Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A infelicidade que mata até substantivos inanimados

Em livro que abalou a literatura brasileira em meados do século 20, Lúcio Cardoso explora temas polêmicos e borra os limites entre certo e errado em uma sociedade conservadora

O que dá vida a uma casa? E o que é capaz de tirar essa vida? As perguntas que surgem ao lermos o título de Crônica da Casa Assassinada (Companhia das Letras, 2021) nos acompanham por toda a leitura, sem respostas fáceis ou explícitas. Para entender o romance que é considerado a obra-prima de Lúcio Cardoso, é preciso mergulhar nas profundezas do amor, do ódio, do ciúme e da culpa, em meio à atmosfera escura e asfixiante de um casarão no interior de Minas Gerais

 

O livro conta a história da família Meneses, que já foi proprietária de grandes extensões de terra no interior mineiro, tendo entrado em decadência desde a morte de sua matriarca. Restaram apenas a antiga casa, que servia de sede da fazenda, e a renda cada vez menor de pequenas atividades agropecuárias na cercania. O declínio que se pôs em curso anos antes acentua-se com o abalo nas relações interpessoais instaurado desde a chegada de Nina. A bela jovem do Rio de Janeiro ingressa na família ao se casar com Valdo, filho mais novo da linhagem de três irmãos. 

 

O descompasso entre a personalidade urbana e jovial de Nina e a sisudez dos demais membros da casa é uma ruptura que parece esgarçar ainda mais as rachaduras que corroem lentamente a estrutura física do casarão. O mesmo descompasso parece aumenta a sensação de aprisionamento e desolação das personagens, em meio às janelas sempre fechadas para evitar os olhares curiosos de vizinhos. 

 

Na imagem, os atores que interpretaram os personagens principais da obra literária encontram-se na frente de uma porta verde, com destaque para Nina ao centro.
A atriz Xuxa Lopes interpretou Nina em espetáculo teatral de 2011 baseado no livro de Lúcio Cardoso e indicado a prêmios no Brasil. Outras adaptações da obra incluem um filme homônimo lançado em 1971 e dirigido por Paulo César Saraceni. [Imagem: Divulgação]

 

Publicado originalmente em 1959, Crônica da Casa Assassinada coroa uma trajetória iniciada por Cardoso mais de duas décadas antes, com o romance regionalista Maleita (1934). Mas essa nova narrativa vai além do regionalismo da segunda geração modernista brasileira e inclui em seu cerne toda a densidade de um romance psicológico. O autor, um dos maiores escritores brasileiros do século 20, constrói uma trama emaranhada a partir de cartas, entradas de diários, relatos, confissões e testemunhos. Narradores em primeira pessoa, tradicionalmente pouco confiáveis, apresentam-nos a pontos de vista complementares, muitas vezes conflitantes, que exigem de nós atenção e uma boa dose de trabalho para recompor a cronologia dos acontecimentos. 

 

Logo no início, o peso da temática se instala com a apresentação de Nina e André, como mãe e filho, mas também amantes, em um leito de morte. Inclusive, a descrição da morte é um dos maiores exemplos da potência do livro em transformar o abstrato em palpável. A minuciosidade de detalhes ao falar de sentimentos e percepções, que em alguns momentos chega a ser cansativa, faz com que possamos sentir de forma vívida os cheiros das violetas e da podridão, os prazeres e as dores das personagens no decorrer dos anos. Contudo, tal potência tem um custo alto: ao longo das mais de 500 páginas, somos acompanhados pela pesada angústia do silêncio e do rancor, o que torna a leitura um processo difícil e lento, porém marcante, que em muito se assemelha à vida arrastada por décadas na casa dos Meneses. 

 

Na imagem há o autor Lúcio Cardoso, em preto e branco e aparentemente na praia.
Lúcio Cardoso, romancista, dramaturgo e poeta que se destacou pela qualidade de sua obra e pelo debate sobre sua experiência enquanto homossexual na literatura brasileira. [Imagem: Reprodução/Companhia das Letras]

Embora o protagonismo muitas vezes possa ser atribuído a Nina, personagem feminina que se destaca pela força e pela complexidade de sua natureza, a verdadeira protagonista do livro é a casa, seja no sentido de estrutura física ou no sentido de clã. Afinal, é por meio das relações estabelecidas entre Nina e os demais membros da família, especialmente a cunhada Ana, que toda a deterioração material e humana se consolida. 

 

A melancolia que caracteriza Crônica da Casa Assassinada não é quebrada nem ao final, quando uma reviravolta nos surpreende em nossos próprios julgamentos. Ao contrário, a revelação de um segredo central à narrativa só nos leva ainda mais a fundo na escuridão da traição, do abandono e da vingança, assim como no poder do tempo em destruir até mesmo as imagens de nós mesmos que, hipocritamente, tentamos imobilizar. 

 

 

 

*Imagem de capa: [Detalhe de capa da edição de Portugal, 2018/Reprodução/Compasso dos Ventos]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima