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47ª Mostra Internacional de Cinema de SP | Cineasta Paul Vecchiali se despede do cinema com ‘Bom Dia à Linguagem’

No lançamento póstumo, diretor articula um diálogo entre pai e filho para retratar a própria relação com a arte

“Pela primeira vez, temos a oportunidade de dizer coisas pela última vez.”

 – Nouvelle Vague (1990), Jean-Luc Godard

Nove meses após sua morte, a despedida de Paul Vecchiali chega a São Paulo com a Mostra Internacional de Cinema. Bom Dia à Linguagem (Bonjour La Langue, 2023) é dirigido, escrito e protagonizado pelo artista que, fantasiado de si mesmo, explora seu legado no cinema. A reconciliação com o filho (Pascal Cervo), batizado de Jean-Luc em tributo a Godard, é pretexto para acertar as contas com o próprio legado, em um discurso testamental a essas duas criações. Em um ritmo lento, Vecchiali mostra saber que não tinha mais tempo para se apressar, e fecha as cortinas com fragilidade inédita.

O filho quebra o silêncio de seis anos em uma visita impulsiva ao pai, que espera a morte sentado no quintal. O diálogo passa por três atos, em cenários diferentes, sem nunca entrar em um ambiente interno, ou expressar alguma intimidade. A conversa começa no quintal, onde a grande distância entre os personagens quase os impede de dividir a mesma tela, e são cortados por contra-planos constantes. No segundo terço, as memórias descongelam uma proximidade, e só a mesa do restaurante separa a dupla. Para o último ato, pai e filho choram na mesma cadeira, em despedida ao dia, que se põe, ao filme, que se encerra, e a Vecchiali, que faz sua confissão pre-mortem.

A caracterização do personagem exagera a imagem de Vecchiali, e sugere a auto representação. [Divulgação/Dialectik]

Quando esteve no Brasil, o diretor comentou à Revista Nervos que o amigo Jean-Luc Godard, quem ele consideraria um Deus, planejava “fazer um curta que se chama ‘Bom Dia, Palavra’”. Paul usa um título semelhante para responder a Adeus à Linguagem (Adieu au langage, 2014), filme que Godard explora, em 3D, a atual insuficiência da comunicação. Ele propõe uma transformação radical do cinema, que extrapole as técnicas, para enfrentar a perda de controle sobre a linguagem. Há montagens frenéticas dos personagens, intercalados com plantas, cachorros e visuais irrelacionados, enquanto o enredo acaba e começa de novo. Ao fundo, o cineasta atordoa a compreensão do espectador e narra, em um ensaio nauseante: “Logo, todos vão precisar de um intérprete. Para entender as palavras saindo das próprias bocas”. Ao brincar com os recursos audiovisuais ilógicos na tela, prevê a irracionalidade da arte futura.

Perante as mudanças linguísticas, os artistas acreditam em comunicações opostas, que se traduzem na estrutura de seus filmes. Godard, radical, se despede da langage, linguagem como forma abstrata de transmissão, por sons, imagens, gestos e símbolos. Já Vecchiali saúda a langue, língua como retorno ao mais simplório do diálogo verbal. Bom Dia à Linguagem valoriza o domínio na execução dos elementos básicos: roteiro minimalista, custo baixo, e gravação concluída em menos de 24 horas.

Jean-Luc se frustra por, mesmo já sendo pai, sempre ser um menino perante o pai. [Divulgação/Dialectik]

A câmera acompanha uma discussão afetada, em que pai e filho acusam-se de ter abandonado um ao outro. O orgulho que os afasta, é o que têm em comum e, em meio aos assuntos familiares, riem com referências ao cinema de Ford e listam os sucessos de Godard. Quando pedem crème brulées para a  sobremesa, o expediente do garçom se encerra, mas o almoço continua. Repete-se a sensação de quando os outros membros da família morreram, mas os dois seguiram em frente, não por resiliência, mas pela inércia do acaso.

Não é a primeira vez que Paul Vecchiali e Pascal Cervo contracenam na dinâmica de pai e filho. A parceria se desenvolveu ao longo da filmografia do diretor e, na aparição final, é explorada ao máximo. Com as falas improvisadas, o espectador sente a atmosfera pesada entre os personagens, carregada de um subtexto desenvolvido por anos; mais explicitamente, algumas cenas deles em O Ignorante (Le Cancre, 2016) são reaproveitadas como flashbacks da vida compartilhada pela família.

Com o passar dos anos e dos filmes, o envelhecimento tornou-se um lugar comum nos filmes de Vecchiali, de modo a estreitar o paralelismo entre vida e obra. Dessa vez, a morte torna os dois âmbitos indissociáveis: o personagem metaficcional decreta o esgotamento criativo e, sem ter mais o que escrever, sente-se pronto para partir.

Bom Dia à Linguagem é uma obra valiosa para o cinema, com grande carga afetiva para os entusiastas da jornada de Vecchiali. A instrumentalização do próprio ofício para se despedir dele, dos companheiros e até de si mesmo será lembrada, assim como a memória que ele construiu ao longo de mais de 70 filmes.

Sobre o mérito do filme em si, este não se compara com o resto de sua produção. Ao contrário do comportamento do personagem, que prioriza a arte em detrimento da vida íntima, Paul Vecchiali prefere aproveitar o tempo fugaz com seus sentimentos, sem visar o requinte técnico na filmagem ou roteiro.  Em âmbito geral, é um projeto bastante pessoal, que não oferece muito para trocar com o público. 

Esse filme fez parte da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto. Confira o trailer:

*Imagem de capa: Divulgação/Dialectik

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