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Pioneiro dos robôs, R.U.R. é como cebolas

Não agrada a todos, mas talvez faça alguns chorarem. A obra de Karel Čapek vai além de uma preocupação humana com a tecnologia
Capa de R.U.R.

Por Júlia Sardinha (jusardinha.eca@usp.br)

Cebolas. Essa foi a palavra que pensei após terminar de ler R.U.R.: Os Robôs Universais de Rossum (Editora Aleph, 2024), peça teatral escrita pelo tcheco Karel Čapek em 1920. Aos amantes da cultura pop, não foi difícil relacionar a ideia ao filme Shrek (2001), no qual o protagonista homônimo também se compara ao legume. Assim como o ogro e as cebolas, a obra de Čapek tem camadas, o que abre margem para diferentes interpretações. 

Passado mais de um século desde a sua publicação, R.U.R. — peça composta por um prelúdio e três atos — explora temas que ainda fazem parte do cotidiano moderno, como a influência da tecnologia na vida humana. Čapek colocou sua identidade na obra através de críticas à ganância humana e com a abordagem de temas como a fé e a movimentação das massas operárias. 

“É um grande progresso a procriação das máquinas. É mais rápido e confortável. Toda aceleração é um progresso (…)”

Engenheiro Fabry, p. 56

Um dos “seres” — ou melhor, das ideias — mais famosos do mundo nasceu na República Tcheca. Estamos falando da concepção do termo “robô”, cunhado pelo irmão mais velho de Karel — Joseph Čapek —, mas apresentado e divulgado pela primeira vez em R.U.R.  O vocábulo “robô” vem da palavra robota, que significa “trabalho forçado” nas línguas eslavas.

A trama dá início com a visita da jovem ativista Helena Glory à fábrica dos Robôs Universais de Rossum. A indústria que produz os humanoides tem como base os experimentos feitos pelos dois Rossums — denominados pelas personagens como o “velho” e o “jovem”. O primeiro queria ser “uma espécie de substituto científico de Deus”, de acordo com o personagem e diretor-geral da empresa, Harry Domin. Seguindo esse desejo, o “velho” criou uma receita — uma espécie de gosma ou pasta — que possibilita a produção dos robôs. 

Apesar da invenção, Domin menciona que ela era insuficiente para satisfazer os propósitos comerciais da produção de androides. Então, o segundo Rossum assumiu o trabalho de melhorar a receita sob a lógica de um magnata burguês, dando preferência à produção em massa, lucrativa e de modelo fordista. Com a união entre ciência e Capitalismo, nasceram os serviçais da humanidade.

Descasque a cebola como preferir

Para descascar a peça teatral de Čapek, sugiro que você escolha quem deve ganhar o título de protagonista: humanos ou robôs. Na obra, o conflito entre as duas partes se desenvolve à medida que os robôs se tornam mais humanizados pela formação gradual de suas consciências, que foram intencionalmente estimuladas pelo homem.

Cena da peça de teatro construída a partir do enredo de R.U.R.
Fotografia de uma das encenações da peça de Čapek. A fábrica Robôs Universais de Rossum alude a grandes empresas da atualidade, como a Google, o Facebook e a Tesla [Imagem: Reprodução/Editora Aleph]

A complexidade da escrita de Karel não está presente através de períodos mirabolantes ou de palavras pomposas. Pelo contrário: com linguagem simples, a profundidade da obra depende dos conhecimentos do próprio leitor. Por isso, e apesar do incentivo à interpretações e críticas autônomas, R.U.R. talvez não possa ser plenamente apreciado por todos que o leem. 

A família Čapek era intelectualmente abastada, fator esse que levou Karel a ser um grande ativista político. Na peça, os posicionamentos, valores e ideologias do autor podem ser observados em discussões referentes à questões da classe trabalhadora, das críticas ao sistema capitalista e dos dilemas filosóficos da vivência entre os seres humanos e a tecnologia.

“Ninguém pode odiar mais o homem do que o próprio homem! Transforme pedras em humanos, e elas vão nos apedrejar!”

Harry Domin, p. 170

Através de uma sátira social, R.U.R.: Os Robôs Universais de Rossum faz os homens duvidarem da sua humanidade. Os robôs da trama estão longe de serem as máquinas metálicas que permeiam o imaginário do senso comum. Eles são verdadeiros humanos  — pelos menos, fisicamente —, exceto pela falta de sentimentos, pela esterilidade e pela expectativa de vida de apenas 20 anos. 

Sejam nomeados humanoides, androides ou automatons, “os robôs são pessoas tão boas quanto nós [humanos]”, como diz a frase posta na orelha do livro. Ao refletir sobre o quão “boa” é a humanidade, Karel utiliza a sua trama para alertar sobre a modernidade controlada por homens magnatas viciados em lucrar sobre a criação de tecnologias destrutivas — como ocorreu com as bombas atômicas.

Escolha uma técnica para não chorar 

Segundo o crítico literário Samuel Delany, a ficção científica usa o futuro apenas como uma convenção narrativa para trazer distorções do presente. Em 1920, ano da publicação de R.U.R., as problemáticas sociais da época foram utilizadas como plano de fundo para que Čapek denunciasse o embate entre os humanos e os robôs de Rossum.  

Mecanismos automatizados são ativos no imaginário da humanidade há séculos, assim como as revoltas e as revoluções são no comportamento social. A peça de teatro de Karel quebra o patenteamento – ou melhor, a essência – dessas ações quando as aplica nas atitudes e nos interesses dos humanoides em realizarem mudanças na sociedade que vivem. 

Feitos à “imagem e semelhança” dos seus criadores, os robôs carecem de respeito. Eles escancaram ao leitor como o homem pode menosprezar até mesmo o seu “igual” ao serem desumanizados de formas diferentes, como pela segregação social — por exemplo, a desigualdade de gênero —, pela opressão política ou pela incapacidade reprodutiva.

Edição de R.U.R. da Aleph junto com outros clássicos da ficção científica
O tcheco Karel Čapek teve grande influência em obras renomadas da ficção científica e na popularização do termo “robô” [Imagem: Acervo pessoal/Júlia Sardinha]

Na utopia tcheca, os robôs foram criados como serviçais projetados para os humanos. O crescente aumento da produção de androides e a sua consequente venda aos compradores, promoveria uma sociedade livre de compromissos e sofrimentos ocasionados pelas necessidades que o capitalismo exige dos seres vivos — como ter dinheiro suficiente para comer e viver de forma digna. 

Enquanto responsáveis pela sua própria sobrevivência, os homens são subservientes do sistema capitalista em que vivem e, posteriormente, também passam a ser dependentes dos robôs. Karel Čapek leva o seu público a questionar a diferença — se é que há uma — entre o mestre e o escravizado, entre o criador e a criatura.

Um bolo também tem camadas

Tal qual uma cebola, um bolo também possui camadas. Porém, é difícil encontrar alguém que não goste do doce. Infinitamente mais simples é a tarefa de achar aqueles que não simpatizam com o legume. A ficção científica, por exemplo, não cai no agrado de todos que a consomem.
R.U.R.: Os Robôs Universais de Rossum conquista os leitores que procuram uma leitura rápida e de linguagem simples. Apesar de ser uma obra do início do século passado, a versão em português é facilmente compreendida como se a peça tivesse sido escrita no último mês. Em partes, considero essa a versão mais acessível ao vocabulário moderno pela tradução feita por Erick Fishuk diretamente do tcheco para a edição da Editora Aleph.

“Se vocês quiserem ser como os humanos, devem matar e dominar. Estudem a história! Leiam os livros humanos! Se vocês quiserem ser humanos, devem dominar e assassinar!”

Robô Damon, p. 219

Mas, como representado na história real da humanidade e na obra, os homens têm o “talento” de criar e destruir. Os personagens de Čapek são interessantes, sobretudo pela estranha relação compartilhada entre eles de extrema devoção e, supostamente, de amor inquestionável. O autor não destruiu sua obra, porém deixou lacunas na narrativa com diálogos incompletos e fechamentos de atos sujeitos à interpretações abertas.

Outro detalhe que acredito que possa prejudicar a leitura é a quebra dos discursos entre mais de três personagens ao mesmo tempo. Ao pensar na dinamicidade exigida pelas atuações de peças de teatro, a escrita cumpre o seu papel, mas pode confundir o leitor não habituado a ler obras do gênero, dividindo continuamente o seu olhar entre o nome do personagem e a respectiva fala. Foi uma leitura prazerosa e, finda, é justificável todo o agradecimento que os apaixonados por robôs e ficções científicas têm por Karel Čapek e suas nuances entre o que significa, de fato, ser humano.

Imagem de capa: Reprodução/Editora Aleph

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