por Barbara Monfrinato,
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A princípio Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981) parece documentário. Na primeira imagem, céu cinzento e a periferia que contrasta com a voz ao fundo: São Paulo, grande polo industrial da América Latina e responsável por mais da metade do PIB nacional. Um Hector Babenco em roupas brancas, pincelando no português sua origem argentina, descreve com estatísticas a condição social da criança brasileira e se mescla com imagens dos jovens daquele bairro de operários. Dentre eles a figura magra de Fernando Ramos da Silva, com sua mãe e irmã, é apresentada como o Pixote que encarnará dali a alguns segundos.
Fernando foi um dos escolhidos entre dezenas de meninos de periferia numa seleção feita por Babenco e por Fátima Toledo, que também desenvolveu trabalho parecido com Fernando Meirelles em Cidade de Deus (2002). Naquela época Fátima tinha experiência em um projeto de teatro com jovens da Febem e foi a responsável por preparar os crus meninos de Pixote; levou-os ao reformatório e ao zoológico, onde cada um estudou um animal que se assemelhasse ao seu personagem. Para o Pixote, Fernando escolheu a zebra: bicho pacato, vítima.
Seus olhos de “anjo mau” e o ar de “alma ferida” foram o que atraiu Babenco na hora de colocá-lo como o personagem principal: menino que vai para o reformatório e lá vive – sobrevive – uma realidade diária hostil. Os garotos sofrem abuso, brincam de assalto a banco, cheiram cola como escape, lidam com funcionários violentos, num ambiente de raiva e tensão que, ao contrário de reeducá-los e reintegrá-los à sociedade, agride tudo que neles existe de humano.
A fuga do inferno leva os meninos apenas a uma liberdade menos infernal. Nas ruas, Pixote, Dito, Chico e Lilica sobrevivem do mundo do crime, das drogas, da prostituição, da vingança e do abandono. Babenco mostra o fundo do poço num flerte com o documental e, ao mesmo tempo, com o lirismo de momentos como a dança entre Dito e Sueli – em grande interpretação da Marília Pêra – ou a cena em que Lilica canta Força estranha, música de Caetano Veloso, a Pixote, à praia de Copacabana e ao futuro incerto que para eles não costuma durar mais do que amanhã.
https://www.youtube.com/watch?v=AlStKgr-vcM
Baseado num livro de José Louzeiro, em quem Babenco também havia se inspirado para seu anterior Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), Pixote pôs nas telas uma realidade doída. Apesar de o diretor hoje considerar o filme datado e mais próximo de Walt Disney, é algo que persiste: “o que ainda é válido nele é o universo sentimental daquelas crianças, que queriam se inserir na sociedade e iam se marginalizando cada vez mais”, diz.
O sucesso veio de forma inesperada e alcançou mundo afora, recebendo inclusive uma indicação ao Globo de Ouro por melhor filme estrangeiro. No recente documentário Pixote in Memoriam (2007), tanto a equipe comentou a importância dessa obra brasileira quanto estrangeiros como Spike Lee e Nick Cave disseram ter se sentido impactados com o que viram. Cave, em especial, ficou mexido com a atuação de Fernando e com o retrato do Brasil que, embora sofrido, ainda tem um povo alegre. Foi a Fernando que ele dedicou o álbum “Tender Prey”, de sua banda Nick Cave & The Bad Seeds, em 1988.
Após o filme, pouco mudou a realidade miserável de Fernando; ele ficou ligado à imagem de Pixote e fez mais alguns trabalhos como ator, mas não conseguiu continuar a carreira. Voltou a Diadema, onde morava, e o vínculo com o personagem transcendeu a imagem: se envolveu com crimes, foi preso algumas vezes e morto com oito tiros em 1987, aos 19 anos, por policiais da Rota. José Joffily, que retratou a vida de Fernando pós-filme em Quem Matou Pixote? (1996), respondeu a questão que ele próprio lançara: “fomos todos nós”.
Tem como saber qual é a musica da cena que Sueli dança com Dito?