Por Mariana Daderio Ricci (mariana.ricci@usp.br)
Hoje, dia 5 de maio, Beth Carvalho completaria 78 anos. Há cinco anos sem Beth, o Brasil sofre com a ausência de um dos maiores ícones da música popular e agitadora das grandes rodas de samba do país. Cantora, compositora e instrumentista, Elizabeth Santos Leal de Carvalho construiu uma das maiores carreiras da música brasileira e deixou um legado de mais de 50 anos que firmou o samba como ele é hoje.
A cantora revelou grandes nomes do gênero — como Zeca Pagodinho e Fundo de Quintal — , deu visibilidade a compositores pretos e pobres e rememorou bambas prestes a cair em esquecimento, como Cartola e Nelson Cavaquinho. É essa convergência de influências que intitulou Beth Carvalho como a Madrinha do Samba.
Andança — A trajetória da Madrinha
“Vagando em verso eu vim”
Nascida na zona sul do Rio de Janeiro, Beth Carvalho cresceu cercada de bossa nova. Ganhou seu primeiro violão ainda na infância e, aos 19 anos, gravou um compacto simples com a música Por quem morreu de amor, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. A trajetória da cantora na bossa nova, porém, não duraria muito: seu primeiro grande álbum de sucesso Andança (1969) foi o último trabalho de Beth com esse gênero musical. Logo, a artista voltou sua carreira para o samba.
“Eu ia pra reunião da Bossa Nova e ficava um pouco irritada com o elitismo daquilo. Musicalmente era muito bom, mas o comportamento era muito elitista”, afirma a instrumentista em uma de suas gravações autorais presentes no documentário Andança- Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, que reúne um acervo de mais de 800 horas de vídeos caseiros feitos pela cantora contando sua trajetória.
O desconforto de Beth com o distanciamento entre a Bossa Nova e a realidade brasileira a fez procurar o samba nos subúrbios cariocas. Assim, a cantora começou sua busca por compositores que a ensinassem sobre o samba e dessem palavras a suas melodias.
Em uma destas empreitadas, Beth subiu no Morro da Mangueira e encontrou-se com Cartola, considerado um dos maiores sambistas da história da música brasileira. O bamba mostrou músicas inéditas à jovem cantora, como O Mundo É Um Moinho e As Rosas Não Falam, dois de seus maiores sucessos que seriam lançados nos anos seguintes. A presença de As Rosas Não Falam no repertório de Mundo Melhor (1976), álbum de estreia de Beth no samba, a consolidou como um dos principais nomes da indústria musical brasileira.
Ainda nos anos 70, a cantora passou a frequentar o bloquinho de carnaval Cacique de Ramos, conhecido por fazer samba amador no fundo de quintal. Ali, Beth conheceu Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Almir Guineto e outros nomes que viria a revelar em seu álbum De Pé No Chão (1978), composto por músicas destes artistas. A partir de então, a sambista estabeleceu uma longa parceria com os compositores do Cacique, que, graças ao incentivo da Madrinha, tornaram-se grandes vozes do samba contemporâneo.
“Experiência eles não tem mesmo não, mas eu garanto que isso é uma revolução!”. Foi o que Beth disse quando os produtores de seu álbum De Pé No Chão questionaram a decisão da cantora de trazer os compositores do Cacique de Ramos, até então amadores, para a gravação de seu disco profissional. A cantora reivindicava os espaços de músicos e compositores em início de carreira ou então pouco reconhecidos. Ela acreditava que fazer samba era para todos, mesmo para aqueles que nunca haviam entrado em um estúdio.
Cantor, ex-integrante do Quinteto em Branco e Preto — grupo de samba paulista apadrinhado por Beth Carvalho — e músico da banda oficial da cantora, Yvison Pessoa afirma que o samba não teria a mesma projeção sem a Madrinha. “Além da voz, ela tinha um radar muito forte. De sacar o movimento. Ela realmente ia nos lugares buscar quem faz samba. Por isso surgiu um monte de gente boa; se ela não tivesse ido, o samba não seria a mesma coisa”.
“Eu sou uma garimpeira. Eu vou onde o povo está. Eu acho importante saber como é a vida do seu povo, os anseios, necessidades, enfim. Os autores estão lá, os compositores estão ali. Eu vou na fonte”
– Beth Carvalho
Pedro Bronz, diretor do documentário Andança: Encontros e Memórias de Beth Carvalho, compara Beth a Pelé quanto à importância e magnitude no século 20, mas no âmbito musical. “Ela fez a transição do passado para o presente em uma das nossas mais fortes manifestações culturais, que é o samba. Ela bebeu nos antigos e detectou os modernos. É fundamental o papel dela, ela é muito além de uma intérprete, é uma gigante”.
Não por acaso Beth Carvalho é apelidada de Madrinha do Samba. Sua ânsia de estar perto do povo a fez reunir grandes nomes do passado àqueles em ascensão. Por meio de seus apadrinhamentos, Beth montou uma das mais completas discografias da música brasileira, de forma a construir a atual cena do pagode e do samba.
Virada — A essência política de Beth
“Quem tem muito tá querendo mais e quem não tem tá no sufoco”
Além da influência no samba, Beth teve grande importância em movimentos políticos no Brasil. Durante a Ditadura Militar, viu seu pai, então advogado, ser cassado e preso. Nas Diretas Já, Beth foi uma das principais vozes do movimento. Subiu em palanques nas manifestações de 1984 ao lado de Luís Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola, aliados políticos da cantora pelos anos que se sucederam.
Beth defendia que artistas pudessem expressar-se politicamente e fez isso por meio de muitas de suas músicas, como Virada, Meu Sangue É Brasil e Veias do Brasil. “Antes de ser artista, eu sou uma cidadã, por que não posso dar minha opinião política? Eu falo aquilo que eu penso, nas pessoas em quem eu acredito. Por que eu acredito nessas pessoas? Porque essas pessoas estão preocupadas com o povo brasileiro. Eu gosto de pessoas preocupadas com o povo, pois o povo brasileiro vive muito mal”, afirma a cantora no documentário Andança: Encontros e Memórias de Beth Carvalho.
Yvison pontua que, para além do profissionalismo na indústria musical, aprendeu com Beth sobre a importância política do samba. “O samba tem uma ideologia, ele não é alienado. O povo brasileiro é o que é por causa do samba. Ele faz que o povo seja mais solidário, mais humano. A roda de samba é democrática. É o mundo que deu certo”, reforça o músico.
A ligação de Beth com a política não era unicamente partidária. A artista entendia o samba como uma ferramenta de inclusão democrática e racial do povo brasileiro. “Ela fazia a política não partidária do dia-a-dia. Ela jogava luz aos compositores e músicos, os trazia para um primeiro plano”, declara Pedro.
Falar e cantar sobre a ancestralidade negra eram marcas registradas da Madrinha do Samba. Antirracista em essência, Beth foi uma grande aliada das causas pretas no samba. Ela defendia que o gênero musical era fruto da africanidade e que deveria ser devolvido à sua origem. Ao subir nos morros do Rio de Janeiro, a instrumentista buscava a representatividade preta na música brasileira e, principalmente, no samba.
“O samba tem a ver com o lado político, o lado social de assumir a minha negritude, que eu gostaria que todos os brasileiros assumissem, porque o Brasil é um país negro, graças a Deus!”
– Beth Carvalho
Nas Veias do Brasil — O que torna a madrinha brasileira por completo
“O samba corre nas veias dessa Pátria Mãe Gentil”
A Madrinha do Samba era brasileira em nacionalidade e essência. Carnavalesca, tinha como escola do coração a Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro. Desfilou e foi homenageada inúmeras vezes na avenida. A música Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho, também mangueirense, foi gravada por Beth e contém na letra uma homenagem à Estação Primeira.
O futebol também não fica de fora da história de vida da cantora. Botafoguense desde a infância, a Madrinha levou a paixão pelo time para a vida toda. Ainda escutou seu hit Vou Festejar ser ecoado no Mineirão como hino do Atlético Mineiro, time que apadrinhou.
Uma das maiores alegrias da vida de Beth foi Luana, sua filha. A musicista a levava para rodas de samba e gravações de discos, o que fez a menina, crescida na euforia musical, também virar cantora e perpetuar o legado da mãe.
Absorver a brasilidade do povo é o principal legado que Beth Carvalho deixa para o mundo do samba e para a sociedade, como afirmam Pedro e Yvisson. “Ela mostra muito bem a essência da formação do nosso povo, da onde que a gente veio, e isso é muito importante pra saber pra onde a gente vai” pontua o cineasta. “Beth ensinou a fazer uma coisa brasileira, valorizar o que é nosso”, reforça Yvisson.
“O samba é a minha vida. Ele é a terapia popular. O samba é a crônica do dia-a-dia de um povo; é a negritude. É a revolução”
– Beth, em entrevista para a TV Globo
Beth Carvalho foi uma das maiores responsáveis por manter o samba popular, político e preto. A cantora era o alicerce que fazia a música brasileira, em especial o pagode e o samba, tornar-se patrimônio cultural do povo. “Não existe essa coisa de zona norte, zona sul, subúrbio. Existem pessoas que gostam de samba”, diz. Para além do título de Madrinha do Samba, Beth era a Madrinha do Povo.
Quando questionado sobre o que Beth diria hoje se estivesse viva ante tantas mudanças no mundo e no samba, Yvisson respondeu: “Ela diria Ditadura Nunca Mais”.
“O legado dela tá aí. Você ouve o legado dela a cada esquina, em cada roda de samba.” afirma Pedro Bronz. Mesmo cinco anos após sua morte, Beth Carvalho se faz presente na memória popular por sua luta política, suas crenças sociais e, em especial, por seu samba, que vive nas vozes dos brasileiros.