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A bola contra o poder: quando o futebol se torna veículo de resistência

Por Renato Navarro (renatonavarro@usp.br) Desde seu surgimento na Inglaterra do século XIX, o futebol conta com duas características essenciais para sua popularização: a simplicidade de sua prática e a forma que mexe com as emoções dos jogadores e, principalmente, torcedores. Além de transformá-lo em fenômeno global, esses aspectos permitem que o futebol seja uma eficaz …

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Por Renato Navarro (renatonavarro@usp.br)

Desde seu surgimento na Inglaterra do século XIX, o futebol conta com duas características essenciais para sua popularização: a simplicidade de sua prática e a forma que mexe com as emoções dos jogadores e, principalmente, torcedores. Além de transformá-lo em fenômeno global, esses aspectos permitem que o futebol seja uma eficaz ferramenta de mobilização política e social. Não por acaso, ao longo do século XX, diversas equipes utilizaram esse esporte para se opor a governos ditatoriais, atrair atenção a suas lutas e alimentar a esperança de liberdade de seus povos.

Os padeiros que derrotaram nazistas

Jogadores do FC Start, de uniforme escuro, após partida (Imagem: Reprodução)

Entre dezembro de 1940 e junho de 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial, as forças de Hitler invadiram e ocuparam parte do território soviético, incluindo a região da Ucrânia. Os nazistas ordenaram que todas as agremiações esportivas anteriormente relacionadas com os soviéticos fossem fechadas imediatamente, permitindo que novas equipes ucranianas surgissem apenas somente no fim do mesmo ano. Foi quando Georgi Shvetsov, repórter esportivo e treinador, fundou o clube Rukh com a intenção de reunir os jogadores dos antigos times de Kiev e que agora estavam fora do esporte.

Um desses jogadores era o então célebre goleiro Nikolai Trusevich, ex-atleta do Dínamo de Kiev. Convidado a participar do recém-inaugurado Rukh, ele recusou a oferta por achar que Shvetsov estaria colaborando com os invasores, e preferiu trabalhar de faxineiro em uma panificadora da cidade onde outros ex-jogadores já se encontravam. Joseph Kordik, diretor do estabelecimento e bem relacionado com os alemães, era um antigo torcedor do Dínamo e fã de futebol. Com a chegada de Trusevich, ele sugeriu que um time de trabalhadores do local fosse formado, dando assim origem ao FC Start.

Emblema do FC Start (Imagem: DevianArt/SirJohnRafael)

O Start contava, no total, com oito atletas que tiveram passagem pelo Dínamo de Kiev, além de outros três que defendiam o Lokomotiv, da mesma cidade. Completando o elenco, havia três policiais ucranianos e um maquinista alemão. Os jogadores inicialmente ficaram divididos quanto à entrada na liga local: uma parte apoiava, pois isso fortaleceria o orgulho dos ucranianos, enquanto outra se opunha, pois o torneio seria uma tentativa de tornar a ocupação alemã mais aprazível. Ao fim, o clube aceitou participar da competição, e começou muito bem: sete vitórias nas primeiras sete partidas, marcando 37 gols e levando apenas 8. O primeiro jogo, inclusive, foi uma goleada de 7 a 2 no Rukh.

No dia 6 de agosto de 1942, o Start venceu a Flakelf, equipe formada por combatentes da Luftwaffe (força aérea nazista), pelo placar de 5 a 1. Os alemães exigiram então uma revanche, que ocorreu três dias depois em um Estádio Zenit lotado: mais de vinte mil torcedores empolgados e orgulhosos com o time local compareceram, além de policiais alemães e oficiais da SS. Novamente, o time da padaria foi o ganhador, dessa vez com o resultado de 5 a 3.

Cartaz anunciando o segundo jogo entre Start e Flakelf, em 9 de agosto de 1942 (Imagem: Reprodução)

Os soviéticos, em uma versão propagandística da história, acabaram por denominar este como o “Jogo da Morte”. Eles alegaram que os jogadores do Start teriam sido mortos pela SS logo após a partida, fortalecendo ainda mais o mito de resistência. No entanto, historiadores ucranianos que investigaram o caso após a queda do regime socialista, afirmam que o fim do time ocorreria dali a uma semana, e de forma diferente.

Em 16 de agosto, Start e Rukh se enfrentaram mais uma vez, com novo triunfo do Start por 8 a 0. Shvetsov, irritado com a humilhação sofrida por seus comandados, teria denunciado os jogadores adversários à Gestapo (polícia secreta alemã) como sendo agentes infiltrados da NKVD (polícia soviética). Nos quatro dias que se seguiram, os nazistas prenderam oito jogadores enquanto trabalhavam na padaria, e apenas três sobreviveram à guerra: um dos detidos foi baleado ao tentar escapar da Gestapo, enquanto outro foi torturado até a morte na tentativa de se arrancar a confissão de envolvimento com a NKVD. Além disso, três homens foram fuzilados, acusados de matar o cachorro do comandante do campo de concentração de Syrets, onde estavam aprisionados.

A causa basca entre campo

Ikurriña, a bandeira do País Basco (Imagem: Daniele Schirmo)

A Guerra Civil Espanhola teve início após a tentativa de golpe de estado de Francisco Franco, em 18 de julho de 1936, sobre o governo da Segunda República. Pregando o anticomunismo, o futuro ditador e seu partido fascista, a Falange Espanhola, lideraram os conservadores contra a aliança de esquerda que havia sido eleita democraticamente, a Frente Popular.

Logo no início do conflito, o País Basco — ou Euskal Herria, de acordo com o idioma local — aproveitou a liberdade concedida pelos republicanos que regiam o país na época para formar seu próprio governo provisório. O presidente eleito foi José Antonio Aguirre, que, além de advogado e militante do Partido Nacional Basco, era um ex-jogador do Athletic Club (conhecido no Brasil como Athletic Bilbao), clube tradicional da Espanha e símbolo da comunidade basca.

Ciente da visibilidade proporcionada pelo futebol, Aguirre sugeriu que uma seleção basca fosse formada para excursionar, atraindo não só a atenção internacional para sua causa como angariando fundos para a população que sofria com a guerra. Na montagem do time, 6 dos 17 jogadores eram do Athletic, mas havia também atletas de clubes como Madrid (futuramente Real Madrid) e Betis.

Seleção basca em 1939 (Imagem: Reprodução)

Com seus uniformes carregando o verde, vermelho e branco da Ikurriña (bandeira da Euskal Herria), a seleção participou de amistosos na França, Tchecoslováquia, Polônia, União Soviética, Dinamarca e Noruega. Neste meio tempo, as forças nacionalistas tomaram Bilbao e outras cidades bascas, motivando a ida da delegação à América e seu rompimento com a Federação Espanhola e com a FIFA, que compactuavam com Franco. Do outro lado do Atlântico, o time disputou amistosos no Chile, Cuba e México, filiando-se à federação de futebol deste e chegando até mesmo a disputar a liga Primera Fuerza, uma das principais do México, entre 1938 e 1939. Neste ano, no entanto, os fascistas venceram a Guerra Espanhola, obrigando que a equipe fosse desmanchada e seus atletas buscassem lugar em times mexicanos e argentinos.

A ditadura militar espanhola, que duraria até 1975, adotou posturas autoritárias que visavam a homogeneidade social e exaltação da nação: além da repressão a correntes políticas de esquerda, como anarquistas e trotskistas, o governo suprimia os movimentos autonomistas. Com isso, a população das regiões do País Basco e da Catalunha tiveram sua liberdade de expressão restringida, não podendo sequer falar seus próprios idiomas locais ou qualquer outro que não fosse o castelhano. Alguns dos poucos ambientes em que não se podia controlar o que o povo dizia eram os estádios, como o San Mamés, em Bilbao, ou o Camp Nou, em Barcelona.

O time do povo no gulag

Time do Spartak Moscou em 1922 (Imagem: Reprodução)

O futebol chegou ao Império Russo ainda no século XIX, quando foi levado para São Petersburgo por operários ingleses e escoceses. Praticado a princípio por imigrantes e pela classe média local, ao longo da década de 1910 sua popularidade passou a aumentar gradativamente entre os trabalhadores do meio urbano. Isso até que, após um período de grande turbulência política e social ocasionado pela Revolução Russa, ocorrida em 1917, e pela Guerra Civil Russa, que durou entre 1918 e 1921, o regime socialista passasse a prover o futebol de forma significativa, tornando-o o principal esporte do país.

Durante a época de instabilidade estatal, Lenin adotou o Novo Plano Econômico (NEP), o qual permitia o emprego de práticas capitalistas internas a fim de recuperar a economia russa e solucionar a crise de abastecimento que o país sofria. Neste contexto, os clubes de futebol que surgiam também se organizavam como empresas privadas. Até que, em 1924, após a morte de Lenin e a ascensão de Stalin ao poder, as políticas do NEP foram abolidas.

Com a centralização total da economia, os times acabaram sendo utilizados pelo Estado como forma de dar visibilidade a suas instituições, fornecendo em troca o aporte necessário para a manutenção e desenvolvimento das equipes. Alguns exemplos disso são Zenit (ligado à companhia de energia da então Leningrado, atual São Petersburgo), Lokomotiv Moscou (como o nome sugere, relacionado ao setor ferroviário), CSKA Moscou (apoiado pelo Exército Vermelho) e o Dínamo Moscou (mantido pelo Ministério do Interior soviético). Um time, porém, traçaria um caminho diferente.

Emblema do Spartak Moscou (Imagem: Futbolniy Klub Spartak Moskva)

Criado em 1922 pelos irmãos Starostin, trabalhadores de uma empresa alimentícia, o Krasnaya Presnya ganhou esse nome devido ao local onde foi fundado: Presnya, bairro industrial e pobre de Moscou, onde operários viviam, trabalhavam, e jogavam bola nas ruas em momentos de lazer. A equipe ainda se chamaria Promkooperatsiya após se associar a uma cooperativa industrial, mas, em 1935, recebeu o nome pela qual é conhecida até hoje, Spartak Moscou.

A alusão a Espártaco condizia com a postura crítica de Nikolai Starostin, então presidente do time, em relação à rigidez e controle do regime soviético sobre a população. Da mesma forma que o escravo liderou mais de 40 mil homens em uma revolta contra o Império Romano, Starostin via seu time de trabalhadores — tanto no elenco quanto na torcida — se tornar cada vez mais popular enquanto fazia frente aos esquadrões comandados pelas estatais e pelo exército. A prova de sua qualidade se daria de forma rápida: o Spartak venceu três das quatro primeiras edições do campeonato soviético, em 1936, 1938 e 1939.

Os êxitos e a popularidade, porém, cobrariam seu preço. Durante os anos de conquistas, o Spartak cultivou enorme rivalidade com o Dínamo Tbilisi, equipe que tinha como presidente honorário Laventi Beria. Além de chefe da NKVD, Beria era o braço direito de Stalin e dispunha de grande influência junto ao governo soviético, e usou isso para perseguir os Starostin. Sob a alegação de estarem tramando a morte de Stalin e disseminando ideais burgueses no futebol, os quatro irmãos foram presos em 1942 e sentenciados ao trabalho forçado em gulags.

Com a morte de Stalin em 1953, os irmãos Starostin foram libertos e anistiados pelo governo. Em 1955, Nikolai assumiu novamente a presidência do clube, cargo que só deixou em 1992 após outras sete conquistas do campeonato soviético.

Estátua homenageando os irmãos Starostin na Otkrytie Arena, estádio do Spartak (Imagem: Futbolniy Klub Spartak Moskva)

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