Último lançamento do músico e rapper Marcelo D2, Assim tocam os MEUS TAMBORES (2020) é uma das produções brasileiras indicadas ao Grammy Latino de 2021, na categoria Melhor Álbum em Língua Portuguesa. Produzido por meio de transmissões colaborativas na Twitch, plataforma de streaming de vídeos e jogos, o projeto do rapper expressa a potencialidade criativa da coletividade, que resiste e floresce mesmo em tempos em que o ódio e o conservadorismo ganham força na realidade brasileira.
No total, foram mais de 100 horas ao vivo para que se produzisse o álbum, que nasceu em meio às imposições de distanciamento social em decorrência da pandemia de Covid-19. A proposta do rapper e de sua companheira Luiza Machado, que juntos gerenciam a produtora Pupila Dilatada, era mostrar efetivamente o processo criativo das canções e de uma produção desta magnitude. Nesse sentido, é destacável o caráter totalmente inovador do disco, cuja elaboração extrapola as paredes dos estúdios e dialoga diretamente com os espectadores.
Chega junto agora na https://t.co/iElJU1I5P2 que eu e o @russopassapusso vamos começar a gravar voz pro Assim Tocam os meus Tambores pic.twitter.com/TkL988Jr7A
— Marcelo D2 (@Marcelodedois) July 27, 2020
Com doze faixas, Assim tocam os MEUS TAMBORES é um verdadeiro filme. Tal como em sua produção anterior, Amar É Para os Fortes (2018), o rapper aposta em uma narrativa contínua, que articula uma espécie de fio condutor pelas músicas, seja por meio da letra das canções, seja pela construção de uma identidade visual rica e constante.
O média-metragem é produzido no interior da residência de Marcelo e Luiza, os grandes protagonistas nos clipes. Ainda que restrito ao espaço da própria casa, cria-se algo de uma qualidade estética notória. O enquadramento que foge dos recortes de cena tradicionais e o uso do preto e branco na maior parte do filme garante-lhe unicidade e originalidade.
As faixas MALUNGOFORTE, da qual origina-se a capa do álbum, e TAMBOR, SENHOR DA ALEGRIA são as únicas que utilizam recursos de coloração nos tons vermelho e azul nas imagens, o que faz com que nos clipes das duas canções a predominância do preto e branco seja rompida. No caso de TAMBOR, SENHOR DA ALEGRIA, o uso exclusivamente do vermelho é extremamente simbólico e revela a sutileza da construção do álbum pelo rapper, ao passo que possibilita um diálogo com as noções de resistência e luta trazidas na letra e, visualmente, na faixa.
Para além do trabalho de cor do álbum, o uso da luz nas imagens e a sobreposição das cenas é algo recorrente e são recursos que permitem a produção de um filme não só moderno, como também que evidencia a possibilidade e a capacidade de articulação entre gravação e edição em uma obra audiovisual. A faixa DEUS DE OUTRO LUGAR é exemplar para ilustrar esse quesito, pois utiliza a justaposição de cenas com um corte menos suave entre elas, o que garante ritmicidade à história narrada e representada na canção. As imagens das flores desabrochando ao final da faixa a aproximam de uma estética praticamente surrealista, que explora os limites da realidade concreta retratada e de um universo mais onírico e imaginativo.
A potencialidade de Assim tocam os MEUS TAMBORES também decorre da sua abrangência temática. Ancestralidade, família, arte, amor, política e racismo são apenas alguns dos temas trazidos pelas canções. DEUS DE OUTRO LUGAR é um exemplo de faixa que articula temas sociais e políticos de maneira mais explícita, sob um tom de denúncia e crítica — uma crítica feita de maneira menos violenta se comparada a trabalhos anteriores de D2, como Arte do Barulho (2008).
“Poemas sempre vão esmagar ideias fascistas /
Mantenha-se vivo, essa é a resistência”
Marcelo D2, DEUS DE OUTRO LUGAR
Do ponto de vista sonoro, existe uma pluralidade de vozes no álbum que não pode ser ignorada. A lista de participações no disco é extensa e conta com os nomes de Anelis Assumpção, Criolo, Djonga, Don L e João Parahyba. Dessa forma, o álbum consegue trazer artistas dos mais diferentes gêneros e de diferentes escolas do mundo do rap.
Além das parcerias nas composições, destacam-se as referências musicais feitas em faixas como A VERDADE NÃO RIMA, em que são utilizados tambores e um sample que recupera a cantora Fátima Guedes, artista de destaque do fim dos anos 1970. As camadas de background utilizadas em É MANHÃ (VEM) constroem uma atmosfera semelhante à dos anos 90 de Nova York, com referências ao jazz e também à bossa nova. Já em MALUNGOFORTE faz-se uma ode a Chico Science e Naná Vasconcelos, artistas já mencionados em outras produções do rapper e que são importantes referências no mundo da música para D2.
ROMPEU O CORO é uma das faixas de maior força no disco devido à potência das rimas de D2 e ao refrão cantado por Juçara Marçal. Nesta música, utiliza-se um sample com atabaques, que fazem uma referência clara à sonoridade das religiões de matriz africana — marca registrada de “Nave”, um dos produtores do disco.
Ainda que o rapper utilize alguns recursos já conhecidos de outros trabalhos, como a constante referência aos artistas da década de 70 ou menções ao samba, o projeto proposto e produzido em Assim Tocam os MEUS TAMBORES é original e de natureza complexa, que evidencia a maturidade de Marcelo D2 como músico e artista. O disco é um verdadeiro grito de resistência e reafirmação da arte e do amor como mecanismos importantes de resistência contra discursos e práticas de morte e de ódio.
*Imagem de capa: Reprodução/Youtube