Por Maria Eduarda Lameza (duda.lameza@usp.br)
Nas últimas duas décadas, a América do Sul passou por transformações que alteraram profundamente o seu perfil político e ideológico. No início do milênio, representantes de esquerda foram eleitos em quase todos os países do bloco. A partir de 2010, foi a vez dos governos de direita tomarem o poder. Agora, a região convive com os impactos dessas ondas e com um futuro incerto.
Passado e presente
Os países da América do Sul, apesar de suas características locais, apresentaram eventos históricos semelhantes, o que ajuda a explicar certo padrão na política atual da região. Para entender essa relação, a Jornalismo Júnior entrevistou a professora de história da América Latina contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Gabriela Pellegrino.
A professora explica que essa parte do continente sofreu, em geral, colonização de exploração por parte dos países ibéricos (Espanha e Portugal) e começou a atingir sua independência durante o século XIX. Nesse momento, surgiram dois tipos de partidos: os conservadores e os progressistas, o que levou ao surgimento da polarização no território. Outro ponto em comum foi a pressão exercida pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria, a qual causou a instalação de diversos regimes ditatoriais na região e a repressão de manifestações populares.
Após os processos de redemocratização, os países sul-americanos entraram na chamada “era neoliberal”, quando foram feitas reformas econômicas baseadas, mais uma vez, na influência dos Estados Unidos por meio do Consenso de Washington. Criada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), junto ao Banco Mundial e ao Departamento do Tesouro dos EUA, essa política recomendava aos governos da região medidas de privatização e livre-mercado. Na visão de Gabriela, as reformas propostas pelo Consenso falharam ao não diminuir as desigualdades sociais e econômicas na América do Sul.
Maré rosa: a tempestade perfeita
A expressão onda ou maré rosa foi escrita pela primeira vez pelo jornalista estadunidense Larry Rother em 2005, logo após a vitória de Tabaré Vázquez como presidente do Uruguai. Em seu artigo para o The New York Times, “Com novo chefe, Uruguai vira à esquerda em padrão latino”, o termo é usado para descrever o momento político vivido pela América Latina à época.
Segundo o jornalista, a virada do Uruguai consolidou um consenso na região e ajudou a definir a nova esquerda democrática. Para ele, “é mais uma maré rosa do que vermelha”, porque os políticos progressistas deixaram de lado alguns aspectos do que o autor chama de socialismo doutrinário (marxismo) e passaram a jogar de acordo com as regras do capitalismo mundial. Ainda assim, suas ações não esqueceram o bem-estar social e pregavam uma maior intervenção do Estado na economia.
O movimento teve início com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, seguido por Ricardo Lagos no Chile, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Néstor Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, entre outros, que, em sua maioria, conseguiram se reeleger e nomear seus sucessores.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Ghaio Nicodemos, doutor em ciência política e pesquisador do Núcleo de Estudos de Atores e Agendas de Política Externa (NEAAPE) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), explica as causas desse fenômeno. Para ele, houve uma combinação de três fatores que impulsionaram a eleição de governos de esquerda em uma área que, historicamente, costumava votar na direita.
Segundo o cientista político, o primeiro fator foi o desgaste das reformas econômicas neoliberais feitas nos anos 1990. O segundo, o retorno da população às ruas após a repressão que vigorou durante as ditaduras que aconteceram no continente, fortalecendo os movimentos sociais. Por fim, houve o “boom das commodities”.
A expansão demográfica mundial e o fortalecimento de países asiáticos, como a China, fizeram com que a América Latina se tornasse uma grande exportadora de matérias-primas — como petróleo, grãos e minerais —, o que permitiu o crescimento econômico da região. A frustração com governos anteriores, a forte mobilização social represada após regimes autoritários e a melhoria na economia e na renda populacional permitiram não apenas que representantes progressistas se elegessem, mas que se mantivessem no poder.
“A onda rosa original foi uma tempestade perfeita que favoreceu a centro-esquerda.”
Ghaio Nicodemos
Maré azul: o fim da tempestade
A partir dos anos 2010, a direita foi ganhando cada vez mais espaço dentro do território em um movimento de oposição que ficou conhecido como “maré azul“. O preço das commodities começou a cair, assim como o crescimento econômico dos países sul-americanos. Escândalos de corrupção passaram a ser notícia recorrente nos jornais da região. Essa combinação fez com que a popularidade dos governos de esquerda diminuísse tanto entre a população, quanto entre setores políticos, econômicos e financeiros.
No cenário internacional, cada especialista destaca um evento que também ajudou a transformar o rosa em azul. Para a professora Gabriela Pellegrino, o fim da União Soviética representa a crise do projeto da esquerda mais radical e “a queda do muro de Berlim, em 1989, já começa a deslocar o eixo das polarizações políticas mais para a direita”.
Já o pesquisador Ghaio Nicodemos cita a eleição de Donald Trump, em 2016. Segundo ele, o ex-presidente dos EUA passou a ser uma força dentro do continente americano e “copiar seu comportamento no processo eleitoral e na forma de governança ajudou a fortalecer grupos de direita”.
A eleição de Sebastián Piñera no Chile, em 2010, abriu a maré azul. Ela foi seguida pela de Mauricio Macri na Argentina, Pedro Pablo Kuczynski no Peru, Guillermo Lasso no Equador, dentre outras. O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, foi o momento emblemático de transição de uma onda para a outra e a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, é vista como sua consolidação pelo cientista político.
De acordo com a professora Gabriela Pellegrino, a chegada da maré azul trouxe consigo uma direita extremista. Para ela, essa onda política destaca um programa diferente para cada eleitor ao abordar a pauta de costumes — agenda conservadora em relação a temas sensíveis como religião, família e direitos das minorias — e flerta com o autoritarismo ao desafiar instituições democráticas.
“A frustração com a democracia favorece o surgimento do discurso radical. Ele tem apelo porque apresenta um super-herói e um culpado, uma solução fácil, ilusória e, muitas vezes, nefasta. É um discurso de ódio”
Gabriela Pellegrino
Presente e futuro
Agora, a América do Sul se encontra dentro de uma mistura de cores. O Brasil, em 2022, elegeu novamente Luiz Inácio Lula da Silva, representante da esquerda. Já a Argentina, em 2023, escolheu Javier Milei — membro da direita — como presidente e a Colômbia, único país que nunca havia participado da maré rosa, elegeu pela primeira vez, em 2022, um líder progressista, Gustavo Petro, o que torna o cenário cada vez menos previsível.
Segundo o pesquisador Ghaio Nicodemos, não é possível caracterizar o momento atual como uma nova onda rosa, pois os presidentes de esquerda que são eleitos têm dificuldades em implementar políticas sociais progressistas e chegam ao final de seus mandatos enfraquecidos.
O mesmo pensamento pode ser dito sobre a possibilidade de outra onda azul, pois os governos de direita não têm conseguido fazer sucessores. Assim, “me parece que estamos entrando em uma fase onde o eleitor, observando que não obtém os melhores resultados, vota na oposição”, comenta Nicodemos.
Essa alternância política, entretanto, é vista pelo pesquisador como prejudicial à qualidade de vida da população. De acordo com ele, os projetos de Estado desses dois campos ideológicos são inconciliáveis, o que dificulta a continuidade de políticas públicas fortes e eficientes. Isso, por sua vez, além de gerar desgaste e polarização, contribui para a precarização do emprego, da renda e da assistência social.
“Acredito que a gente vai conviver com esse pisca-pisca no mapa da América do Sul até um dos lados encontrar uma fórmula que entregue algo que mantenha a maioria da população fidelizada novamente”, afirma o cientista político.