O dia 30 de novembro marca a final de um evento histórico do esporte. Há trinta anos atrás, ocorria a primeira Copa do Mundo FIFA feminina. Depois de 61 anos da primeira Copa do Mundo masculina acontecer, mulheres de seleções de todo o planeta viajaram para a China para jogar futebol e competir pela taça.
O caminho percorrido para que um evento de tamanha importância acontecesse foi longo e com muitos percalços. Para entender mais sobre a história desta Copa, o Arquibancada conversou com a historiadora Aira Bonfim e com a jogadora Márcia Tafarel, que fez parte seleção brasileira da época e que vestiu a camisa do Brasil na China em 1991.
O caminho do futebol feminino até 91
Foi em 1930, no Uruguai, que a primeira Copa do Mundo ocorreu. Um evento exclusivo para seleções masculinas. Na verdade, a história aponta os primeiros poucos registros de mulheres jogando futebol nos anos 20. Já a expressão “futebol feminino” surgiu no contexto circense, colocando a prática do esporte por mulheres como um espetáculo, uma brincadeira.
Mas em 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, o Conselho Nacional de Desportos proibiu que mulheres praticassem alguns esportes, entre eles o futebol. De acordo com o artigo 54 da Lei 3199 de 1941, “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.
O mundo, na época, via o lugar das mulheres de outra forma. A ideia de que a função principal de uma mulher era ter filhos e esportes brutos e violentos poderiam prejudicar tal prioridade, reforçava ainda mais esse pensamento.
As consequências dessa proibição podem ser sentidas até hoje, de acordo com Aira. “Esse prejuízo reflete diretamente nessa configuração de seleção brasileira. Mas as mulheres sempre jogaram mesmo com a proibição numa cena amadora, sempre distantes dos lugares mais desejosos, dos estádios. Elas deram alguns jeitinhos pra jogar no Pacaembu, no Maracanã ao longo desses quarenta anos, mas o prejuízo era cultural, de desenvolvimento da modalidade e da dignidade”, comenta a historiadora
Foi apenas em 1979 que o esporte feminino foi legalizado e, em 1983, regulamentado. Isso permitiu que mulheres jogassem em estádios, participassem de competições e que o ensino do futebol em escolas fosse autorizado para meninas.
Em 1988, aconteceu o primeiro torneio internacional de futebol feminino com caráter experimental. A seleção brasileira conquistou o terceiro lugar no torneio mesmo com poucos incentivos. Aliás, os uniformes usados durante os jogos eram as roupas que sobraram dos jogadores da modalidade masculina. Mesmo assim, esse torneio foi o pontapé inicial para a Copa de 91.
A competição
A originalmente chamada Copa M&M — e posteriormente reconhecida como Copa do Mundo, já que foi bem sucedida — foi disputada na China por doze seleções femininas de futebol: Brasil, Estados Unidos, Suécia, Nigéria, China, Japão, Taipei, Noruega, Dinamarca, Alemanha, Itália e Nova Zelândia.
Mesmo sem a repercussão de uma Copa masculina, Tafarel conta que o clima dos jogos era tão emocionante quanto: “Já sentíamos a atmosfera quando a gente chegava próximo do estádio, porque tinham aqueles cartazes enormes e víamos a população indo para o estádio. Então a gente sabia que ia ter um público bom porque a gente via que as ruas perto do estádio estavam lotadas”.
Porém, a seleção brasileira caiu no grupo com Estados Unidos, Suíça e Japão e não avançou pela força das equipes. As quartas de final foram marcadas pelos acirrados confrontos entre China (0) e Suécia (1), Noruega (3) e Itália (2), com a vitória das norueguesas garantida com um pênalti nos acréscimos, Dinamarca (1) e Alemanha (2). Para finalizar a rodada, os Estados Unidos conseguiram colocar quatro vezes a bola no gol da seleção do Taipei.
As semifinais foram decididas com partidas cheias de gols. A Noruega marcou quatro gols contra a Suécia, que começou na frente com um gol marcado aos seis minutos, mas não conseguiu manter. No confronto entre EUA e Alemanha, a seleção norte-americana manteve a invencibilidade ao fazer cinco gols contra as alemãs, que marcaram apenas dois.
Encerrando a competição, os Estados Unidos fizeram história ganhando da Noruega por 1 a 0 na primeira copa do mundo feminina. Justificando seu favoritismo, a seleção americana se sagrava, desde aquela época, como uma das mais fortes seleções femininas do futebol mundial.
Participação brasileira
A Seleção brasileira que foi à Copa do Mundo de 1991 era formada por Meg, Rosa Lima, Marisa, Elane, Marcia Silva, Fanta, Marilza, Solange, Adriana, Roseli, Cenira, Miriam, Márcia Tafarel, Nalvinha, Pretinha, Doralice, Rosangela Rocha e Maria Lúcia. Grande parte do elenco naquele ano era oriundo do Esporte Clube Radar ― time carioca, que foi um dos pioneiros no desenvolvimento do futebol feminino no país. O comando da Seleção era de Fernando Pires.
Desde o começo do mundial, a Seleção Brasileira enfrentou jogos complicados. “A gente caiu em um grupo muito difícil no mundial, com Japão, Suécia, Estados Unidos”, afirma Márcia Tafarel. A ex-jogadora pontua que a equipe brasileira não havia feito qualquer tipo de amistoso com aquelas seleções que jogariam o mundial devido ao contexto de dificuldades e preconceito com o futebol feminino, que resultaram na regulamentação tardia da modalidade para as mulheres.
Para suprir a falta de amistosos e uma preparação mais direcionada para a competição, Márcia relembra que muitas vezes as atletas convocadas treinavam com outras equipes masculinas, inclusive nas categorias juvenis. “A gente estava competindo com homens, então pensávamos que se fossemos para o mundial iríamos competir de igual para igual com as outras seleções. Mas a realidade era completamente diferente”, relata Márcia Tafarel. Essa defasagem na preparação impossibilitava que a seleção brasileira tivesse uma noção prévia e concreta da dificuldade que enfrentaria e o nível de jogo e preparo dos demais times.
Países europeus como a Suécia já tinham uma certa tradição no futebol. No caso japonês, o futebol feminino tem seus primeiros registros que remontam a 100 anos atrás, ainda que a prática foi regulamentada apenas em 1960. Já os Estados Unidos eram uma potência em ascensão na modalidade. Desde 1991 até 2015, o país esteve em todos os pódios de Copas Mundiais e Jogos Olímpicos.
O Brasil iniciou a campanha contra a seleção japonesa. Com um gol suado de Elane aos 4 minutos do primeiro tempo, a Seleção Brasileira conseguiu vencer na estreia da competição. Na segunda rodada de confrontos, o Brasil enfrentou os Estados Unidos e encarou uma derrota de 5 a 0 para aquelas que seriam as campeãs daquela edição da Copa do Mundo.
O último jogo da delegação foi contra a Suécia, da qual precisaria ganhar para que pudesse avançar para as fases seguintes da competição. Infelizmente, as atletas brasileiras, que enfrentaram a atual técnica da seleção de futebol feminino do Brasil e até então jogadora sueca, Pia Sundhage, perderam por 2 a 0. Com isso, a trajetória brasileira no primeiro mundial da modalidade foi interrompida.
Ainda que o Brasil não tenha ido além da fase de grupos e não tenha conseguido chegar ao pódio neste primeiro momento, a participação do país teve uma importância significativa. Nesse sentido, a historiadora do esporte Aira Bonfim pontua: “A gente não fica em primeiro lugar em nenhuma dessas ocasiões, mas o Brasil se lança ali. Ele aparece para o mundo e apresenta um bom futebol com excelentes jogadoras, tecnicamente”.
Repercussões
“Anonimato”. Para Márcia Tafarel, essa é a palavra que resume a vida pós-competição das chamadas pioneiras ― apelido dado e incorporado pelas jogadoras que fizeram parte da seleção brasileira na Copa de 1991.
A primeira Copa do Mundo de futebol feminino teve pouquíssima visibilidade, principalmente, no Brasil. “Ninguém se interessava pelo futebol feminino naquela época. Era uma coisa nova e aquele era o primeiro mundial, então a imprensa brasileira não tinha conhecimento e não tinha esse interesse de cobrir o evento”, relata a ex-jogadora.
Márcia relembra que havia uma única repórter que acompanhava e fazia a cobertura da seleção durante o campeonato. Nos principais jornais do país naquele ano, foram divulgadas algumas notas a respeito do evento, mas nada que garantisse uma memória a longo prazo e a inserção dessas jogadoras no imaginário da população, como se dava na categoria masculina.
Aira Bonfim concorda e também pontua: “Ninguém ficou sabendo. Ninguém viu essa copa. Ninguém sabia. Não tem ida ao aeroporto. Não tem nada disso. Nem depois”. Ainda que o evento tenha sido histórico e tenha permitido com que as mulheres participassem de uma competição com a chancela da FIFA, no Brasil, devido a uma mentalidade machista e misógina, não havia de fato um apoio da população à Seleção. Quando o time retornou ao Brasil, nos aeroportos, fizeram-se presentes apenas familiares e colegas das jogadoras e dali cada uma das atletas retornou a sua cidade natal, aos seus trabalhos e a sua rotina sem qualquer tipo de reconhecimento.
Com o retorno para o país, o sonho da participação na Copa do Mundo e toda sua simbologia para a luta das futebolistas brasileiras foi comprometido com as dificuldades da realidade concreta, sendo uma delas a financeira. Márcia relata o contexto de sua volta: “Quando eu voltei da seleção eu não tinha emprego, então eu tive que ir até a capital para tentar encontrar um clube que pagasse um pouquinho melhor ou que pagasse o aluguel, a alimentação ou algum tipo de estadia”.
As atletas também tiveram de lidar com a falta de campeonatos no contexto nacional da modalidade. Com isso, elas tinham de competir também no futsal e, por vezes, se mudavam para o Rio de Janeiro e São Paulo por serem as cidades que recebiam as principais competições.
A memória de 91
Diante da pouca visibilidade do evento, as vozes das jogadoras que estiveram na Copa de 91 são a grande fonte de memória e resgate daquilo que foi e simbolizou a competição.
“Acho que a grande lição que se leva deste evento é a resiliência. Resiliência de um grupo de atletas que vai para a China com pouca estrutura, visibilidade, briga e tenta fazer com que a modalidade cresça”, pontua Márcia Tafarel. “A competição de 1991 trouxe sonhos, trouxe aquela semetinha que daria frutos para as novas gerações”.
No intuito de recuperar a dimensão e importância dessa competição para a modalidade e também para pensar a questão da inserção das mulheres no esporte, pesquisas acadêmicas, exposições em museus do país e o mais recente evento da CBF têm sido realizados. Aira afirma: “Hoje a gente busca reencontrar, organizar e compartilhar os materiais da época, conversar com as jogadoras, gravar uma entrevista decente com elas. Isso tudo para tentar reconstruir e construir de fato essa história oral para somar possibilidades de compreender um período que a gente não vivenciou”.
O que mudou 30 anos depois?
O cenário atual do futebol feminino ainda não atingiu o seu nível ideal, mas é inegável que melhorias e progressos foram feitos. “É muito importante toda essa estrutura que foi criada e toda organização hoje existente para que as meninas possam se envolver e conquistar cada vez mais visibilidade”, diz a ex-jogadora Márcia Tafarel.
Nas Olimpíadas no Rio em 2016, mas sobretudo no ano de 2019 e durante as Olimpíadas de Tóquio uma significativa visibilidade e um relativo espaço foram conquistados para o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil e no mundo. Em 2019, foi realizada a maior edição do Campeonato Brasileiro de futebol feminino da história do país com 16 equipes na série A1 e 32 times na série A2. A competição foi iniciada em 2013 e, também em 2019, passou a ser transmitida pela Band, canal de TV aberta.
Além disso, a Conmebol determinou como norma obrigatória que os times masculinos classificados para a Libertadores apresentassem times femininos. Por fim, ainda nesse mesmo ano, a Copa do Mundo de Futebol Feminino foi transmitida pela Globo, que é um dos canais de maior audiência no Brasil, e, pela primeira vez na história, as atletas tiveram um uniforme desenvolvido exclusivamente para elas.
O que se vê hoje é um reflexo e uma continuidade desse processo de luta e resistência das mulheres dentro do futebol. Figuras como Marta, Formiga, Cristiane ganham cada vez mais amplitude dentro e fora de campo. Mas, tais nomes herdam o passado e a memória de mulheres como Márcia Taffarel e muitas outras da geração de pioneiras. “Cristiane e Marta representam um lugar de sonho para essas mulheres, das gerações passadas, que não tiveram essa visibilidade”, pontua Aira Bonfim.
Para as gerações futuras, a ex-jogadora Márcia Tafarel deixa uma mensagem de esperança e resiliência: “O preconceito ainda existe. Sempre vão ter aquelas pessoas com uma mente mais fechada que vão dizer que futebol feminino é chato. Se gosta da modalidade, que você tenha essa resiliência e não deixe essas pessoas te derrubarem”.