Na noite de seu quarto aniversário, Victoria Bravo presenciou a invasão de sua casa e o assassinato brutal de seus pais e irmão. O Pichador, como ficou conhecido o garoto de dezessete anos que cometera o crime, poupou a vida da garota, mas deixou-a com a memória de corpos esfaqueados e rostos pichados de tinta preta, o dela incluso. Victoria cresce com o trauma e, vinte anos depois do ocorrido, vive a isolar-se do mundo, confiando em quase ninguém além de si mesma.
Roteirista e autor de títulos como Dias Perfeitos e Suicidas, Raphael Montes é nome marcante na literatura policial e de suspense nacional. Uma Mulher no Escuro (Companhia das Letras, 2019) é o primeiro livro do escritor a apresentar uma protagonista feminina, que é muito bem construída.
Já adulta, Victoria tenta conviver com a depressão, angústia e medo, quase sempre na solidão de seu pequeno apartamento, localizado na Lapa, no Rio de Janeiro. Além desse canto particular, fazem parte do cotidiano de Victoria, o café onde trabalha, a casa de repouso em que está internada a tia-avó, Emília, e o consultório do psiquiatra, o Doutor Max.
Como consequência de tudo que viveu, Victoria desenvolveu grandes dificuldades de relacionar-se. Tia Emília é a única familiar próxima que restou, não construiu laços profundos de amizade (seu único amigo é um rapaz apelidado Arroz, que conheceu na internet e pouco sabe sobre) e não tem interesses românticos. O afeto — e a possibilidade de perda — assusta Victoria, que o evita. Não confia verdadeiramente em ninguém, nem mesmo no Dr. Max, seu psiquiatra. São essas características que tornam um pouco questionável a rápida aproximação da protagonista ao escritor Georges, que frequenta o café em que ela trabalha. A maneira como o romance se desenvolve não parece coerente ao resto da narrativa.
O autor consegue expor o interior conturbado de Vic, e transmite sua amargura e inquietude com uma escrita muito inteligente e perspicaz. Victoria não acolhe em sua vida nada do que não necessite para sobreviver, não se dá o direito de se apoiar em ninguém. Em alguns momentos, se mostra apegada a elementos relacionados à certa infantilidade e inocência, provavelmente por conta dos traumas que sofreu.
Ainda no início do livro, Victoria enfrenta a continuação do pesadelo que vivia a anos: O Pichador retorna. E talvez sempre estivera presente. Quando encontra sua casa invadida e os dizeres “Vamos brincar?” em tinta preta na parede do quarto, Vic se aprofunda na escuridão aterrorizante que a cerca e passa a investigar todos os fatores ligados àquela noite, ao criminoso e à família que perdeu.
O suspense de Montes, como todo bom thriller, prende facilmente a atenção. As reviravoltas são constantes e as suposições do leitor são contraditas a todo momento. Nada é o que parece.
A pequena quantidade de personagens é, ao mesmo tempo, ponto positivo e negativo da trama. Não há grandes fugas do enredo principal, mas o leitor que espera surpreender-se com o final, pode acabar frustrado. Desde o início, fica evidente que algum personagem que faz parte do cotidiano de Victoria teria algo a esconder. Além disso, o desfecho acaba sendo brusco, e cede ao clichê, deixando um pouco a desejar.
Outro ponto que vale destacar é a ambientação da história no Rio de Janeiro, com imagens do cotidiano carioca contracenando com Vic, em seus momentos de calmaria ou aflição — uma das vantagens de se ler um romance nacional.
Em Uma Mulher no Escuro, o autor tece críticas sutis a certos comportamentos presentes na sociedade, como a hipocrisia da moral religiosa e o machismo, ao mesmo tempo que trata de temas mais pesados* e de grande importância. Sobretudo, a temática da formação da personalidade de vítimas, a partir de acontecimentos traumáticos, confere uma dimensão psicológica muito interessante. Raphael Montes entrega uma obra intensa, assustadora, e difícil de largar.
* É importante deixar o alerta de gatilho para cenas de violência e abuso sexual.