Por Claire Castelano (claire.castelano04@gmail.com) e Luis Eduardo Nogueira (dadopnogueira@gmail.com)
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira brasileira a adotar o sistema de cotas, no vestibular de 2003. À época, a decisão seguiu a Lei estadual nº 3708, elaborada no governo Anthony Garotinho, e estabeleceu que 50% de suas vagas seriam destinadas a estudantes oriundos de escolas públicas. As cotas com corte racial só surgiriam no ano seguinte, na mesma UERJ e na Universidade de Brasília (UnB), pioneiras nacionais na questão. Enquanto isso, a Universidade de São Paulo, a melhor do país, só lançaria em 2006 os seus, até hoje, únicos programas de ação afirmativa – o INCLUSP (Programa de inclusão social da USP) e o PASUSP (Programa de Avaliação Seriada) -, ainda apenas voltados a bonificações aos candidatos. Sobre uma adesão geral às cotas, a universidade prefere não se pronunciar.
Desde o ano passado, entretanto, tem ocorrido uma adesão parcial. A deliberação por utilizar a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como critério de aprovação permitiu que os candidatos pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU) pudessem concorrer a vagas na USP separadas segundo o fator racial. Foram 225 delas espalhadas entre 13 cursos. Destes, no entanto, 11 não tiveram nenhum selecionado em função da alta nota de corte definida para o ingresso.
A adesão ao SiSU foi uma alternativa branda da USP para não alterar o atual formato de seu vestibular, não implementando o sistema de cotas. Segundo dados da Pró-Reitoria de Graduação, a estreia no SiSU, na realidade, diminuiu ainda mais o número de negros (seguindo o grupo PPI, de pretos, pardos e indígenas) matriculados na universidade. Se eles eram 1232 (32%) em 2015, neste ano o número caiu a 1.089 (28%). Em junho último, porém, como reivindicação de seus estudantes em greve, algumas unidades uspianas tiveram a proposta de cotas raciais parcialmente acatada. O Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA), por exemplo, deliberou que 13,5% de suas vagas — toda esta porcentagem proveniente do SiSU — serão destinadas a PPIs. A FAU, na semana passada, também decidiu por 30% de vagas do SiSU por cotas raciais. Enquanto pauta de greve específica de cada escola, faculdade ou instituto, a aceitação das cotas é uma vitória. Mas, sem mudança significativa no panorama geral da inclusão na universidade, a USP ainda tem de conviver com o par de programas de ação afirmativa que tem.
INCLUSP e PASUSP
A primeira edição do INCLUSP foi aplicada à Fuvest de 2007. Foram concedidos bônus de 3% na primeira e segunda fase para candidatos que haviam cursado o Ensino Médio inteiramente em escolas públicas, percentual aumentado no decorrer dos anos, chegando a 12% em 2009. Neste mesmo ano, passou a valer também o PASUSP, que acrescentou em 3% os bônus para estudantes que tivessem cursado também o Ensino Fundamental em escolas públicas. Caso um candidato não aprovado no vestibular do ano anterior (utilizando o PASUSP), tendo atingido um mínimo de 27 pontos na primeira fase do exame, prestasse a Fuvest novamente, receberia, além dos 15% (INCLUSP+PASUSP), mais 5% de bonificação, num sistema cumulativo.
Apesar da existência dos programas de inclusão há mais de dez anos, a universidade adotou pela primeira vez a questão racial como um dos seus critérios apenas em 2013.
O participante autodeclarado PPI passa a receber um aumento de 5% (tambémsendo cumulativo com aos demais bônus anteriormente citados).
Os programas, todavia, mostram-se insuficientes. A desigualdade racial na USP fica clara ao analisar-se as porcentagens de negros no país e nos seus campi. Segundo o IBGE 2015, enquanto elesnegros representam 54% da população brasileira, a universidade possui apenas 7% deles entre seus estudantes. Dados da Fuvest 2015 mostram que, dentre os 10 cursos mais concorridos no concurso, seis (Medicina em Ribeirão Preto, Psicologia, bacharelado em Artes Cênicas, Audiovisual, Publicidade e Propaganda e Arquitetura em São Carlos) não apresentaram sequer um único calouro negro. Outro gigantesco contraste racial que a Universidade de São Paulo tem é a porcentagem de docentes e funcionários terceirizados negros. Dentre os aproximados 6 mil professores, apenas 0,09% destes são negros, porcentagem que sobe para 70% ao se analisar os funcionários terceirizados.
As cotas por aqui
No Brasil, são aplicadas as cotas sociais e raciais, em maior peso, na educação superior. O país é marcado pela segregação, ocupando o oitavo lugar no ranking de desigualdade social e carregando 200 anos de escravidão, com quase nenhuma medida de apoio para superar a condição subalterna à qual os negros foram relegados.
Como citado no começo desta reportagem, a UERJ foi a primeira a aderir ao sistema cotista. No início, o preconceito e a discriminação racial eram grandes, tanto dentro das universidades com cotas quanto por parte de estudantes de outras. Um caso famoso ocorreu na universidade: em um ambiente universitário com uma imensa maioria branca, devido à inexistência de políticas de ações afirmativas até então, o fato de a universidade apresentar uma parcela considerável de estudantes negro era estranho às demais faculdades. Num campeonato esportivo, a torcida da UERJ foi vítima de ofensas racistas, sendo chamada de “Congo” por rivais. Como resposta, a torcida da UERJ adotou a expressão como seu nome, que permanece até hoje.
No ano de 2012, foi sancionada a Lei de Cotas (Lei Federal nº12711) pela presidente Dilma Rousseff. Ela instituiu uma reserva de 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. Destas, 25% devem ser preenchidas por candidatos com renda familiar de 1,5 salário mínimo per capita. Além disso, uma porcentagem — proporcional à população do estado — deve ser preenchida por pretos, pardos e indígenas.
Levantamentos do MEC de 2013, dez anos depois da primeira adoção de cotas no Brasil, mostram que a porcentagem de negros que cursam ou concluíram o ensino superior subiu de 1,8% para 8,8%, ainda que o número continue a ser baixo num panorama geral.
Acerca do sistema de cotas, aparece o debate sobre possíveis quedas no nível dos cursos, como se estivesse ocorrendo um nivelamento “por baixo”. Um levantamento feito na UnB no ano de 2015, entretanto, demonstra que o desempenho dos cotistas acompanha o de não cotistas de muito perto, apresentando as mesmas quedas e ascensões de nota ao longo dos semestres. Em alguns cursos, a média de estudantes cotistas é até mesmo mais alta que a média dos demais. O mesmo vale para os índices de evasão dos cursos, que em muitos casos é maior para os estudantes não cotistas.
Em São Paulo, a Unesp aprovou, em 2014, o Sistema de Reserva de Vagas para Educação Básica Pública, garantindo 1.134 vagas (15%) para estudantes que tenham feito integralmente o ensino médio em escola da rede pública e, entre elas, 391 a candidatos que se autodeclarem pretos, pardos ou indígenas. Já a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a USP mantêm apenas o sistema de bonificação.
O que é ser negro na Universidade de São Paulo?
Os 7% de estudantes negros carregam a bagagem diária de ser uma minoria. Há movimentos, centros de debates e movimentações construídos por eles para ampliar cada vez mais o espaço do negro na Universidade. Porém, o grupo recebe pouco apoio da universidade e sofre, constantemente, com o silenciamento por parte de outras organizações e entidades.
Já escasso com os estudantes, o contato do movimento negro com a reitoria é menor ainda. Reuniões da diretoria sobre a implantação de cotas e ações afirmativas ocorrem sem a participação de representantes da classe estudantil negra, o que põe em xeque a representatividade na tomada de decisões que envolvem diretamente os estudantes desse segmento na Universidade de São Paulo.
Camila Freitas, graduanda em Jornalismo, conta que o que mais a aflige na universidade é a falta de representatividade, a solidão. “Quando você olha ao seu redor, na sua sala de aula, e entende que ninguém ali é como você”, diz ela. “E o que fica mesmo é uma tristeza porque quanto mais você procura mais você enxerga a USP branca, somos poucos, quase inexistentes.”
Ela observa que, logo que entrou na faculdade, pensou que sofreria algum tipo de discriminação por ter se beneficiado dos bônus recebidos na Fuvest. Felizmente, ela afirma nunca ter sido vítima de preconceito. Ao relatar a preocupação, Camila comprova que, ainda que não fizesse parte da Universidade, ela seria excluída por sua cor.
Sobre resistir, Fernanda Almeida, estudante da Faculdade de Economia e Administração (FEA), diz que ser uma aluna negra na USP é uma das maiores formas de resistência e luta que ela já encontrou. “É adentrar o sistema que quer me expulsar dos espaços que me pertencem, é mostrar para o opressor que apesar do esforço dele para me diminuir, me manter à margem, eu estou aqui, e eu resisto, e, cada dia, vão ter mais pretos resistindo”.
Apesar de ser uma vitória, Fernanda acrescenta que estar lá não basta, mas, sim, mostrar para muitos privilegiados que, apesar de estarem na luta ao nosso lado, as oportunidades continuam sendo diferentes. Isto porque, infelizmente, mesmo estudando na melhor universidade da América Latina, ela sabe que não terá, por sua cor, por sua classe e por seu gênero, as mesmas oportunidades. Assim, ela defende seu lugar de fala: “É fazer essas pessoas entenderem que não é só nos incluir nos discursos deles, mas nos incluir nos espaços, de forma verdadeira e efetiva.”