No dia 30 de Junho é comemorado o aniversário do lançamento de Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, 1989), de Spike Lee. A obra o estabeleceu como um dos maiores diretores da atualidade por tratar de questões raciais nos Estados Unidos e, consequentemente, ser pioneiro em trazer histórias negras para as telas. Seus roteiros, normalmente, se situam em momentos históricos importantes e trazem a imagem do afro-americano como protagonista.
A razão desse filme ser considerado um marco e um dos melhores já feitos é por tratar da vivência nas comunidades e violência policial pelos olhos de pessoas pretas, o que não era comum na época e pouco se vê nos dias atuais.
Há muito tempo pessoas brancas dominam o setor cinematográfico e, desde do nascimento da arte no final do século XIX, pouco fizeram obras sobre pessoas racializadas. Quando esse grupo passou a ser retratado em papéis pequenos de filmes feitos por caucasianos, os enredos eram regados com estereótipos racistas. Logo, a falta da representação correta de minorias foi sentida e mudanças passaram a ser exigidas.
Então, quando foi que as narrativas negras contada por negros chegaram aos cinemas?
Considera-se que a chegada de histórias negras aos cinemas ocorreu em 1970 com o Blaxploitation, movimento cinematografico estadunidense protagonizados por atores e diretores negros que tinham como o público alvo os afro-americanos. Em outras palavras, eram pessoas negras produzindo histórias negras para outras pessoas negras.
Os filmes tratavam sobre violencia, racismo, sexo e pobreza junto a outros aspectos presentes na vida das comunidades pretas da época. Além disso, possuíam grande riqueza cultural e exploravam todos os gêneros, como comédia, drama, ação e terror. Suas trilhas musicais colocaram o funk, jazz e o soul nas telas pela primeira vez, ritmos esses fundamentais para as obras, como no clássico Shaft (1971).
“A importância da presença negra no cinema está em mostrar a resistência de um povo e trazer identificação. Está em mostrar grandiosidade e como fazemos e podemos fazer coisas grandiosas”, relatou, em entrevista a Jornalismo Júnior, Adrielly Teles, ativista do movimento negro, poeta e integrante do Coletivo Emancipado de Itapevi. E foi exatamente esses elementos que a corrente performou.
Desse modo, o movimento foi determinante para a afirmação identitária de uma geração inteira e tornou possível a ascensão de um dos nomes mais importantes da história do cinema e da cultura afro-americana: Spike Lee. Devido à influência do Blaxploitation, cerca de uma década depois, Lee leva ruas do Brooklyn e características dos anos 80 às salas de exibição. Com isso e suas técnicas singulares, ele renovou a linguagem cinematográfica e consolidou a presença negra na sétima arte.
Mas quem exatamente é Spike Lee?
Nascido em 20 de Março de 1957 em Atlanta, na segregada Geórgia, Shelton Jackson Lee é cineasta, ator, roteirista, produtor, professor e ativista norte-americano, mais conhecido por Spike Lee — apelido dado pela sua avó. Mudou-se cedo para o Brooklyn pré-gentrificado, onde cresceu e viu crescer os movimentos dos direitos civis. Tudo isso ao lado de sua mãe, professora de artes e literatura, seu pai, músico e compositor de jazz, e seus quatro irmãos mais novos. Esse ambiente deve ser o que definiu sua carreira e características no audiovisual: aprofundamento das comunidades periféricas, a música negra e o peso da história.
Lee se formou em Cinema na Universidade de Nova Iorque e sua tese, o filme Joe’s Bed-Stuy Barbershop: We Cut Heads (1983), ganhou o Prêmio Estudante da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A obra trata sobre barbearias que, de acordo com o cineasta, é a segunda instituição mais importante para a população negra depois da Igreja. Portanto, nota-se que ele definiu o tema que será abordado sempre de uma forma diferente e única em seus 40 anos de trajetória desde a sua primeira película.
Ao longo dessas quatro décadas, casado e com dois filhos, ele produziu cerca de 100 projetos, desde documentários a videoclipes e comerciais — dos quais ele chama de curta-metragem. Suas realizações são nomeadas Joint, como se todas estivessem interligadas em um conjunto, e cooperaram para que ele se tornasse uma das principais vozes da cultura negra no cinema.
Suas feituras, normalmente, partem de um microcosmo para formular uma situação do mundo “real” maior, complexa e, algumas vezes, atemporal. Junto a compilações de dramas do universo negro urbano, ele busca investigar o que torna a identidade afro-americana diversa e mutável e, assim, a proteger do apagamento e da limitação.
Lee faz tudo isso com tiques de estilos reconhecíveis e considerados sua marca registrada. Temos, por exemplo, o traveling, que dá a impressão do personagem estar flutuando por uma rua ou corredor ao invés de andar. Além disso, o corte acelerado para imitar uma cadência musical e os planos repetidos para reforçar uma fala ou movimento, principalmente abraços, também é uma assinatura visual do diretor. Já no roteiro, um elemento comum é o uso da frase “wake up!” (“acorde!”), com intuito de, inconscientemente, junto ao contexto do filme, acordar as pessoas para uma maturidade social.
Esses recursos chamados de “spikeismo” pelo próprio cineasta, ao lado do mosaico visual repleto de cores vibrantes e exploração da estética urbana, cooperam para a representação da história com o uso da ficção. O artista abarca a área do conhecimento de modo engajado, provocador e, ocasionalmente, enfurecido.
A conexão entre o romance e o fato ocorre pela veiculação de arquivos históricos entre as cenas e como abertura, pois, para ele, a fantasia não é suficiente. “Trata-se de colocar o público em sintonia e informá-los de que esses eventos estavam acontecendo quando havia uma revolução acontecendo na América com o Movimento dos Direitos Civis e o movimento Anti-guerra”, especificou o diretor em entrevista para a revista Variety.
E quais são os joints de Spike Lee?
Faça a Coisa Certa
O aniversariante Faça a Coisa Certa é o joint mais importante em toda a carreira de Lee. Trata-se de uma comunidade do Brooklyn que lida com a gentrificação e as tensões raciais geradas pela desigualdade no dia mais quente do verão americano.
Isso é feito de uma maneira singular de observar indivíduos: as vidas particulares dos personagens divertidos são analisadas a partir dos elementos públicos, como a história e o senso de comunidade. Também destaca-se como Lee quer mostrar o olhar para a vida pela perspectiva de pessoas pretas, uma vez que o filme todo se passa, basicamente, com todos eles olhando e comentando os acontecimentos de suas calçadas.
Gravados em cores vibrantes, cada personagem é esboçado com exageros expressivos e carregam as cicatrizes dos emblemas da história e da pressão do olhar branco e policial.
Mookie, entregador de pizza interpretado por Spike Lee, simboliza a posição do cineasta em Hollywood, um funcionário de um negócio dominado por brancos e mediador entre a área e a comunidade negra. Já as três principais personagens femininas — Tina (Rosie Perez), Mother Sister (Ruby Dee) e Jade (Joie Lee) — representam os diversos papéis desempenhados pelas mulheres pretas na sociedade. Por outro lado, Mister Señor Daddy Love, o DJ feito por Samuel L. Jackson, representa a cultura e a importância da música para a comunidade, ao lado de Radio Raheem (Bill Nunn), que reflete a chegada da arte negra em espaços brancos. Entretanto, o enredo principal gira em torno da segregação cultural presente na parede da pizzaria de Sal (Danny Aiello) percebida por Buggin’ Out (Giancarlo Esposito).
O personagem de Bill descreve na metade do longa que há uma infinita batalha entre o amor e o ódio com uso de seus punhos contendo as palavras love e hate. Tal conflito é exposto durante todo o desenvolvimento do filme e, especialmente, no clímax final, na qual a pizzaria é mais valorizada do que uma vida negra, o que dá início a uma rebelião.
Spike foi criticado fortemente por isso, pois a mídia especulou que ele estava incitando a violência, quando, na verdade, ele buscava trazer o tópico para ser discutido a fim de evitar repetições. Por isso que antes dos créditos é mostrado textos discordantes entre Malcolm X e Martin Luther King Jr. sobre a problemática. O roteirista não soluciona falsamente o racismo, como muitos diretores brancos fazem. Ele provoca e traz reflexões sobre o problema institucionalizado que existe até hoje.
“Sempre toda violência que aparece em filme sobre pessoas pretas é atemporal. O filme é de 1989. 1989. E nada mudou. Chega a ser assustador, porque o que aconteceu no filme foi o que aconteceu no ano passado, aconteceu ontem, provavelmente aconteceu hoje e vai acontecer amanhã.” comentou Adrielly sobre a relevância da película 32 anos depois de seu lançamento.
A obra-prima triste e vital foi um dos filmes mais bem dirigidos, debatidos e importantes de 1989. Contudo, não foi indicado a melhor filme no Oscar e, quando um longa white savior venceu a categoria, Spike declarou que ficou chateado.
Ela Quer Tudo (She’s Gotta Have It, 1986)
O primeiro joint, Ela Quer Tudo, foi gravado em duas semanas, apresentado em preto e branco e abarca sobre a vida amorosa e o papel da liberdade sexual na vida de uma mulher negra poligâmica.
A protagonista do polêmico filme, Nola Darling (Tracy Camilla Johns), é culta, artística e, por não querer alguém que controle seu corpo e mente, mantém relacionamento com três homens ao mesmo tempo: Jamie Overstreet (Tommy Redmond Hicks), Greer Childs (John Canada) e Mars Blackmon, interpretado pelo diretor, produtor, editor e roteirista do longa, Spike Lee.
O tema geral é a tentativa de Nola de explicar seu lado após ser julgada e sofrer slutshamming — ato de degradar uma mulher por seus comportamentos sexuais. Para isso, com um toque de comédia, o diretor serve-se da quebra da quarta parede e cenas descritivas com imagens do Brooklyn.
Apesar da inexperiência perceptível do diretor e do baixo orçamento, a obra consegue ser divertida, confiante, interessante e diferente. Isso porque traz cenas de afetos entre pessoas descendentes da diáspora africana, como beijos e relações sexuais, e uma ideia que se comunica com um público que outros produtores não se interessavam. Segundo Adrielly, até hoje é difícil achar romances bons com protagonistas negros, embora exista uma grande quantidade de atores e atrizes ótimos.
Todavia, o longa possui, segundo Spike, o maior arrependimento de sua carreira. Quando lançado, sofreu muitas críticas de escritoras feministas por banalizar abusos sexuais e lidar com a sexualidade feminina de um ponto de vista masculinizado. “Se eu pudesse refazer tudo, eu faria. Foi totalmente estúpido” ele prometeu e, posteriormente, cumpriu.
Em 2017, junto a Netflix, Spike, como produtor, e quatro escritoras, dentre elas, sua irmã, Jodie Lee, e a vencedora do Pulitzer, Lynn Nottage, fizeram uma releitura do filme. Na versão contemporânea, Nola é poliamorosa, pansexual, consciente e a questão do abuso é corretamente abordada.
“É difícil reconhecer e dizer ‘eu errei’. Muitos preferem dar desculpas. É preciso reconhecer, aprender e mudar para que aquilo não seja problemático novamente”, complementou Adrielly. “Por isso que nós temos que ouvir os nossos. Assim como é necessário que os homens pretos escutem as mulheres pretas, é necessário que as mulheres ouçam homens.”
Infiltrado na Klan (BlackkKlansman, 2018)
Baseado nas memórias de Ron Stallworth, interpretado por John David Washington, um dos filmes mais recentes de Spike Lee, Infiltrado na Klan, trata do primeiro policial negro na polícia de Colorado Springs, localizada no estado do Colorado. No longa ambientado nos anos 70, o protagonista e seu colega branco judeu, Flip Zimmerman (Adam Driver), infiltram na Ku Klux Klan (KKK) e evitam crimes de ódio.
Ron mantém o contato com o grupo de supremacia branca por telefone, enquanto Flip vai às reuniões no lugar dele. Juntos, eles conseguem ter contato com o líder da KKK, David Duke (Topher Grace). O verdadeiro Ron diz que a operação só deu certo porque ele era capaz de falar a língua do ódio igual aos integrantes do conjunto. Posteriormente, no longa, o protagonista conhece Patrice (Laura Harrier), ativista negra por quem se apaixona. Devido a isso, Stallworth se questiona e é questionado durante toda a obra sobre a dicotomia de sua identidade e precisa equilibrar ser negro e ser um policial.
A película é uma satirização do Blaxploitation, que também tinha como enredo policiais negros. Além disso, a estética, como a glorificação do penteado Black Power, e a citação dos filmes do gênero não deixam dúvidas de quais são as inspirações de Lee. Com uma trilha musical magnífica, o diretor consegue misturar romance, identidade, comédia, política, investigação e história. Assuntos e discussões sérias, como violência policial e abusos de poder, são retratados tanto quanto momentos de alegria e amor preto. O resultado disso, é uma obra que gera entretenimento e, simultaneamente, conhecimento e reflexão.
Embora a personagem não seja muito desenvolvida, as partes mais chamativas do longa parecem ser as dos dois eventos promovidos por Patrice. No primeiro, Kwame Ture (Corey Hawkins) discursa para estudantes e diz “nós somos negros e somos lindos” — enquanto os rostos e traços dos ouvintes são destacados por close-ups — a fim de afastá-los do colonialismo branco. Já no segundo, com cenas intercaladas com o batismo dos integrantes do Ku Klux Klan, Patrice convida Jerome Turner (Harry Belafonte) para contar sobre o linchamento de Jesse Washignton.
Portanto, nota-se que Spike busca conscientizar, trazer identidade e elevar a autoestima da população negra para, dessa forma, gerar mudanças. “Nós temos que parar de pedir e começar a demandar. Não é ‘até quando vão nos matar?’ e sim ‘vocês vão parar de matar a gente!’. Mas antes, precisamos de organização, igual mostrado no Infiltrado na Klan, porque nenhuma luta se faz sozinha, se faz em coletivo” declarou Adrielly, que também se considera grande fã dessa obra.
Ademais, esse projeto parece ser uma forma de desabafo da angústia e raiva que o cineasta sentia ao ver a ascensão do republicano Donald Trump ao poder. Há muitas partes que criticam o presidente eleito em 2016 na obra. Dentre elas, a cena do “wake up!”, dita após Ron falar que não acha que os estadunidenses votariam em alguém com ideais parecidos com os da KKK.
Porém, este é o foco principal do filme: mostrar que o passado nunca é totalmente passado. Lee, como em suas outras obras, não tenta solucionar o racismo, na verdade, tenta expor o quão presente ele ainda é. Inclusive, o filme encerra com as fortes cenas dos protestos de 2017 da supremacia branca em Charlottesville, defendida por Trump e por David Duke.
O filme conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e garantiu, depois de 30 anos de uma carreira brilhante e esnobada, o primeiro Oscar efetivo de Spike Lee por melhor roteiro adaptado. Junto a isso, o verdadeiro Ron Stallworth, que ainda possui sua carteira de registro no KKK como recordação, recebeu uma ligação de David Duke que reclamou sobre como foi representado. Acredito que por conta disso, Spike Lee teve certeza de que, realmente, estava fazendo a coisa certa.
Outros
Além dessas obras, Spike possui muitos créditos em seu nome, como comerciais para Nike e o videoclipe de Michael Jackson gravado no Brasil com a banda Olodum, They Don’t Know About Us (1996), música sobre a violência policial. Há também os dolorosos documentários Quatro Meninas — Uma História Real (4 Little Girls, 1997), sobre um atentado a uma igreja nos anos 60, e When the Leeves Broke (2006) que aprofunda-se nas consequências do furacão Katrina.
O auge da carreira do diretor são os anos 90, marcado pela obra biográfica Malcolm X (1992). O filme bem coreografado e artístico não só nos permite conhecer o herói americano, mas também ver ele mudar e transmitir suas ideias. Com o maior orçamento entre os joints, 3 horas de duração, Denzel Washington no papel principal, Angela Bassett como coadjuvante e a participação especial de Nelson Mandela, Lee efetuou um trabalho de importância incalculável, tal qual mostrado no encerramento. Além disso, o filme contém uma das cenas mais memoráveis de toda trajetória de Spike: Malcolm flutuando em direção a sua morte ao som de A Change Is Gonna Come (1964), de Sam Cooke.
Na mesma década, foi lançado Febre da Selva (Jungle Fever, 1991), no qual o enredo principal gira em torno de um casal interracial. Porém, destaca-se pela interpretação brilhante de Samuel L. Jackson e por introduzir Halle Berry ao cinema, que, posteriormente, seria a primeira mulher negra a ganhar o Oscar de melhor atriz. Uma Família de Pernas pro Ar (Crooklyn, 1994) e Irmãos de Sangue (Clockers, 1995), assim como o filme de 1991, focam em um ambiente urbano, sendo o primeiro uma semibiografia nostálgica da juventude de Lee e o segundo um drama policial produzido por Martin Scorsese.
Também estrelado por Denzel Washington, Jogada Decisiva (He Got Game, 1998) abarca perdão e a paternidade negra, temas complexos e sentimentais, a partir do basquete. Em contrapartida, Hora do Show (Bamboozled, 2000), com um novo olhar para a história, é uma satírica desconfortante. Ela mostra o quão presente atos como o blackface estão presentes em diversas formas de mídias. “É uma exposição de como a arte foi usada para desumanizar os seres humanos, o que culmina em uma das melhores cenas que já fiz” declarou Spike para a BBC.
Alguns joints podem ser mais filosóficos — e com o elenco majoritariamente branco — como A Última Noite (25th Hour, 2002) que captura os sentimentos da população americana no 11 de setembro de 2001. Outros, são filmes de ação com sucesso de bilheteria, como O Plano Perfeito (Inside Man, 2006), protagonizado também por Denzel.
Os filmes mais recentes de Spike são Chi-Raq (2015), um musical bagunçado e mágico, e Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020). O segundo abarca o sentimento de não pertencimento e não reconhecimento dos soldados negros que batalharam na guerra do Vietnã. Tendo em vista as eleições do ano de lançamento, a partir do personagem Paul, interpretado por Delroy Lindo, a obra critica fortemente o Trumpismo, explora a importância da saúde mental e aponta que a população preta é diversa. Além disso, as cenas de guerra são apresentadas em um quadrado estreito e possuem estética de filme antigo, enquanto as cenas no presente tem uma proporção de 16:9.
Por que o conjunto de obras do Spike Lee é tão importante?
“Quando você olha pessoas pretas existindo e resistindo à escravidão ou qualquer outra forma de opressão, te dá uma vontade muito grande de lutar. Eu me identifico nesse sentido: o de querer lutar”. Essa declaração da integrante do Coletivo Emancipado de Itapevi revela qual a importância das obras do Spike e narrativas pretas no geral: identidade, conhecimento e luta.
Há diversos estereótipos degradantes de minorias raciais nas grandes mídias. Por esse motivo, a visão que as pessoas desses grupos marginalizados têm de si mesmas são distorcidas. Nesse âmbito, a representatividade no audiovisual se faz relevante.
Adrielly afirmou: “É preciso falar: eu tiro o direito de vocês de contar a nossa história! O poder agora é nosso. E a gente não quer falar só sobre a opressão. Nós vamos falar sobre cultura, religião, comidas, sobre os nossos heróis e nossos orixás. Sobre tudo que é nosso e que é sobre a gente!”. Afinal, assim como feito por Lee, o cinema é capaz de exaltar traços e aspectos negros e tentar tirar a inferiorização enraizada por ele.
Entretanto, tal representatividade não pode ficar só nas telas, tem que estar atrás também. É preciso que mais filmes com diretores, roteiristas e produtores negros sejam divulgados. Para que, por meio de papéis identitários importantes, jovens desse grupo possam perceber que são capazes de fazerem coisas grandiosas. Essa identificação positiva, muito apresentada nos longas e performada por Spike, são precursores de mudanças.
Adrielly acredita que o consumo dessas representações e bons exemplos, principalmente por crianças, torna a experiência vivida por pessoas pretas menos dolorosas. Porque vão aprender a se amar, vão se identificar e conhecer a história de seus antepassados. Desse modo, terão uma base forte para lidar com o mundo hostil.
Ademais, o uso da história como um acúmulo de experiências feito por Spike Lee coopera para transformações sociais significativas, uma vez que o discurso histórico são raízes e asas para os movimentos. Isso se dá, pois ele não só recorda o passado, também o confronta e expõe como os eventos influenciaram o presente. Logo, gera consciência social e senso de comunidade.
A narrativa histórica esteve junto a comunidade negra desde a escravidão, uma vez que essa era a unica forma de escravos e seus primeiros descendentes representarem a si mesmos corretamente e dizerem que suas vidas e feitos importam. Spike Lee usufrui dela da mesma forma.
O legado de Spike
Algumas obras de Spike, além de trazer conquistas e reconhecimento para ele, tiveram impacto social. Por exemplo, Ela Quer Tudo colocou Brooklyn no mapa da moda, Quatro Meninas — Uma História Real fez com que o caso fosse aberto novamente e a rua, onde Faça a Coisa Certa foi gravada, foi renomeada em homenagem ao filme. Os joints foram responsáveis, também, por introduzirem múltiplos atores ao cinema, como Halle Berry, Giancarlo Esposito, Rosie Perez e Roger Guenveur Smith.
Apesar do racismo nas premiações hollywoodianas, Spike ganhou um Oscar honorário, em 2016, por ser “um campeão do filme independente e uma inspiração para jovens cineastas” e, em 2019, ganhou o de Melhor Roteiro Adaptado por Infiltrado na Klan. O mesmo filme também rendeu uma Palma de Ouro no Festival de Cannes, que já tinha transmitido outros de seus projetos, tal qual Ela Quer Tudo.
Nesta próxima edição do festival, Spike Lee será o presidente do júri e decidirá qual obra vai ser a sucessora do Palma de Ouro de 2019, Parasita de Bong Joon-Ho. “Quando me chamaram para presidir o júri do Cannes 2020 não acreditei, estava feliz, surpreso e orgulhoso ao mesmo tempo”, declarou. “Fico honrado por ser a primeira pessoa da diáspora africana a ser nomeada como presidente do júri”.
Além disso, Spike fundou uma empresa de filmes chamada 40 Acres & A Mule Filmworks e, há 20 anos, dá aulas de cinema na Universidade de Nova Iorque, onde se formou. Ele possui, também, muitos livros creditados em seu nome. Entretanto, no final deste ano, irá lançar Spike, primeiro livro que vai abranger toda sua filmografia com partes dos filmes, fotos nunca vistas antes e comentários dele sobre o processo de produção.
Vale dizer que Lee inspirou e abriu caminho para muitos diretores negros aclamados atualmente, como Ryan Coogler, Barry Jenkins, Jordan Peele e Ava DuVernay. Destaca-se também que Shaka King, diretor de Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah, 2021), longa indicado ao Oscar de melhor filme, foi aluno de Spike.
Certamente, o cineasta Shelton Jackson Lee tem grande impacto no cinema e mudou o curso da história da sétima arte. Seus joints com fundamentação histórica e ótima energia, denunciadores de mazelas e reflexivos o estabeleceu como um dos diretores mais geniais de Hollywood. Tudo isso, ao buscar pela representação de sua comunidade, contar narrativas com protagonistas racializados e mostrar a percepção dessas pessoas diante dos eventos do mundo — algo que não era tão comum para sua época. Logo, é possível retirar conhecimentos de suas obras e trajetória, como também, guardar a frase dita em seu discurso de agradecimento no Oscar: “Faça sempre a escolha moral entre amor e ódio. Vamos todos fazer a coisa certa!”