Jornalismo Júnior

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As representações de personagens LGBTQIA+ no cinema

A comunidade LGBTQIA+, em sua trajetória até a atualidade, teve suas representações no cinema aliadas a preconceitos e estereótipos

Historicamente, o cinema é responsável por criar e manter padrões, sejam eles de moda, de beleza, ou sociais. É impossível esquecer as jaquetas de couro usadas em filmes sobre o ensino médio nos anos 1980, ou as roupas e músicas do estilo disco nos anos 1970. Quando o assunto é sexualidade e identidade de gênero, o cenário não é diferente. Esse fenômeno parece ser inofensivo e pode passar despercebido para quem assiste aos filmes, mas, na realidade, é um grande disseminador de estereótipos e padrões ultrapassados, perpetuando preconceitos que se enraízam cada vez mais na sociedade.

Os fatores que influenciam na forma com que o cinema aborda certos assuntos e representa alguns personagens vão desde o país em que o filme é produzido até o orçamento e recursos disponíveis. O resultado disso é o evidente apagamento de alguns grupos sociais na indústria cinematográfica.

Mesmo que o respeito à diversidade sexual esteja melhorando, o Brasil ainda é o país que mais mata LGBTs no mundo. [Imagem: Reprodução/Unsplash]

A representação falha de personagens LGBTQIA+, ou queer, afeta o processo de autoconhecimento e formação de identidade de muitos membros dessa comunidade. Ao verem personagens estereotipados nas telonas, eles se sentem pressionados a estarem dentro de um padrão que não condiz com a verdadeira realidade da sociedade. 

Em entrevista para a Jornalismo Júnior, o ator e estudante de artes Leonardo Scaff, fã do cinema nacional e internacional, disse sentir essa pressão. “Acredito que o cinema é um dos grandes criadores de estereótipos. Acho que, muitas vezes, por conta do cinema, as pessoas criam um julgamento em cima disso, que você deve ser de um jeito e não pode ser de outro. Além do cinema retratar muitas vezes apenas um tipo de personalidade, e não diversificar como é na realidade”, afirmou Leonardo, que se identifica como bissexual.

Mas de onde vem esse problema? Sempre foi assim? Será que estamos evoluindo? Para entender melhor tudo isso, precisamos discutir e analisar o cinema LGBTQIA+ nas últimas décadas e na atualidade.


A história do cinema LGBTQIA+

A indústria cinematográfica está longe de ser a mesma de 50 anos atrás. Na época, as produções seguiam uma série de regras e normas impostas pelo chamado “Código Hays”, um regulamento com diretrizes para a realização de filmes que imperou no cinema estadunidense entre os anos 1930 e 1960.

O Código surgiu depois da Suprema Corte dos Estados Unidos decidir que os filmes estavam fora da Primeira Emenda da Constituição Norte-americana. Na prática isso significou que a liberdade de expressão não era válida para o cinema. Com isso, cenas de nudez, de violência, com beijos considerados exagerados e palavrões foram banidas por, teoricamente, induzirem o público ao imoral, ao crime, e por irem contra os ideais cristãos ocidentais da época. 

Os filmes que tratavam da homossexualidade ou da transgeneridade também eram censurados com a mesma justificativa religiosa. Por isso, nas produções dessa época, as representações de personagens LGBTs eram feitas de uma forma agressiva e injusta, como vilões, por exemplo. Essa é uma das razões de personagens da comunidade cumprirem papéis estigmatizados até os dias de hoje. 

Outro fator que influenciou nas dramatizações de papéis LGBT+ foi a epidemia de HIV na década de 1980. A propagação da doença fez com que a rejeição e o medo das pessoas em relação aos homossexuais aumentasse, isso porque, com o conceito de “grupo de risco”, a culpa da disseminação da doença acabou caindo no colo dos gays. Parte da sociedade apelidou falsamente a doença de “praga Gay” e, alguns filmes, antigos e atuais, deixam evidente o preconceito relacionado ao estigma da doença na comunidade.

Um exemplo é Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club, 2013). A trama conta a história do protagonista Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um eletricista heterossexual de Dallas que é diagnosticado com AIDS em 1986. No momento em que os médicos informam Ron sobre o diagnóstico, o personagem se recusa a aceitar os resultados dos exames por não ser gay. “Eu não sou viado” e “Devem ter confundido as minhas amostras com as de um mordedor de fronhas” são algumas das falas preconceituosas que evidenciam a homofobia durante a epidemia. 

Com seu papel no filme, o ator Matthew McConaughey ganhou o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Ator em 2014. O longa recebeu ao todo seis indicações em cada premiação. [Imagem: Divulgação/Voltage Pictures]


O cinema Queer no Brasil

No cinema nacional, os filmes também demoraram a incorporar personagens LGBT+ em seus elencos. Foi em meados da década de 1960 que essas representações apareceram de forma um pouco mais séria e justa, quando, com a atuação dos movimentos LGBT+, feminista e negro, a sociedade começou a se tornar menos conservadora. Diferente de filmes criados com base na lógica antiga de representar personagens LGBT+ com um teor de chacota que existia no país até então. 

 O problema é que esse movimento se deu exatamente no momento em que a Ditadura Militar começava no Brasil, o que significou, com as censuras, uma regressão na luta pela visibilidade da comunidade. Na época, muitos filmes foram proibidos, e cenas descartadas por meio da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e do Departamento de Censura Federal, que controlavam as produções cinematográficas nos anos de chumbo.

 Apesar do retrocesso, as temáticas LGBTQIA+ nunca deixaram de estar presentes nos filmes, mesmo com as pressões autoritárias do Regime Militar. Para driblar a repressão, os diretores passaram a tratar do tema de forma sutil ou indireta, como em O Beijo da Mulher Aranha (1985), dirigido pelo argentino Hector Babenco, indicado ao Oscar de Melhor Direção pelo longa. A produção narra a convivência e o desenvolvimento da amizade entre os prisioneiros Luis Molina (William Hurt), homossexual, e o ativista político Valentin (Raúl Juliá). Apesar de não ser o foco principal, a homossexualidade é abordada sutilmente ao longo do filme.

O filme foi dirigido por Hector Babenco, falecido em 2016, que teve sua trajetória narrada no documentário Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2019), produzido por sua esposa, a diretora e atriz, Bárbara Paz. [Imagem: Divulgação/Hb Filmes]


A situação na atualidade

Com o fim do Código Hays nos Estados Unidos e da Ditadura Militar no Brasil, muitos assuntos voltaram a ser discutidos no cinema. No entanto, ainda que pareçam mais incisivos, diversos e conscientes, os filmes continuam longe de estar em um patamar justo para personagens que fogem da heteronormatividade. É visível que o cinema, assim como a sociedade, ainda está evoluindo quando o assunto é a comunidade Queer

Já é possível ver esses personagens em papéis de destaque em grandes produções de Hollywood, como em filmes de ação e heróis. Entretanto, uma pesquisa feita em 2021 pela Getty Images, líder em comunicação visual no mundo, em parceria com a Glaad, organização de defesa de mídias LGBT, revelou que apenas 20% dos entrevistados afirmaram ver personagens queer regularmente no cinema tradicional. Uma outra pesquisa, realizada em 2019 pela Universidade do Sul da Califórnia, apontou que, entre os filmes lançados no período de 2007 a 2017, apenas 4,5% dos personagens eram LGBT. A presença desses personagens ainda é limitada na indústria cinematográfica. 


Representação de personagens LGBTs

As representações da comunidade LGBTQIA+ no cinema, em grande parte dos casos, são extremamente superficiais, estereotipadas, conservadoras e, em alguns casos, preconceituosas. É muito comum assistirmos a filmes nos quais os personagens LGBT+ parecem ter sido criados a partir de uma “receita”, o que se torna repetitivo e até clichê. “Acredito que sejam rasas, pouco exploradas e que sempre estão rodeadas pelos mesmos estereótipos e sempre com as mesmas características de personalidade, trazendo um ‘senso comum’ de como devemos ser”, opinou Scaff sobre a representação de personagens da comunidade queer no cinema.

O personagem gay, além de quase sempre ser o antagonista ou melhor amigo dos personagens principais, na maioria das vezes é representado, ou de forma caricata, ou melancólica e solitária, como o Crô (Marcelo Serrado), de Crô: O Filme (2013), que é caricato e passa todo o filme se sentindo triste e sozinho.

Crô: O Filme é um spin off da novela Fina Estampa (2011-2012), quando o personagem Crodoaldo Valério foi introduzido e conquistou o público brasileiro. [Imagem: Divulgação/Globo Filmes]

Já as personagens lésbicas, normalmente, são vistas nas telonas como mulheres menos femininas e também solitárias, como Alysha Hawthorne (Uzo Aduba) de Lightyear (2022), animação infantil muito criticada por setores mais conservadores da sociedade, que reprovaram uma de suas cenas, na qual, naturalmente, acontece um beijo entre Alysha e sua companheira. 

Lightyear é a primeira animação do estúdio a mostrar um beijo entre personagens do mesmo sexo e foi proibido em 14 países ao redor do mundo [Imagem: Divulgação/Pixar]

O caso dos personagens bissexuais não é muito diferente. Esses costumam ser representados como pessoas que estão em uma fase “experimental”, indecisas, rebeldes, confusas e que estão escolhendo a “saída mais fácil”. Um exemplo é a personagem Alyssa (Joey Lauren Adams), do filme Procura-se Amy (Chasing Amy, 1997), que é apresentada como uma mulher lésbica que, eventualmente, é forçada a questionar a sua sexualidade ao se apaixonar por um homem, o que acaba desencadeando uma série de comportamentos e falas bifóbicas de outros personagens. 

O longa é baseado em eventos reais da vida do diretor Kevin Smith e recebeu indicações para prêmios no Festival de Cannes e no Globo de Ouro [Imagem: Divulgação/View Askew Productions]

Além dessas, outras pessoas da comunidade sofrem com todo esse apagamento. A população transexual e transgênero não se enxerga verdadeiramente nos filmes, isso porque a representação dessas pessoas é sempre carregada de um peso emocional muito grande e desproporcional à realidade. As personagens trans geralmente são retratadas como confusas e mentalmente instáveis. Um dos filmes de grande repercussão recente sobre o assunto é A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl, 2015), que narra a história de autodescoberta de Lili Elbe (Eddie Redmayne), uma das primeiras mulheres a passar por uma cirurgia de redesignação sexual na história.  

Além de trazer visibilidade para as pessoas trans no cinema, A Garota Dinamarquesa ganhou reconhecimento em diversas áreas de sua produção, principalmente na maquiagem, nos figurinos e na ambientação dos anos 1920 e 1930. [Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

Apesar de tudo, essa situação vem melhorando, ano após ano, graças ao avanço das discussões sobre identidade de gênero e sexualidade na sociedade. O número de personagens LGBT+ vem crescendo e essas representações têm sido cada vez mais pensadas de uma forma empática e diversa. Ainda assim, a indústria cinematográfica precisa garantir uma exibição mais honesta de personagens LGBTQIA+, levando em consideração a ampla variedade de histórias e narrativas que essa comunidade possui.

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