A série Star Trek: Discovery, criada por Bryan Fuller e Alex Kurtzman, retrata Michael Burnham como Especialista de Ciência a bordo da nave USS Discovery, da Frota Estelar. Ela já tratou sobre diversos assuntos, como: trabalho em grupo, liderança, confiança, racionalidade ou emoção, seguir ou quebrar regras, paz ou guerra, ciência ou fé.
Considerando as duas temporadas, a série conta com nove personagens principais:
Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), Saru (Doug Jones), Ash Tyler (Shazad Latif), Paul Stamets (Anthony Rapp), Sylvia Tilly (Mary Wiseman), Gabriel Lorca (Jason Isaacs), Hugh Culber (Wilson Cruz), Christopher Pike (Anson Mount) e Philippa Georgiou (Michelle Yeoh).
Star Trek sempre foi uma produção que tentou trazer valores progressistas para os espectadores, e dessa vez não seria diferente. É a primeira vez que a protagonista não é capitã de uma nave da Frota Estelar e a segunda que é uma mulher negra. Bryan Fuller, um dos criadores da série, é abertamente gay e recebeu um email de ódio enquanto produzia Star Trek: Voyager (1995-2001), quando houve o rumor de que um dos personagens do seriado seria gay, garantiu que pelo menos um personagem em Star Trek: Discovery seria homossexual. E assim foi, as personagens Paul Stamets e Hugh Culber são um casal abertamente homossexual.
Começando dez anos antes dos acontecimentos de Star Trek: The Original Series (1966-1969), a primeira temporada começa com Michael Burnham como Primeira Oficial da nave USS Shenzhou da Frota Estelar, tendo contato com Klingons, este sendo o primeiro da Frota Estelar em mais de cem anos com a espécie. Já nesse episódio piloto surge uma discussão sobre como agir frente a um primeiro contato com uma civilização tão diferente da Federação dos Planetas Unidos, que inclui Humanos, Vulcanos, Andorianos e Tellaritas.
Enquanto a Federação vive sob valores como liberdade, igualdade e direitos universais, os Klingon são um povo orgulhoso, ligados à tradição que valoriza honra e combate. Considerando isso, é colocado como proposta, por Burnham, que ataquem os Klingons imediatamente, o que entra em total conflito com o protocolo: a Frota Estelar não ataca primeiro. A ideia seria repetir o que havia acontecido séculos antes no primeiro contato entre Klingons e Vulcanos:
“Há 240 anos, próximo de H’Atoria, uma nave Vulcana entrou em espaço Klingon. Os Klingons atacaram imediatamente e destruiram a nave. Vulcanos não cometem o mesmo erro duas vezes. Até estabelecerem relações formais, sempre que Vulcanos cruzavam com Klingons, os Vulcanos disparavam primeiro. Eles deram uma saudação em um idioma que os Klingons entendiam. A violência trouxe respeito e respeito trouxe paz. Capitã, temos que dar aos Klingons um ‘Olá Vulcano.”
As diferenças não são apenas entre a Federação e os Klingons. A protagonista da série é uma humana que vive na sociedade vulcana e, apesar de humanos não serem tão emotivos e movidos pela fé como Klingons, ainda possuem problemas para se relacionar com vulcanos, que vivem completamente pelos princípios da Razão. Durante a trama, flashbacks mostram seu desenvolvimento nessa cultura diferente, como tinha que reprimir seus sentimentos, e a segregação que sofria por vulcanos. Seu pai adotivo, Sarek, embaixador de Vulcano na Terra, vive em constante perigo por ter criado uma humana em seu planeta natal e ter um filho híbrido humano e vulcano. Essas questões são sintetizadas pelos Fanáticos da Lógica, vulcanos que seguem radicalmente a razão, acreditam que vulcanos são superiores e que a Federação é um experimento fadado ao fracasso. É uma analogia muito bem construída sobre a ascendente xenofobia no mundo, principalmente na Europa, que deseja, por exemplo, o fim da União Europeia.
Por se tratar de uma série de pura ficção científica, os criadores e roteiristas sempre tiveram a liberdade de discutir muitos assuntos, como a história do povo de Saru, os Kelpien, [SPOILER] que sofreram opressão pela manipulação de informação, sendo levados a acreditar em certas filosofias e rituais, para que fossem controlados populacionalmente.
Outro arco é sobre o povoado de Nova Eden, um assentamento humano bastante distante da Terra. Seus fundadores foram pessoas que estavam procurando abrigo em uma igreja, para se proteger da destruição nuclear da Terceira Guerra Mundial. O edifício inteiro foi teletransportado por alguém do futuro, que é desenvolvido na série, levando esses a acreditarem que foram salvos por uma entidade divina e que eram os únicos sobreviventes da Terra.
Essa história é extremamente interessante pela questão do contraste entre Ciência e Fé, e pela Primeira Diretriz, que proíbe interferência no desenvolvimento de civilizações pre-warp (sociedades mais primitivas, que ainda não desenvolveram tecnologia Warp Drive que permite viajar pelo espaço em velocidades acima à da luz). Apesar de humanos da Terra serem warp-capable, ou seja terem alcançado o estágio espacial de viagem superluminal, esse vilarejo ainda é categorizado na Diretriz, por ter uma cultura pre-warp. Por esse motivo, é proibido que seja revelada a verdade sobre a Terra e tudo que se sabe sobre outras civilizações para eles.
As personagens são muito bem construídas e desenvolvidas ao longo da série, e muitas vezes apresentam problemas que muitos se identificam, como o transtorno de múltipla personalidade de Ash Tyler, a falta de autoconfiança de Sylvia Tilly – principalmente quanto ao seu objetivo de se tornar capitã –, Burnham esconder os sentimentos durante sua adolescência em Vulcano e sua propensão de se culpar por acontecimentos que ela não causou e/ou que não poderia fazer nada a respeito. Mas é justamente a relação à isso que está um problema da série e de toda franquia Star Trek: personagens com traços de “Mary Sue”. Isso quer dizer que, muitas vezes, os roteiristas pecam em fazer com que personagens sejam extremamente bons em tudo o que fazem, derrotam todos os vilões sem dificuldade no combate com lutas marciais, exceto quando é necessário que percam por questões de roteiro, e possuem ideias incríveis espontânea e repetidamente, sobretudo quando se trata de contratempos científicos.
Outro problema da série é que utilizaram justamente dois dos recursos que mais geram furos de roteiro e/ou que mais confundem o espectador. É bastante simples, mexeu com viagem no tempo, furou o roteiro. Isso nunca foi um problema se a trama for bem desenvolvida e explicada, que não é o caso, pois a segunda temporada é bastante confusa. Já a primeira temporada utiliza de múltiplos universos, mas foi bem desenvolvida e portanto não é tão confusa quanto a segunda.
Apesar de a ponte de comando ter Saru e o fato de ser um dos personagens mais importantes, são poucos os personagens alienígenas na série. Assim como Star Wars, o enredo continua sendo liderado por humanos, apenas com algumas exceções, como Spock e Sarek. Porém, nem ao menos figurantes nas naves ou planetas que fossem de raças diferentes, como Tellaritas, Andorianos e Romulanos, ou até mesmo desconhecidas.
Uma última crítica negativa à série é que apesar de não ser necessário conhecer outras produções de Star Trek para entender o enredo de ST: Discovery, a esperança de muitos de que seria uma série totalmente nova, somente com personagens inéditos, e uma trama totalmente desvinculada de séries anteriores, cai por terra quando é explorado o passado de Burnham, e quando Christopher Pike e Spock aparecem, principalmente o famoso Vulcano, do qual surge uma fixação do enredo da segunda temporada.
Mesmo considerando esses últimos comentários, Star Trek: Discovery continua sendo uma ótima série, principalmente para aqueles que amam tramas, conflitos e batalhas espaciais, alienígenas e suas culturas, organizações políticas e anatomias diferentes, tecnologias ficcionais incríveis, e os problemas que essas causam, e plot-twists bem trabalhados. Ainda mais para aqueles que acham o visual das séries antigas da franquia toscas, principalmente em relação ao visual, vestimenta e cenário, pois é importante deixar claro que a fotografia, maquiagens, uniformes e o design da Discovery são muito bonitos.
Vida longa e próspera!