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‘Morte em Veneza’: o retrato de um artista em decadência

Há 50 anos, o italiano Luchino Visconti lançava o filme que acabaria por consagrá-lo de vez como um dos mais influentes diretores do cinema

Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) é um daqueles raros casos em que a adaptação cinematográfica não deixa nada a desejar à obra original. O filme é baseado na novela homônima escrita por Thomas Mann, autor alemão que hoje completaria o seu 146º aniversário.

Agraciado em Cannes com um prêmio especial entregue em comemoração aos 25 anos do festival, o filme já nos joga face a face com Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) logo nos primeiros segundos. Tal movimento é feito através de um close ágil e bem fechado, que serve para nos mostrar sem rodeios o que se passa com as personagens. Esse recurso é usado várias vezes, mas sem nunca se tornar repetitivo ou aleatório. 

Von Aschenbach é um respeitado músico alemão, aconselhado a viajar para Veneza a fim de descansar e recuperar sua saúde debilitada. Ele perdeu uma filha pequena, em circunstâncias que não são reveladas, e, ao que tudo indica, também é viúvo. A cena de abertura mostra sua chegada à Rainha do Adriático, ao som da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler, a qual dará o tom grandioso e trágico de todo o filme. 

Desde o início, o músico é apresentado como um homem inseguro e entediado com a vida, algo que se vê, por exemplo, no seu diálogo com o gondoleiro, ou nas suas próprias autocensuras. Entretanto, na sua primeira noite no hotel à beira-mar em que ficará hospedado, von Aschenbach é brutalmente arrebatado de seu torpor pela figura de Tadzio (Björn Andrésen). 

Esse rapaz, no ápice da adolescência e, portanto, da juventude, será a perdição de von Aschenbach. Aqui, chamo a atenção para a genialidade de Visconti, que conseguiu fazer algo aparentemente impossível em Morte em Veneza. Pois Tadzio, mesmo sendo aquele que desperta no músico todas as inquietações possíveis, fala em apenas quatro momentos. Sim, quatro! 

Tadzio nada mais faz além de ser belo, uma vez que ele se apresenta como a personificação da Beleza e da Pureza. Por meio de flashbacks, conhecemos em alguns diálogos com seu amigo Alfred (Mark Burns) como Gustav pensa a Beleza: na sua visão, ela só pode ser alcançada através de um trabalho rigoroso e moral, mas nunca através dos sentidos. E, no entanto, lá está Tadzio, o Belo na sua forma e expressão mais ideais, contrariando tudo o que sempre guiou suas composições.

Ainda que não possamos ignorar uma possível causa de natureza homossexual para o fascínio que o jovem exerce, restringir-nos a ela seria uma omissão do que é a verdadeira causa desse encanto. A juventude. Esse é o único período da vida em que se pode ser realmente puro, em todas as acepções possíveis da palavra, sendo também, pela mesma razão, o único período em que se pode ser belo. Pois a beleza, ao menos no sentido ideal e platônico que Morte em Veneza a trata, é incompatível com a degradação trazida pela idade. 

Dessa forma, Tadzio representa o que Gustav sempre buscou alcançar enquanto artista, isto é, a Beleza tal como imaginada pelos gregos. Esse aspecto é muito patente e se manifesta de maneira sintética na cena em que Tadzio aparece na praia enrolado numa toalha. Seus traços proporcionais e seu porte esguio, bem como a toalha que mais parece uma túnica, remontam a um deus olímpico. Seu próprio andar parece ter algo de místico

Porém, em dado momento o jovem está vestido com um traje vermelho, o que evidencia que a Beleza não é tão imaculada assim, mas também apresenta algo de volúpia e, em última instância, até mesmo de sexualidade. As roupas de Gustav, por outro lado, quando não são pretas e sisudas, são brancas, como se ele quisesse esconder pela alvura do fraque a sujeira de sua alma.

 

Em Morte em Veneza, Tadzio, vestido de vermelho, se apoia numa pilastra na praia. Gustav o observa, usando roupas bege.
A dança que perpassa todo filme: Tadzio exibe sua graça, mas Gustav não pode apanhá-la. [Imagem: Divulgação/Instituto Ling]
Veneza, nesse meio tempo, é atingida pelo siroco, um tipo de vento quente e seco que sopra do Saara, e por uma epidemia de cólera. A cidade acaba por ser o reflexo do próprio von Aschenbach em sua decadência física, mas também espiritual. Quando ele se dá conta disso, ao ser ignorado por um homem que passa à sua frente enquanto está caído em meio às ruas sujas e escuras, tal como antes ele fizera na estação de trem, ele ri. Ri desesperadamente, já certo de seu fim.

 

Gustav permanece parado em uma rua coberta de cinzas e com focos de incêndio.
“Estar em dívida com seus próprios sentidos por uma condição irremediavelmente corrupta e doentia. Que alegria para um artista!” – Alfred.[Divulgação/IMDb]
Thomas Mann sem dúvida estaria feliz de ver sua obra adaptada por um diretor do grau de Luchino Visconti, que, como ele, nos fala de tantas coisas: da arte, da velhice, do tempo e, principalmente, da beleza. Ao final, Gustav vê aquilo que sempre soube desde o princípio. A beleza jovem de Tadzio é algo completamente inalcançável para a sua decadência impura. O máximo que se pode fazer é acenar para ela.

Nota do Cinéfilo: 5 estrelas, excelente

Morte em Veneza está disponível no Google Play Filmes. Confira aqui o trailer:

* Imagem de capa: Dcpfilm

1 comentário em “‘Morte em Veneza’: o retrato de um artista em decadência”

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