No dia 5 de novembro de 2021, a cantora Marília Mendonça e outras quatro pessoas morreram após o avião em que estavam colidir com um cabo de alta tensão e cair em uma cachoeira na zona rural de Caratinga, Minas Gerais. A cantora faria um show na cidade na noite daquela sexta-feira. Além dela, estavam no avião seu tio e assessor, Abicieli Silveira Dias Filho, seu produtor, Henrique Ribeiro, o piloto Geraldo Martins de Medeiros Júnior e o copiloto Tarciso Pessoa Viana. A aeronave pertencia à empresa de táxi aéreo PEC e estava em situação regular. As autoridades ainda investigam a causa do acidente.
A morte precoce de Marília Mendonça chocou os milhões de fãs espalhados por todo o país. Sua carreira simbolizava a reinvenção da mulher dentro da música popular, levando representatividade feminina para os setores mais conservadores da sociedade brasileira.
Trajetória: dos bastidores até o sucesso
Nem sempre a música sertaneja teve espaço para artistas como Marília Mendonça. Nascida em 22 de julho de 1995, em Cristianópolis, no interior de Goiás, a cantora começou a sua carreira aos 12 anos de idade, quando já tocava violão e compunha suas próprias músicas.
Antes de se tornar cantora, Marília foi mantida nos bastidores do mercado da música, escrevendo letras para artistas do sexo masculino. Muitas de suas composições foram interpretadas por grandes nomes do sertanejo, como João Neto e Frederico, Henrique e Juliano, Matheus & Kauan, Cristiano Araújo e Jorge & Mateus.
Foi em 2016 que esse cenário mudou. O lançamento do álbum Marília Mendonça: Ao Vivo fez com que a carreira como cantora da artista decolasse. Naquele ano, a música Infiel tornou-se a quinta faixa mais tocada no país.
As músicas de Marília Mendonça traziam temas já comuns no sertanejo universitário, como desilusões amorosas, traições e bebedeiras, mas agora na voz de uma mulher. Se até então as mulheres eram personagens coadjuvantes nas canções interpretadas pelas duplas sertanejas formadas por homens, a artista demonstrou que elas também bebem, traem, iludem e são iludidas.
Por essa razão, para o cantor e compositor Wellington Miranda, da dupla Wellington & Marcus, Marília foi um marco na música sertaneja: “Marília é um divisor de águas musicalmente para a classe feminina no sertanejo. Ela realmente mostrou que a mulher também tem que ter todos os direitos, seja na música, seja em qualquer outro tipo de relacionamento, coletivo ou individual. Ela ergueu essa bandeira, que foi apoiada pelo movimento feminista”.
Wellington menciona que, antes da artista, outras cantoras já haviam iniciado a luta por mais espaço dentro do sertanejo. Segundo ele, nomes como as Irmãs Galvão, Inezita Barroso, Roberta Miranda, Sula Miranda e Paula Fernandes trilharam um caminho importante. Mas o diferencial de Marília está justamente colocar a mulher em um patamar de igualdade para falar de temas que antes eram monopolizados pelo sexo masculino.
Nesse contexto, Marília Mendonça surgiu como a pioneira do chamado “feminejo”, um sertanejo universitário feito por mulheres, para mulheres. Depois dela, outras seguiram seu caminho e iniciaram carreira: Simone e Simaria, Naiara Azevedo e Maiara e Maraísa. Foi com a última dupla, inclusive, que Marília Mendonça formou recentemente o trio “As Patroas”. Em outubro deste ano, quase um mês antes do acidente, Marília lançou, junto a Maiara e Maraísa, o álbum “Patroas 35%”, cujos shows já estavam marcados para o primeiro semestre de 2022. A turnê representaria a amizade entre as cantoras e reforçaria, por meio das músicas inéditas, a união entre as mulheres.
Feito por mulheres, para mulheres
A carreira de Marilia Mendonça não foi decisiva apenas para que o sertanejo universitário se tornasse um gênero mais aberto para a presença de cantoras mulheres. Para sua legião de fãs, a artista se tornou um ponto de acolhimento, servindo como referência para diversas mulheres ao redor do país.
Esse é o caso da Bruna Vieira Rocha, que mora em Serra, no interior do Espírito Santo. Ela conta que conheceu Marília Mendonça em 2015 e, desde então, sente que sua relação com a artista é tão próxima que a considera sua melhor amiga: “Foi minha única companhia em alguns momentos de solidão”.
“Temos a mesma idade, passamos por relacionamentos abusivos, obesidade, processo de aceitação, mudanças físicas… Ela sempre me inspirou e me deu forças para enfrentar inúmeros momentos difíceis que passei, mesmo sem saber”, relata Bruna.
Como aconteceu com Bruna, muitas mulheres passaram a enxergar nas letras e na vida de Marília um espaço de alívio, onde era possível trocar experiências sobre assuntos ainda pouco trabalhados pela sociedade.
Priscila Moreira, moradora de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, conta que já teve dificuldade em ouvir as músicas da artista: “Eu pensava que, como uma mulher casada, cantar coisas sobre traição, não tinha nada a ver. Mas com o passar do tempo fui entendendo que essas letras, que para mim eram pejorativas, muitas vezes eram realmente a vida de outras muitas mulheres”.
Hoje, apesar de não se sentir representada pelas letras, Priscila diz ser fã da cantora justamente por sua capacidade de compor músicas que levam ao público histórias femininas que antes não eram reconhecidas.
A mineira ainda destaca que a presença de Marília Mendonça e de outras cantoras femininas tem sido muito importante para o enfrentamento do machismo no sertanejo. “Eu fico realmente feliz com essa inversão que elas fizeram com as músicas machistas dos cantores de sertanejo. Foi realmente uma grande mudança no que conhecíamos do estilo”.
Legado e o futuro do feminejo
O cantor Wellington acredita que o legado de Marília continuará a incentivar outras mulheres a fazer música sertaneja. “Eu acho que a influência da Marília vai ser eterna e algumas cantoras irão assumir o seu papel”.
Após a morte de Marília, a expectativa é que a dupla Maiara e Maraísa, suas principais parceiras, assumam em primeira mão o espaço aberto pela artista. Além delas, Wellington destaca Yasmin Santos e Luíza, da dupla Luíza e Maurílio, como possíveis nomes do futuro do feminejo. Se o movimento vai continuar a fazer sucesso como até então tem feito, ele diz que “vai depender dessas cantoras que já estão agora no mercado nacional”.
*Imagem de capa: Divulgação/Marília Mendonça