a história de Eliza, a partir dos materiais produzidos durante a gravidez e relatos de outras seis mulheres que passaram pela mesma situação. A diretora é a personagem mais exposta no filme, ela tinha receio da reação das pessoas com a produção e decidiu que “se fosse para alguém levar porrada”, seria ela.
“Se eu não for capaz de expor meu corpo para falar sobre essa desgraça que estou vivendo, não tenho direito de nunca mais registrar alguém num momento de dor. Por que que vou registrar a sua dor? Vou te expor nesse momento ruim, se eu não posso me expor nesse momento ruim?”, expõe Eliza.
A cineasta relata que, no dia da estreia, ficou nervosa como nunca antes, porém, o resultado foi melhor que o esperado. O longa-metragem comoveu a plateia que mostrou apoio para as mães apresentadas pela produção. “A gente começou a receber abraços como se fosse a procissão dos nossos filhos, os funerais que a gente não teve”, disse Eliza.
A produção transformou Eliza como documentarista. Ela apontou não se sentir mais culpada em expor a história de alguém, segundo suas palavras, ela se conecta com a pessoa, entende a sua dor e a respeita.
*Imagem de capa: [Imagem:Reprodução/Instagram/@etudoverdadeoficial]