Por Nícolas Dalmolim (Nicolas.dalmolim@usp.br)
“A gente gosta de dinheiro, mas não costuma falar muito disso, não”. Foi assim que um dos entrevistados nesta reportagem definiu as conversas sobre finanças em sua família. Porém, não mencionar o tema é difícil quando, nas palavras de outro, o principal assunto nas casas são as dívidas, ou melhor, as “contas a pagar”.
De acordo com dados divulgados pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) em setembro, 77,4% das famílias brasileiras estão em situação de endividamento. Considera-se endividado quem tem uma ou mais faturas a serem quitadas, não necessariamente atrasadas. Entre as avaliadas pela entidade estão cheque especial, cartão de crédito e empréstimo.
Para Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social pela PUC-SP, o perigo dos tipos de dívida citados são seus juros. A profissional, também presidente da Iarep (International Association for Research in Economic Psychology), entende que eles são “extremamente altos” no país. “Se [a pessoa] deixar de pagar três meses, já vira uma bola de neve e depois ela não consegue sair mais”, afirma. Quando isso ocorre, o consumidor cai na inadimplência, condição que pode “sujar” seu nome, ou seja, colocá-lo em listas de órgãos de proteção ao crédito, como o Serasa.
Dados da instituição indicam que 71,82 milhões de brasileiros estão inadimplentes e os mais afetados possuem entre 41 e 60 anos. Segundo Manuel Enriquez Garcia, presidente da Ordem dos Economistas do Brasil (OEB), a transformação do endividamento em inadimplência “é a pior coisa que pode ocorrer em uma família”. Pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), publicada em abril, cita diminuição de renda, imprevistos pessoais e desemprego como as principais razões para se endividar no país.
Nesta reportagem, a J. Press discute as possíveis causas para o elevado número de endividamento e inadimplência no Brasil. Além disso, analisa o que está sendo ou pode ser feito para resolver o problema.
Crédito (super) acessível
O crédito é um valor concedido por bancos, lojas ou instituições financeiras a um determinado cliente. A principal condição para seu fornecimento é a confiança de que depois ele será pago com juros, uma espécie de taxa de aluguel do dinheiro.
O cartão de crédito é um dos tipos de dívida mais comuns. Tudo o que é gasto com ele em um mês não é pago imediatamente, mas quitado no vencimento da fatura. O cheque especial, por sua vez, se trata de um valor liberado automaticamente na conta do usuário. É comum que ele seja confundido com uma “extensão” da conta, quando, na verdade, a quantia utilizada deve ser paga depois.
O financiamento é um dinheiro fornecido com um objetivo específico, como a compra de um carro ou imóvel. O consumidor quita o total financiado em parcelas, que normalmente se arrastam por anos. Já o empréstimo, chamado tecnicamente de crédito pessoal ou empréstimo pessoal, é um valor obtido sem a necessidade de demonstrar sua utilização, mas também pago em cotas pelo cliente.
Enquanto as quantias pagas no cartão de débito saem imediatamente da conta, o crédito permite postergar esse processo em um mês. [Imagem: Marcello Casal Jr/Agência Brasil]
Na visão de Manuel, por mais que o crédito seja a “roda da economia”, ele não pode ser tão acessível. “Nos bancos dos países europeus e dos Estados Unidos, você não tem facilidade de obter empréstimos bancários como aqui”, diz. No entanto, ele indica que a compra parcelada de bens duráveis, como eletrodomésticos, é um endividamento mais saudável já que seus juros são menores.
Empréstimos personalizados
Algumas categorias de crédito possuem suas especificidades. O empréstimo, por exemplo, pode ser dado sem garantias ou com a garantia de um bem. Outro modo de consegui-lo é o consignado, que é destinado a aposentados e tem suas parcelas descontadas diretamente do benefício do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Parcelas do consignado são retiradas do INSS. [Imagem: Matheus Britto/Prefeitura Municipal de Jaboatão dos Guararapes]
O sapateiro Edson Marques Confessor fez um empréstimo consignado recentemente. Segundo ele, o dinheiro era necessário para pagar uma conta e o processo foi rápido. “Assinou o contrato, deu o valor, levou o cartão, recebeu e já era”, explica. Ele também conta que tentou antecipar o pagamento da dívida, mas foi avisado pelo gerente do banco de que não era possível.
O pensionista ainda alega ter sido comunicado por seu banco apenas sobre o número de parcelas, sem menções às taxas previstas no contrato, que ele garante serem baixas: “Quando a gente vai ver é 1%, 2% ao ano”. Apesar de correto acerca da porcentagem, Confessor se equivocou sobre a periodicidade, já que, em outubro, o Conselho Nacional de Previdência Social aprovou o teto de juros do consignado em 1,84% ao mês.
Nem todos conhecem completamente as condições de um consignado. De acordo com Vera Rita, essa modalidade de crédito é comumente utilizada por instituições financeiras para enganar pessoas mais idosas. “Muitas vezes o banco deposita um crédito consignado sem a pessoa ter pedido, mas ela não consegue explicar [a situação] direito e é complicado voltar atrás”.
Taxas de Pandora
Ainda assim, o consignado tem juros menores em comparação a outras categorias de crédito. Segundo a Fundação Procon-SP, a taxa média do empréstimo pessoal em outubro foi de 7,97% ao mês, resultando em 150,93% ao ano. Na prática, caso um cliente pegasse qualquer montante de seu banco para ser quitado em 12 meses, terminaria pagando mais que o dobro no total.
O cheque especial tem índices parecidos, já o cartão de crédito é mais complexo. No sistema atual, o consumidor que não consegue pagar toda a fatura passa um mês na modalidade de rotativo para depois ter a dívida parcelada. Os juros do rotativo são um dos mais altos do planeta, chegando, de acordo com o Banco Central (BC), a 445,7% ao ano em julho. Ou seja, um simples atraso na quitação do cartão pode abrir uma “Caixa de Pandora” de dívidas – uma referência ao mito grego que retrata o surgimento dos males do mundo.
No início de agosto, Roberto Campos Neto, presidente do BC, disse que o fim do rotativo é uma medida estudada para combater a inadimplência. “A solução [é] que o crédito vá direto para um parcelamento”, afirmou ele em audiência no Senado. Atualmente, a taxa de juros do cartão parcelado ronda os 200% ao ano.
Roberto Campos Neto foi ao Senado Federal no dia 10 de agosto para participar de audiência. [Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado]
A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) argumenta que os juros do rotativo servem para cobrir os riscos da concessão de crédito. Em outras palavras, as instituições financeiras os usam para se prevenir caso o dinheiro continue sem ser devolvido pelo cliente. Números divulgados pelo Banco Central mostram que isso ocorre em quase metade dos casos.
Para Manuel Enriquez Garcia, a questão do rotativo deve ser resolvida com uma limitação das taxas de juros. “Ao não haver tabelamento, as financeiras vão cobrando aquilo que elas acham que determinado devedor tem que pagar”, comenta. No início de outubro, o Congresso aprovou projeto de lei que limita a 100% os juros da categoria.
No mesmo texto está incluído o programa “Desenrola Brasil”. Lançado em julho em medida provisória pelo Governo Federal, ele busca facilitar a renegociação de dívidas de pessoas físicas e tem como público alvo devedores inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) ou com renda bruta de até dois salários mínimos.
Imprevisibilidade
Além de diminuir a inadimplência, o “Desenrola” procura ajudar indivíduos em situação de superendividamento, os quais devem valores que ultrapassam sua renda mensal. Ou seja, mesmo que a pessoa destinasse todo o seu salário para pagar as contas em atraso, não seria possível quitá-las.
Vera Rita de Mello Ferreira lembra de dois perfis de superendividados: o ativo e o passivo. O primeiro define pessoas “consumistas”, que constantemente gastam mais do que podem, enquanto o segundo diz respeito a quem contrai uma dívida por um motivo inesperado. “O endividado passivo não deixa de pagar conta porque quer, ele não consegue”, indica a doutora.
“Quando se está em uma condição de falta extrema de algum recurso básico para sobrevivência [como o dinheiro], você só pensa naquilo que precisaria ter”. Vera Rita também aponta que a circunstância é comum em mulheres chefes de família, que se preocupam com a alimentação dos filhos. A consequência disso é um nível de esgotamento emocional que pode causar até a perda de pontos de QI.
Há dois anos, o Governo Federal sancionou a Lei do Superendividamento (n° 14.181/21). Ela busca garantir a renegociação de dívidas insustentáveis com as instituições financeiras e bloquear o fornecimento de crédito a consumidores com histórico de mau pagador. No entanto, a inadimplência no Brasil tem crescido todos os anos segundo o Serasa, fazendo com que a principal crítica à medida aponte para sua inefetividade.
Cultura de endividamento
Manuel acredita na existência de uma tradição de endividamento da população e entende ser comum pessoas pedirem créditos cujo dinheiro nem será utilizado por elas. “No Brasil, formou-se uma cultura de que a necessidade extra de caixa tem de ser resolvida facilmente”, afirma.
Foi o que ocorreu com a comerciante Luciana Maemura que, há alguns anos, fez um empréstimo no banco para pagar o décimo terceiro salário de um funcionário. “A empresa era dos meus pais na época, por isso que eu fiz. Não era nem para mim, [era] para emprestar para eles”, conta ela.
Diferentemente do caso do sapateiro Edson, a gerente de Luciana avisou-a sobre os termos do contrato. “Perguntou a quantia de parcelas que eu queria e o valor que podia pagar por mês”, diz a comerciante, que também sinalizou para as dificuldades em quitar o empréstimo. “Mesmo que os juros sejam absurdos, você acaba fazendo por necessidade”.
Consumo impulsivo
Ambos os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que a população é constantemente estimulada a adquirir produtos mesmo sem precisar deles. Na visão de Vera Rita, a sociedade está cada vez mais baseada em consumo. “As pessoas são levadas a ficar desejando porque não param de receber opções de compra de produtos, serviços e experiências”.
A doutora em psicologia social explica que os seres humanos consomem com base na impulsividade e no curto prazo, um costume de origem pré-histórica: “A gente ainda funciona um pouco como o pessoal que vivia nas cavernas, só que agora é uma caverna completamente complexa”. Ainda de acordo com ela, essa complexidade se deve a elementos como a publicidade e as redes sociais.
Por ser sempre inconsciente, o desejo é facilmente despertado pela propaganda, que cria uma sensação de falta no indivíduo. “Quando consumimos, a gente está imaginando como vai se sentir quando tiver aquele objeto ou aquela experiência”, comenta Vera Rita, que alerta para o caráter passageiro da felicidade após a compra.
Aplicativos como o Instagram estimulam o consumo dos indivíduos ao oferecer publicidade personalizada e mostrar estilos de vida inacessíveis. [Imagem: Antônio Cruz/Agência Brasil]
Para o economista Manuel, a publicidade é “extremamente perniciosa”, ou seja, nociva para quem tem contato com ela. Segundo ele, uma consequência do consumo impulsivo é a busca equivocada por produtos que gerem satisfação pessoal. “A compra de bens [e serviços] deve dar prazer porque está proporcionando algo importante na vida da família”.
Possíveis soluções
Vera Rita de Mello Ferreira aponta que as medidas para combater o endividamento devem ser pensadas em diferentes aspectos. No âmbito estatal, ela destaca políticas públicas, educação financeira, órgãos de defesa do consumidor e regulação. “Tem várias pequenas alterações que podem ser feitas, e a gente tem cada vez mais entidades comportamentais para assessorar o governo”, afirma.
Uma das instituições elogiadas por Vera Rita é a CINCO (Ciências Comportamentais em Governo), inaugurada em setembro deste ano. A unidade, subordinada ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, tem por objetivo auxiliar na construção de políticas estatais que se adaptem ao comportamento individual das pessoas.
Na visão de Manuel Enriquez Garcia, o “Desenrola” e a Lei do Superendividamento foram avanços, mas é preciso uma mudança cultural construída com as instituições financeiras, os governos e as famílias. “Uma boa educação financeira se dá colocando o problema central da economia: temos infinitas necessidades, mas nossos recursos são escassos”, explica ele.
No âmbito pessoal, o economista cita um exemplo prático de consumo consciente. “Eu tenho que fazer a escolha correta: comprar as coisas que eu preciso e ter uma sobra todo mês para guardar. É ela que vai me dar independência financeira lá na frente”.
O estudante Gabriel Alves conta que sempre ouviu esse conselho de sua família e, hoje, ao morar sozinho e administrar seu dinheiro, tenta aplicá-lo. Se o oposto da inadimplência é o sucesso financeiro, ele já tem seu objetivo de vida. “É o momento em que você não precisa pensar mais em dinheiro, porque sabe que já tem o suficiente para cobrir suas necessidades sem se preocupar”.
*Imagem de Capa: Reprodução/ Pexels