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Psicodrama: expressão, cultura e saúde

Tristeza, angústia, ódio e raiva são sentimentos intrínsecos a todas as pessoas. Mas sentir tudo isso em excesso pode levar alguém a adoecer. Para uma vida plena, as pessoas precisam encontrar a sua voz. E gritá-la a plenos pulmões.  A arte pode curar a alma das agonias da vida. O teatro é capaz de dar …

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Tristeza, angústia, ódio e raiva são sentimentos intrínsecos a todas as pessoas. Mas sentir tudo isso em excesso pode levar alguém a adoecer. Para uma vida plena, as pessoas precisam encontrar a sua voz. E gritá-la a plenos pulmões. 

A arte pode curar a alma das agonias da vida. O teatro é capaz de dar voz, e ser um meio de exprimir a multiplicidade do ser. Ele é o primeiro soro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia, já dizia o ator francês Jean-Louis Barrault. 

A expressão artística-cultural é terapêutica e pode canalizar a intensidade emocional das pessoas. Quem descobriu o poder terapêutico do teatro foi o psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno, durante seus experimentos sociais e teatrais no século 20, em Viena, na Áustria. 

O teatro terapêutico de Moreno se chama psicodrama e é orientado pela relação com o coletivo. Esse método permite aos atores criarem e encenarem suas próprias histórias, pautados pela criatividade e espontaneidade. O psicodrama produz catarse, que é a purificação dos sentimentos negativos por meio da encenação. 

Sua aplicação é uma das mais eficientes e criativas nos campos da saúde, da educação, e da cultura. Além disso, o psicodrama nasceu público e mantém essa essência até os dias de hoje.

 

A origem do psicodrama

Em 1920, na cidade de Viena, o médico psiquiatra Jacob Levy Moreno saia pelas ruas e trabalhava em praça pública. Moreno interagia com crianças, refugiados de guerra e prostitutas. Mariângela Wechsler, psicóloga, psicodramatista, e autora do livro Relações entre Afetividade e Cognição: de Moreno a Piaget (Artera, 2020), explica que Moreno sempre teve um interesse genuíno pelo social, e que a descoberta do poder terapêutico do psicodrama foi através do “caso Bárbara”.

Em 1923, Moreno criou o Teatro da Espontaneidade, que era uma encenação improvisada. Seus encontros começaram a atrair muitas pessoas, e entre elas dois jovens, Jorge e Bárbara. Ela era uma das atrizes do teatro espontâneo, sempre interpretava personagens meigas e românticas; Jorge era um espectador frequente das peças encenadas por Bárbara. Ao longo desses encontros no teatro, os dois se apaixonaram, e pouco tempo depois se casaram. 

A espontaneidade teatral. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
A espontaneidade teatral. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
No entanto, algo surpreendeu Jorge: no cotidiano conjugal, Bárbara se mostrava completamente diferente do que aparentava no teatro. Ao contrário de ser meiga e romântica, ela mostrava uma personalidade forte e hostil. Isso prejudicava a dinâmica do casal, causando muitos conflitos entre os dois. Infeliz com a situação, Jorge procurou o doutor Moreno, e o psiquiatra prometeu ajudar.

No encontro seguinte do teatro espontâneo, Moreno ofereceu outro tipo de papel à Bárbara. Desta vez, ela interpretaria papéis agressivos como, por exemplo, vilãs, bruxas, e pessoas vingativas. Ao longo das encenações, Bárbara começou a demonstrar mudança em seu comportamento; agora se sentia mais tranquila e melhor consigo mesma. Também, a convivência com seu marido melhorou. 

“A partir desse caso, Moreno se deu conta do valor terapêutico do teatro. E começou a construir uma ideia de tratamento que usa as ferramentas do teatro de improviso. Na década de 1940, ele sistematizou o psicodrama”, elucida Wechsler.

 

O psicodrama, a expressão cultural e a criatividade

J. L. Moreno acreditava no que chamava de realidade suplementar, uma experiência que ultrapassaria a vivência cotidiana. A realidade suplementar é um dos aspectos terapêuticos do psicodrama que propõem um encontro com o imaginário e com a intuição.

Para Sérgio Perazzo, psiquiatra, psicodramatista e poeta, a realidade suplementar é o campo de atuação da criatividade. “Por meio dela é possível transitar entre o campo da imaginação, fantasia e realidade cotidiana ao mesmo tempo. E esse é o terreno fértil da criatividade e da espontaneidade”, explica Perazzo.

De acordo com Moreno, o primeiro ato de espontaneidade do ser humano é o nascimento. A partir dele, as pessoas estão à mercê das conservas culturais — conceito criado por Moreno, que afirma que os usos e costumes, assim como os objetos, cristalizam-se. A criança cresce e aos poucos é enlatada pelas conservas culturais, perdendo sua criatividade e espontaneidade. O ser humano, ao longo de sua vida, traça uma verdadeira guerra em busca da espontaneidade perdida”, acrescenta Perazzo.

Para Wechsler, a psicoterapia de Moreno é fruto do trabalho que ele realizava a partir da perspectiva do amor ao humano. “Moreno acreditava que a criatividade e a espontaneidade eram fundamentais para existência humana. Para ele, as pessoas devem sonhar. O propósito era trazer uma nova perspectiva, tanto que na lápide dele está escrito: ‘Aqui jaz aquele que trouxe alegria à psiquiatria’. Era a utopia de Moreno”, completa Wechsler.

“Aqui jaz aquele que trouxe alegria à psiquiatria.” [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
“Aqui jaz aquele que trouxe alegria à psiquiatria.” [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

 

A estrutura e o método do psicodrama

O psicodrama pode acontecer tanto em um espaço privado (consultórios) quanto em um espaço público. A prática nasceu no coletivo, mas sua técnica foi adaptada para ser aplicada na clínica da psicologia. Existem diversos métodos dentro do psicodrama, como o sociodrama, o teatro espontâneo, o jornal vivo, entre outros. A escolha do método é feita pelo diretor psicodramatista de acordo com a necessidade do grupo.

Segundo Wechsler, para o diretor é essencial saber conduzir o grupo e ler seu comportamento através do contexto em que estão inseridos. Existem contextos, instrumentos e etapas que precisam ser seguidos, e que atravessam qualquer método dentro do psicodrama: os contextos são o social, o grupal e o dramático; os instrumentos são o diretor, o(s) protagonista(s), a platéia, o ego-auxiliar e o cenário; as etapas são o aquecimento, a dramatização e o compartilhar. 

Esses direcionamentos servem para guiar a sessão. Mas o aquecimento é essencial em todos os métodos, pois é o momento em que o grupo se conecta. “O grupo não é uma equação de um mais um é igual a dois. O grupo é uma interdependência dos elementos. Ele se retroalimenta e compartilha uma subjetivação. É só em um estado de relaxamento, livre de juízo de valor e da coerção social que se torna possível criar de forma espontânea”, elucida Wechsler.

Para Perazzo, o aquecimento é uma das partes mais importantes do psicodrama. A partir dele é possível investigar as questões emocionais envolvidas no coletivo. O aquecimento pode ser feito de diversas maneiras: “Eu já usei muitas vezes música para aquecer um grupo, também já usei poesias; alguns colegas usam pintura ou dança”, conta Perazzo.

Início do aquecimento, um dos momentos do Psicodrama. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Início do aquecimento. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Ainda segundo Perazzo, a música dispara um aquecimento corporal, afetando iniciadores emocionais que se acoplam aos corporais e levantam viagens da imaginação. A conjugação desses tipos de iniciadores provocam um relaxamento que encaminham a espontaneidade nas cenas psicodramáticas. “Para Moreno, o psicodrama é um percurso que leva as pessoas a se apoderarem de suas verdades psicodramáticas e poéticas, que sempre são vividas na relação com o outro. Junto com o outro estamos na plena vivência da nossa criatividade e espontaneidade”, explica.

Após o aquecimento provocar o relaxamento e trazer à tona o tema da cena, o psicodrama inicia. Dentre os métodos, o sociodrama busca geralmente tratar temas mais relacionados ao grupo e à sociedade. O teatro espontâneo é um tema mais livre, que pode ser proposto pelo grupo. Já no jornal vivo, o diretor traz um jornal do dia, escolhe uma notícia e os atores (participantes) improvisam uma cena baseada naquele acontecimento. “A improvisação por jornal vivo amplia a visão sobre determinada situação social. Tudo no psicodrama aponta para o coletivo”, completa Perazzo.

O momento de compartilhar, outro momento do Psicodrama. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
O momento de compartilhar. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Perazzo ainda explica que o psicodrama lida com a catarse o tempo inteiro. O grupo é tratado através do protagonista da cena, que representa o coletivo por meio do coinconsciente grupal — a ligação inconsciente entre o grupo. Depois da catarse do protagonista da cena, emerge em todos os atores seus dramas privados, e cada um faz sua terapia através de cada personagem. 

A sessão de psicodrama é encerrada com o compartilhar, momento de cada participante dividir com o grupo seus sentimentos. “Tudo na sessão é terapêutico. O corpo fala, a sensibilidade fala, a voz fala”, finaliza Perazzo.

 

O sonho coletivo: Psicodrama Público no Centro Cultural São Paulo

O psicodrama tem três grandes influências: a psicologia, a sociologia e o teatro. Isso faz com que o propósito da teoria de Moreno seja a transformação da humanidade por meio dos sonhos coletivos.

Nesse contexto, nasceu o Psicodrama Público no CCSP. Mariângela Wechsler, uma das coordenadoras do projeto, conta como começou: “Em 2001, a então prefeita Marta Suplicy desenvolveu um projeto chamado ‘Feliz Cidade’, que promoveu sessões de psicodrama em diferentes lugares de São Paulo. Eu dirigi uma sessão na sede da empresa de limpeza urbana. Meu colega, Cesarino, dirigiu uma sessão no Centro Cultural com ingressantes da Guarda Civil Metropolitana. O resultado foi tão positivo que, a partir de conversas com a gestão do espaço, foi implementado o Psicodrama Público no local em 2003”, relata.

Esse projeto de Marta aconteceu em 180 diferentes pontos da cidade, dirigidos por 700 psicodramatistas. Os servidores e os paulistanos foram incentivados a falar sobre sua relação com a cidade. 

Encontro de Psicodrama. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Encontro de Psicodrama. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
O Psicodrama Público no Centro Cultural São Paulo cria um espaço de expressão cultural terapêutica na cidade. É um lugar plural que traz diversidade e contribui para a manutenção da saúde mental coletiva. “Como você pode existir se você não pode pensar? Se não pode se expressar? A saúde psíquica só pode existir se você tiver essa interlocução, então nosso projeto é cidadão no vértice social, cultural e terapêutico. O psicodrama cria novas formas de se estar no mundo”, pontua Wechsler.

Para Pedro Mascarenhas, psiquiatra, psicodramatista e um dos coordenadores do Psicodrama Público, é preciso refletir acerca da palavra “público”. Ele ressalta a importância de tratar a loucura no espaço público, e que isso faz parte da ideia do movimento antimanicomial, que prevê o tratamento fora dos muros e sem segregar. “A inserção do sofrimento psíquico nos espaços públicos começa a ter uma articulação entre a expressão de angústias e a produção de criatividade”, comenta. 

Rampas do Centro Cultural São Paulo [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Rampas do Centro Cultural São Paulo [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Wechsler ainda acrescenta: “É emocionante pensar o quanto esse projeto dá abertura ao processo de subjetivação das pessoas. O Psicodrama Público cria linhas de fuga, possibilidade de outros pensamentos e fomenta a criatividade. Novas singularidades passam a existir.”

O projeto está passando por um momento político crítico. Wechsler conta que no começo do ano, antes da pandemia, eles foram despejados do Centro Cultural São Paulo. Ela ressalta que estão sem lugar para atuar, e que o grupo ainda não teve oportunidade de conversar adequadamente com a gestão do Centro para encontrar uma solução. 

Wechsler destaca a importância de realizar esse trabalho com o coletivo. “Quando nós conseguirmos conquistar espaços públicos que dão voz ao povo, nós, de fato, estaremos cumprindo papel cidadão. Esse deve ser o lugar no qual as pessoas são autoras de suas vidas, da cultura e da cidade. Isso é cidadania. A psicoterapia precisa ser devolvida ao espaço público como clínica social”,  finaliza. 

Em defesa do projeto, a equipe do Psicodrama Público fez uma carta de mobilização, que pode ser acessada aqui

Petição online contra a interrupção dos encontros de Psicodrama no CCSP. [Imagem: Reprodução/Avaaz]
Petição online contra a interrupção dos encontros no CCSP. [Imagem: Reprodução/Avaaz]

 

Durante a quarentena: Psicodrama Público Online

A quarentena impossibilitou os encontros coletivos do psicodrama. Mas, em um período tão delicado, os usuários sentiram falta desse apoio. “Usuários mais frequentes nos enviaram uma carta pedindo ajuda para pensar um psicodrama online. Em conjunto, conseguimos recuperar nossa operação por meio da internet”, conta Mascarenhas.

Wechsler, por sua vez, acrescenta: “Em abril, os usuários chamaram o Pedro Mascarenhas e eu para organizar um psicodrama online, porque sentiam falta dos encontros. E foi aí que eu dirigi o primeiro psicodrama público online. Foi muito lindo, e a partir disso voltamos com a nossa programação semanal pela internet.” 

A dinâmica online é totalmente diferente da presencial. Mas, ao mesmo tempo, traz vantagens, como por exemplo possibilita que pessoas em qualquer lugar do país participem das sessões. Para Mascarenhas, essa nova forma de psicodrama está em pesquisa. As dinâmicas de contato são adaptadas constantemente porque as falhas na conexão limitam a experiência. “Alguns alegavam que a conexão não era boa suficiente para sustentar a câmera ligada, outros não se sentem à vontade para mostrar a casa ou o próprio rosto”, aponta.

Psicodrama online pelo Zoom. [Imagem: Divulgação/Facebook Psicodrama Público CCSP]
Psicodrama online pelo Zoom. [Imagem: Divulgação/Facebook Psicodrama Público CCSP]
Apesar dessas dificuldades, a experiência pode ser transformadora. Sobre isso, Mascarenhas ainda acrescenta: “Os corpos se afetam junto com a palavra ou  apesar da palavra. E se comunicam. E se tocam. Mesmo online, mesmo de maneira diferente.” Os encontros são divulgados por meio deste link.

3 comentários em “Psicodrama: expressão, cultura e saúde”

  1. Mariangela Wechsler

    Muito bom este artigo., pois dá visibilidade para novas possibilidades de Cidadania e da importancia de Espaços Publicos estarem a servíço de novos processos de subjetivaçăo, fora da lógica do mercado ( capitslista)
    No entanto, uma correçăo, em 2003 o Psicodrama dirigido pelo querido colega/ amigo Cesarino foi com jovens da Guarda Civil e năo com Bombeiros

    Mariangela P. da F. Wechsler

  2. Regina Fourneaut Monteiro

    Faltou dizer que o psicodrama também pode ser realizado em espaço aberto,: ruas e praças públicas. Os pioneiros nesta modalidade foram: Ronaldo Pamplona, psiquiatra , o psicólogo Carlos Borba e a psicóloga Regina Reo Fourneaut Monteiro. O primeiro foi realizado na praça da Sé em frente à escadaria da Catedral com o tema: a luta antimanicomial. Muitos outros também aconteceram na Av São João, na praça roosevelt…

  3. Saudações Moreneanas,

    Cá, estou eu, para refazer meu comentário sobre um equívovo no texto da matéria sobre o psicodrama.
    Fiz uma observação que ao reler, após ter enviado, percebi, que na verdade, não há equívoco.
    Moreno realizou experimentos nos anos 20, e consequentemente, (é claro) no século 20.
    Portanto, deixo minhas desculpas pela minha falha e falta de atenção.
    Um forte abraço

    João de Queiroz

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