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‘No Ritmo do Coração’ e a sinalização do amadurecimento

Longa acompanha a jovem Ruby na difícil escolha entre sonhos pessoais e familiares

A tradução de títulos de filmes para o português nem sempre é fiel ao significado inicial ou à trama. No Ritmo do Coração (CODA, 2021), de Sian Heder — uma das escritoras da série Orange is The New Black (2013-2019) —, é um desses casos. Em português, o nome faz com que o longa aparente ser um romântico musical genérico, porém, em inglês, há a denúncia da verdadeira base de construção da história: CODA é a sigla estadunidense para crianças com pais surdos (child of deaf adults). Nossa não tão criança é a adolescente Ruby Rossi (Emilia Jones), e esse detalhe filial é elementar para o enredo cômico e melodramático que envolve sua vida. 

Desde a infância, Ruby intermediou a relação de seus pais, Frank (Troy Kotsur) e Jackie (Marlee Matlin), e irmão, Leo (Daniel Durant), com pessoas que não falavam a língua de sinais. De explicações em consultas médicas a negociações de preço no negócio de pescaria da família, ela estava presente como intérprete. A jovem nem sempre viu a participação integral nas atividades familiares como obrigação enfadonha, entretanto, conforme amadurece, desenvolve ambições não partilhadas e compreendidas por sua família.

No Ritmo do Coração é um típico coming of age. A verdadeira paixão de Ruby é o canto, e essa é uma das motivações para ela ingressar no coral escolar — a outra, com peso quiçá maior, é o interesse amoroso no colega Miles (Ferdia Walsh-Peelo) —, onde ela descobrirá que possui de fato talento para essa arte. A revelação de seu potencial é acompanhada da sugestão do exigente professor Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez) para que ela tente ganhar uma bolsa na Faculdade de Música de Berklee, tendo ele como tutor. O ponto central do enredo está aí: Ruby deve decidir se seguirá seus sonhos ou continuará em casa para auxiliar com o negócio de sua família, que está enfrentando uma crise financeira.

 

Ruby, utilizando calça jeans cinzenta e um moletom coral, colocas as mãos sobre o peito e canta, com Villalobos, utilizando óculos e uma camisa escura, toca um piano preto.
Ruby cantando enquanto Villalobos toca. [Imagem: Divulgação/Apple TV+]
Embora tenhamos acesso à história do ponto de vista de Ruby, é difícil escolher um lado nos conflitos familiares. A jovem precisa criar uma identidade para si que não se reduza à surdez de sua família, mas, para que ela se enxergue com seus próprios olhos, algumas relações de dependência com sua família devem ser rompidas e a dor desse acontecimento é percebida em ambos os lados.

É bonito ver que o crescimento pessoal de Ruby influencia seus familiares, que também amadurecem. Ao mesmo tempo que o sonho da jovem poderia separá-los, ele os aproxima na medida em que a jornada dela faz parte de todos e eles crescem com ela. Então, surpreendentemente, nenhum dos personagens principais é plano, todos foram igualmente desenvolvidos de modo que suas versões iniciais não se reconheceriam ao final do filme. 

A  conexão da família é intensificada pela química entre os atores. Emilia, Troy, Marlee e Daniel parecem de fato pertencerem à mesma árvore genealógica. O amor e carinho interpretados por eles é transbordante, contagia o espectador e é especial para emocioná-lo em algumas cenas, como quando Ruby canta para que seu pai possa sentir a vibração de suas cordas vocais. A forma diferente com a qual eles percebem a música não é uma barreira ao relacionamento deles e isso fica ainda mais evidente na delicadeza com a qual eles se tratam nessa cena.

A música também é central no enredo, por isso é impossível não mencionar a eclética trilha sonora de No Ritmo do Coração. As canções, majoritariamente soul, jazz e rock, foram escolhidas como espelho dos gostos de Ruby, que coleciona discos antigos e os toca em uma antiga vitrola em seu quarto. Por ser diegética, é mais fácil conectar a trilha ao enredo e notar o esforço em demonstrar que a música pode ser universalmente admirada: as emoções musicais não precisam ser transmitidas apenas pela fala, a língua de sinais envolve expressões faciais e movimentação corporal, por isso pode ser tão poética e eficaz quanto ela na veiculação de sentimentos.

 

Sentados na traseira de uma caminhonete no quintal grameado de sua casa, Ruby apoia a cabeça no ombro de seu pai, que encosta sua cabeça na dela.
Ruby e seu pai após ela cantar para ele. [Imagem: Divulgação/Apple TV+]
No Ritmo do Coração constrói sabiamente os personagens não ouvintes: as situações em que eles se envolvem não suscitam piedade, mas sim conscientização. Quando Ruby tem que mediar a relação de sua família com o mundo, o intuito não é revesti-la com uma aura de incapacidade, mas sim demonstrar que a falta de acessibilidade do entorno e a pouca preocupação de ouvintes em aprender língua de sinais fazem com que a presença da jovem, ainda que não indispensável, facilite a vivência de seus familiares.

É cabível celebrar a própria escolha dos atores, que são verdadeiramente surdos. Essa seleção garante autenticidade a No Ritmo do Coração e evita que a trama incorra em estereótipos, o que é comum em longas nos quais artistas sem deficiências interpretam papéis que as possuem.

No Ritmo do Coração celebra a surdez tal como ocorre em O Som do Silêncio (Sound of Metal, 2020). Com sorte, mais filmes integrarão essa lista ao optarem por uma abordagem realista de deficiências ao invés da tradicional paternalista que reproduz capacitismos e forçosamente evoca compadecimento. Apesar do título não ser o mais satisfatório possível, esse longa prova que filmes são como livros, enquanto os segundos não podem ser julgados pela capa, os primeiros não podem ser avaliados pelo título.

Nota do Cinéfilo: 4,5 de 5. Ótimo!

 

No Ritmo do Coração está disponível para os assinantes da Apple TV+. Confira o trailer:

*Imagem da capa: Divulgação/Apple TV+

3 comentários em “‘No Ritmo do Coração’ e a sinalização do amadurecimento”

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