Em meio à pandemia de coronavírus, as principais competições de ginástica artística passaram por algumas reformulações. As Olimpíadas de Tóquio foram adiadas para 2021, e o Campeonato Mundial de Ginástica Artística teve que mudar de sede por conta das complicações financeiras causadas pela pandemia. Além disso, a expectativa é que o Mundial seja ofuscado por ocorrer no mesmo ano das Olimpíadas, já que possivelmente os principais atletas da modalidade se dedicarão à disputa em Tóquio.
Apesar da situação complicada, 2020 é um ano especial para a ginástica, especialmente a brasileira. Uma importante figura da modalidade, conhecida pela recente candidatura a vereador, volta por um momento aos ginásios nessa matéria. Hoje, 26 de novembro, faz 15 anos que Diego Hypólito conquistou a medalha de ouro na modalidade de solo do Campeonato Mundial de Ginástica Artística de 2005, em Melbourne, na Austrália. A conquista ficou marcada como a primeira de um integrante brasileiro de equipe masculina e foi o segundo dos cinco títulos que o Brasil tem na competição. Com a medalha, Hypólito ajudou a construir novos caminhos para o esporte e para a modalidade no país.
A trajetória de Hypólito
Nascido em Santo André, em São Paulo, Diego Matias Hypólito poderia ter sido lembrado por outro nome. Quando Diego ganha ares cariocas e chega para treinar no Clube de Regatas do Flamengo, na infância, era o “irmão da Daniele”. Sua irmã, Daniele Matias Hypólito, havia sido selecionada para treinar ginástica artística pelo clube rubro negro e logo se destaca, incentivando o irmão a também frequentar o ginásio.
Passando dificuldade financeira nos anos iniciais no Rio, mas sem abandonar os treinamentos, Diego dava seus pulos para sair do nível iniciante. Seu processo de treinamento mais profissional começou aos oito anos de idade, abaixo da faixa etária padrão – de aproximadamente dez anos – em que geralmente os meninos são selecionados. De acordo com Pauline Vargas, coordenadora da equipe de ginástica rítmica da Escola Internacional de Curitiba e professora responsável pelas atividades ginásticas na Universidade Positivo, “o processo de formação de um atleta de alto nível, que o Diego chegou, demora cerca de 10 anos”, treinando diariamente.
Logo o jovem Hypólito começa a colecionar medalhas em campeonatos nacionais na categoria júnior e mais tarde nas categorias sênior. Diego conseguia a cada vitória destacar a ginástica masculina, carregada de estereótipos e preconceitos que valem um tópico à parte. Além disso, aquele tal “irmão da Daniele” ia perdendo significado para um Hypólito que caminhava por si só.
Depois das importantes conquistas nacionais, era a hora de começar a carimbar o passaporte representando o Brasil como ginasta. Em 2003, conquistou duas medalhas de prata nos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo, na República Dominicana. Nos mundiais de ginástica de 2002 e 2003 saltava mais próximo ao pódio, conquistando respectivamente a quinta e a quarta colocação. Até que, em 2005, a mais de 13.000 quilômetros de Santo André, o ginasta do ABC concluiu um marco histórico para a ginástica brasileira.
O Campeonato Mundial de Ginástica de 2005
O Campeonato Mundial de 2005 foi a 38ª edição da competição e aconteceu em Melbourne, na Austrália, entre 21 e 27 de novembro. Na ocasião, não houve disputa por equipes. Os atletas disputaram individualmente em cada modalidade. Os campeonatos pleiteados no ano anterior e posterior às Olimpíadas, como no caso de 2005, ano seguinte aos Jogos Olímpicos de Atenas, costumam atrair maior atenção. São oportunidades de conhecer melhor os atletas que disputarão as Olimpíadas ou dar início ao período de preparação do novo ciclo olímpico.
Desta forma, pode-se dizer que já de início Hypólito atraia parte da atenção. Os bons resultados obtidos em anos anteriores e o início de um novo ciclo olímpico em 2005 fariam com que Diego Hypólito representasse uma boa oportunidade de o Brasil chegar com força nos mundiais e olimpíadas seguintes.
Segundo Pauline, em 2005 Diego já estava pronto para disputar um título de tamanha importância, tanto no aspecto físico quanto no aspecto técnico. Para o padrão da época, a série de movimentos reproduzida por Diego era muito técnica, apesar de atualmente ser considerada uma sequência de dificuldade moderada, por conta dos avanços que ocorreram no esporte desde então. Além disso, o novo código de pontos da ginástica, que entrou em vigor em 2005, pressupõe que a cada ciclo olímpico as regras sejam alteradas a fim de elevar o nível de exigência no esporte.
Ainda assim, o desempenho da participação de Hypólito foi excepcional, e sua superioridade deve ser reconhecida. “A série do Diego, especificamente em 2005, realmente era a melhor tecnicamente. Na ginástica, a gente cobra muito na parte da execução. A ponta de pé e as posições devem ser bem demarcadas. E o Diego, desde aquela época, executava os movimentos com perfeição. Ele manteve uma postura técnica muito adequada”, completa Pauline.
A qualidade técnica de Diego, a sequência de movimentos realizados e a perfeição de sua postura durante a série garantiram a medalha de ouro na modalidade de solo da competição. Essa havia sido a segunda medalha de ouro da ginástica brasileira em mundiais (a primeira foi conquistada por Daiane dos Santos em 2003), primeira na categoria masculina e primeiro grande título de expressão internacional na carreira de Diego.
Condições de treinamento e fatores pessoais
Além do pódio e de um pequeno círculo dourado para pendurar ao pescoço, existe a projeção de uma sombra repleta de contexto. Na parte iluminada, Diego trouxe uma série de patrocínios, como o da Caixa Econômica Federal, e equipamentos de qualidade à ginástica a partir de sua vitória. Mas no oposto, evidencia o movimento coletivo da cultura da medalha, ou seja, só dar condições e atenção a um esporte quando há medalhistas.
Talvez o ponto mais sensível nessa sombra sejam os abusos e as torturas. Treinamentos baseados em repetições exaustivas eram frequentes no meio da ginástica, mas Pauline observa uma melhora. Na sua época como ginasta, ela mesmo chega a relatar que a “treinadora falava assim: ‘Hoje ninguém vai embora se a gente não tiver 20 passagens perfeitas!’” e o quanto não era raro esse tipo de comportamento. E para complementar, esse fator começa a gerar lesões nos atletas que podem atrapalhar consideravelmente nas competições e o tiram do ginásio.
Em seu livro, Hypólito conta das lesões de treinamentos exaustivos e torturas que não só ele sofria, mas que também atingiam seus colegas. Nessa narrativa no plural, há desde experiências em que eles foram obrigados a ficarem nus com um “eu sou gay” escrito ao peito, enquanto veteranos tiravam fotos, até uma em que tiveram que participar de uma manipulação de pilhas com o ânus.
E onde está a comissão técnica? Sabia e parte ainda participava, como o próprio Diego narra em sua experiência pessoal. Ginastas desobedientes, seja lá o que isso signifique, eram presos em caixas de treinamento e torturados com pó de magnésio e água. Os atletas ainda eram freados de trazer as condições a público por instituições que queriam manter uma imagem. Hypólito sofreu dessa tortura, o que pode ser difícil transparecer em meio às piruetas e saltos no ar e ao calor do pódio.
Os abusos e torturas marcaram Diego e inúmeros atletas da ginástica, mas há algo que ele enfrentava internamente. Crescendo em uma família religiosa e conservadora, tinha receio de assumir sua homossexualidade. Um técnico certa vez ainda falou para a mãe não se descuidar ou o filho poderia virar gay. Claro, em um tom pejorativo e homofóbico. Assim, podia compreender que tanto a esfera pessoal quanto a profissional condenavam sua sexualidade, bem como a de diversos atletas até hoje.
“O que deve ser pauta é o que eles fazem” no ginásio e não um policiamento das escolhas individuais de cada atleta, como reforça Pauline. Hypólito vai passar por muitos mais baques emocionais por conta dos fatores citados acima e outros até encontrar o caminho para um acompanhamento psicológico, que vem ganhando destaque no esporte. Imagine a situação emocional de Diego em ter que suprimir sua sexualidade por conta de amarras sociais por diversos anos. Algo que, novamente, não transparece ao pódio.
2005 para a ginástica
A vitória de Diego no Mundial trouxe os já citados patrocínios para a ginástica. Porém, vale ressaltar que estruturalmente a ginástica artística ainda é prejudicada. A modalidade não está entre as prioridades nos programas de desenvolvimento esportivo, e o alto custo de ginásios representa uma dificuldade para o desenvolvimento da ginástica. Este fator deixa esse esporte ainda mais inacessível, eliminando uma série de outros futuros medalhistas.
O preconceito na ginástica também foi pauta após essa conquista. Há um estereótipo de que a ginástica é um esporte exclusivamente feminino, e a conquista de Diego é importante para a desconstrução dessa visão, como comenta Pauline: “Foi um grande marco para a ginástica brasileira. Isso é bem importante enfatizar. No Brasil a gente tem uma cultura muito forte da ginástica para a as meninas, e muito pouco para os meninos”.
A medalha de ouro neste Mundial vai além de sequência de movimentos realizadas sobre o tablado. Em poucos segundos, Diego trouxe perspectivas atemporais para a ginástica brasileira.