Jornalismo Júnior

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100 anos de ‘Mein Kampf’ e o crescimento do neonazismo

Um século depois da publicação do principal texto fascista, o aumento da xenofobia na Alemanha preocupa ao retomar ideias de Adolf Hitler
Por Livia Bortoletto (liviafb@usp.br)

Em 2025, completam-se 100 anos desde a publicação de Mein Kampf (“Minha Luta”, em português), o principal livro de Hitler. Ele foi escrito no período entre-guerras, quando a Alemanha ainda se recuperava dos impactos gerados pela sua derrota na Primeira Guerra Mundial. 

O texto foi redigido em 1924 e lançado no ano seguinte. A tônica do livro é o ódio aos judeus, que, para o líder nazista, seriam os culpados de todos os problemas da Alemanha – como a inflação e o desemprego – e precisavam ser eliminados. O livro também aborda a Teoria do Espaço Vital, segundo a qual povos supostamente superiores, como os arianos, necessitariam de espaços territoriais maiores para garantir seu desenvolvimento. 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, Marcus Mazzari, professor da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em literatura alemã, afirmou que “[o livro] é ódio e ressentimento. É isso. Não tem análise, não tem reflexões racionais. É pura irracionalidade.” Também disse que considera o livro como medíocre, pois o autor não aprofunda nenhum dos tópicos abordados. 

 Capa do livro Mein Kampf, publicado pela editora nazista Eher Verlag [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

O texto foi escrito enquanto Hitler estava preso por uma tentativa de golpe de Estado na Baviera – episódio conhecido como Putsch da Cervejaria. Na ocasião, ele, então líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NAZI), invadiu um comício político que estava acontecendo em uma das maiores cervejarias de Munique, sob o discurso de que faria uma “revolução social” que levaria o país de volta à glória vivida antes da Primeira Guerra Mundial. A tentativa fracassou e Hitler e seus seguidores foram presos.

Logo após a publicação, Mein Kampf não fez tanto sucesso quanto esperava o seu autor. Esse cenário mudou em 1930, quando o Partido Nazista ampliou sua presença no parlamento alemão, através de eleições populares, devido a intensa propaganda política. A partir desse momento, o número de vendas do livro aumentou de modo proporcional ao crescimento do nazismo, de maneira que, ao final de 1944, o número de exemplares vendidos ultrapassava 12 milhões. 

O que foi o nazismo?

O nazismo foi um movimento político e social que ganhou força na Alemanha na década de 1930. Dentre os seus principais ideais estavam o antissemitismo, o anticomunismo, o nacionalismo e o militarismo. Os nazistas chegaram ao poder em 1933, quando Hitler tornou-se chanceler da Alemanha e instaurou uma ditadura no país.

De acordo com Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário, essa idiologia é baseada na ideia de que os arianos — germânicos ou descendentes de alemães — constituiam uma raça pura. Por esse motivo, seriam racialmente superiores em relação aos demais povos, os quais deveriam ser eliminados da Alemanha. 

Baseando-se na premissa da superioridade racial ariana, Hitler hierarquizou os povos etnica e culturalmente, e classificou o povo judeu como o pior deles. Hitler também os acusava de formar monopólios econômicos e de fundar o comunismo.

O movimento começou a ganhar força lentamente na Alemanha nos anos 1920, devido às consequências trazidas pela derrota na Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, franceses e britânicos exigiram, por meio do Tratado de Versalhes, que a Alemanha pagasse uma alta indenização, a qual gerou uma crise econômica sem precedentes na história alemã. A moeda do país se desvalorizou, o que resultou em uma hiperinflação, e o desemprego cresceu. 

Como consequência dessa crise, o povo alemão enfrentou a escassez de alimentos e de recursos, a qual gerou fome e miséria no país. A Alemanha estava dominada por um descontentamento em relação ao governo, pois este não foi capaz de sanar a crise econômica. Esse processo fez com que alguns alemães perdessem um pouco da confiança que depositavam no regime democrático e passassem a buscar soluções mais radicais, como as apresentadas pelo nazismo. A crise gerada pela Primeira Guerra Mundial aos poucos foi superada, e os nazistas perderam o pouco destaque que haviam obtido no pós-guerra.

Foi no começo da década de 1930 que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães de fato ganhou espaço no parlamento alemão (Reichstag). Nas eleições de 1928, o partido passou a constituir 3% do parlamento; já em 1932, alcançou 37% dos assentos. Esse aumento de popularidade se explica pela crise econômica que atingiu a Alemanha após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, já que os alemães voltaram — dessa vez com mais força — a considerar as propostas mais radicais para solucionar a crise. Com os parlamentares nazistas constituindo 37% do Reichstag, o Partido NAZI conquistou a maioria do parlamento, e, por isso, detinha o direito de indicar o próximo chanceler. Em 1933, Hitler foi indicado pelo seu partido e nomeado chanceler pelo então presidente do país.

Hitler aperta a mão do então presidente da Alemanha após ser nomeado chanceler [Imagem: Reprodução/World History Encyclopedia]

Um episódio específico, porém, forneceu a Hitler a oportunidade de transformar o governo em uma ditadura, já no primeiro ano de seu mandato: o Incêndio do Reichstag. Alguém, que até hoje não se sabe com certeza quem foi, pôs o prédio do parlamento alemão em chamas. O chanceler propagou a ideia de que o incêndio havia sido uma tentativa de revolução comunista, e, sob essa justificativa, decretou Estado de Exceção — condição em que as ações do Estado não precisam seguir a Constituição, ou seja, são irrestritas. Em 1934, o último obstáculo de Hitler foi superado: o então presidente morreu e Hitler assumiu o seu lugar, completando a nazificação da Alemanha. 

O governo de Hitler foi marcado pela repressão aos não arianos, em especial aos judeus. Leis hostis a esse povo foram criadas, e, em última instância, o plano de extermínio dos judeus foi posto em prática. O líder nazista tentou primeiramente matá-los com fuzis, depois por meio de furgôes de gás, e, por fim, através dos campos de concentração. Dessa maneira, o projeto de Hitler assassinou seis milhões de judeus, no episódio conhecido como Holocausto. 

“Foi um vasto trabalho para promover a manutenção da raça pura e fazer tudo o que era possível para eliminar as raças inferiores.”

Izidoro Blikstein

Neonazismo: grupos tentam reviver propostas de Mein Kampf

O neonazismo é um movimento político que propõe o resgate integral ou parcial das ideias de Hitler. As principais características dessa ideologia são o antissemitismo, a exaltação do militarismo, supremacia racial branca e a xenofobia. Eles propagam discursos de ódio contra judeus, pretos, feministas, comunistas, anarquistas e defensores da diversidade.

Neonazistas atacam parada do orgulho LGBTQIAPN+ na Polônia [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Os grupos neonazistas costumam atuar de modo clandestino, utilizando a internet para propagar suas ideias e conseguir apoiadores. Eles fazem uso de fóruns on-line, jogos, endereços da deep web e redes sociais, como o X, o Instagram, o Facebook e o Telegram. Nos últimos anos, partidos com ideias neonazistas vem ganhando força no cenário político. Segundo o professor Marcus Mazzari, eles têm conquistado cada vez mais votos por meio da disseminação de fake news e de desinformação. 

Dentre os fatores que explicam o avanço do neonazismo, estão os dilemas enfrentados pela economia e pela sociedade alemã atual – como a perda em competitividade para outros países e a chegada de imigrantes -, os quais fazem com que a população perca a confiança nos preceitos democráticos e busque soluções mais radicais — assim como ocorreu na ascensão do nazismo da década de 1930. 

No âmbito econômico, o país enfrentou uma recessão nos últimos anos, além da inflação e do crescente desemprego, gerados principalmente pela crise da indústria alemã, pela falta de investimentos do governo na economia e na educação, e pelo envelhecimento da população do país. Ainda houve alta do preço da energia, principalmente durante 2022, devido à guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Em resposta às sanções impostas à Rússia pela União Europeia, Vladimir Putin cortou temporariamente o fornecimento de gás para a Alemanha — o qual era a sua principal fonte de energia.  O país também vem perdendo competitividade para os Estados Unidos e para a China, mesmo em áreas econômicas que costumava dominar, como a produção automobilística. 

A Alternativa para a Alemanha (AfD) é o partido que apresenta soluções radicais para os dilemas enfrentados pelo país. Ultradireitista e conservadora, a AfD defende a remigração — expulsão de cidadãos alemães com base em sua etnia —, o fechamento das fronteiras da Alemanha, a substituição do euro pelo marco alemão, o restabelecimento das relações com a Rússia e a saída do país da União Europeia e do Acordo de Paris.

Apesar de o partido ser dominado por homens e defender o conceito conservador de família como um pai e uma mãe, a chefe do partido é Alice Weidel, uma mulher lésbica que cria dois filhos com uma esposa nascida no Sri Lanka. Porém, a líder não fala muito sobre sua vida pessoal. 

A AfD nega ser um partido neonazista, mas, como afirma Mazzari, o ideário político do partido coincide em pontos chave com a ideologia nazista descrita em Mein Kampf. O partido retoma as ideias de Hitler principalmente por meio da ideia de remigração, pois esta seria uma limpeza étnica semelhante à almejada pelo líder nazista nos anos 1930. “Hitler, quando começou a surgir, encontrou uma atmosfera extremamente fecunda e receptiva a ideias extremistas. A AfD partilha disto”,  explica o professor, aludindo aos cenários de crise econômica e política presentes no país tanto em 1930 quanto hoje. Ainda apontou que, assim como o nazismo tinha os judeus como seus “bodes expiatórios”, a AfD culpabiliza os imigrantes pelos dilemas enfrentados pela Alemanha. 

Na contramão da tentativa dos demais partidos alemães de isolar a AfD e inibir seu crescimento, o partido extremista dobrou o seu eleitorado e se tornou a segunda maior força política do país após as eleições de fevereiro de 2025. Com a impopularidade do antigo primeiro-ministro Olaf Scholz e o apoio de Donald Trump e de Elon Musk, o partido ultrapassou o Partido Social Democrata e os Verdes — siglas que dominavam o governo de coalizão anteriormente liderado por Scholz. 

Izidoro Blinkstein, em uma análise geral desse contexto do crescimento do extremismo de direita, afirmou que a sociedade atual tende a acreditar que é preciso um líder forte e violento para lidar com os dilemas sociais, políticos e econômicos, em parte devido a frustrações com governos anteriores. Por esse motivo, consideram a possibilidade de deixar de lado os pilares democráticos.

Crescimento da xenofobia

De acordo com a tese escrita pelo sociólogo Sérgio Costa, da Universidade Livre de Berlim, uma das principais consequências do avanço de grupos e partidos neonazistas na Alemanha é o aumento do número de casos de xenofobia. Isso porque, quando os políticos da extrema-direita propagam discursos preconceituosos contra estrangeiros abertamente, os seus apoiadores se sentem autorizados a agir de modo semelhante em seu cotidiano. 

Segundo um levantamento do Ministério do Interior alemão, houve um crescimento de 813% das denúncias contra racismo e xenofobia no país entre 2019 e 2023. Os dados mostram que elas passaram de 1,6 mil para 15 mil queixas de crimes de ódio por ano. 

O foco central dos extremistas são os muçulmanos, visto que o país recebeu muitas pessoas vindas de países de maioria islâmica ou de fé muçulmana durante a crise dos refugiados em 2015 e 2016. Alice Weidel, por exemplo, já chamou homens islâmicos de “homens com facas” e mulheres muçulmanas de “meninas de véu”. 

Os brasileiros que moram na Alemanha também sofrem esse tipo de preconceito. Gabriel Nunes, estudante de engenharia elétrica da USP, descreveu, em entrevista à Jornalismo Júnior, algumas das situações de xenofobia pelas quais passou enquanto fazia um intercâmbio de sete meses no país.  Em uma das ocasiões, um dos atendentes de um ponto de retirada de entregas da Amazon, ao perceber que o estudante não falava alemão fluentemente, começou a tratá-lo de modo agressivo. “[O funcionário] levantou a manga da blusa e mostrou uma tatuagem no braço da bandeira da Alemanha e da águia que simboliza o exército alemão. Disse que dentro de sua loja só se falava alemão, e esperava que eu fizesse o mesmo”.

Gabriel cursa engenharia elétrica na USP e conseguiu estudar na Alemanha por meio da universidade [Imagem: Acervo Pessoal/Gabriel Nunes]

Ele também contou que, na noite de Natal, quando voltava para casa de trem junto de seus amigos — também brasileiros — um homem alemão começou a circular pelos vagões expressando frases de ódio aos imigrantes em alemão. 

“Ele dizia que todos os imigrantes e suas famílias deveriam morrer.” 

Gabriel Nunes

O estudante contou que foi vítima de preconceito durante a Oktoberfest, uma festa tradicional da Alemanha. Segundo ele, os funcionários das tendas presentes no evento ignoravam os pedidos de Gabriel e de seus amigos, e, quando os atendiam, os tratavam de forma grosseira. “Percebi um sentimento de bastante descaso. Era para a gente se sentir desconfortável mesmo de estar ali. Nós percebemos que não éramos bem-vindos”.

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