Por Gabriella dos Santos (gabriella.santos12@usp.br)
A Região do Sahel, situada entre o deserto do Saara e a savana africana, se estende do Oceano Atlântico ao Mar Vermelho. Composta por Mauritânia, Senegal, Burkina Faso, Mali, Níger, Nigéria, Chade, Sudão, Etiópia e Eritreia. Desde 2011, a região enfrenta desde uma onda de golpes de Estado motivados principalmente pela necessidade de conter a insurgência de grupos jihadistas e extremistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Em 2024 foi classificada como o “epicentro do terrorismo global”, ao concentrar mais de metade das mortes relacionadas ao terrorismo nos últimos anos.
Os episódios mais recentes de instabilidade política ocorreram nos últimos cinco anos: em 2020 e 2021 no Mali, seguidos de Burkina Faso em 2022 e do Níger em 2023.

Herança colonial no “Cinturão do Golpe”
Mali, Burkina Faso e Níger integram a região conhecida como Cinturão do Golpe. Apesar de diferenças políticas e geográficas, os três países compartilham histórias marcadas pelos impactos do imperialismo francês e por recentes golpes de Estado. Para entender essas semelhanças e diferenças, o professor Alexandre dos Santos de História da África no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) explica que é necessário analisar a história tanto desses países quanto de todo o continente africano.
Segundo o professor, a maioria dos países do Sahel são ex-colônias francesas que conquistaram a independência de forma tardia, na segunda metade do século 20. Desde então, esses países mantêm relações de dependência política, econômica e militar com a França – caso de Burkina Faso, Mali e Níger. Outro ponto em comum destacado por Alexandre entre os países é a insatisfação popular, geralmente motivada pela relação de dependência com o país imperialista e pela ineficácia das Forças Armadas francesas em conter o avanço dos jihadistas e garantir a segurança dos civis, diante da violência de grupos terroristas.

Alexandre aponta que a presença de grupos extremistas na região do Sahel, como a Al-Qaeda na região do Magrebe Islâmico (AQMI), tem origem em 2010, durante a Primavera Árabe. A situação se intensificou com o assassinato de Muammar Gaddafi na Líbia, em 2011, que desestabilizou o país e fragilizou os países vizinhos. Com isso, a AQMI ampliou sua área de atuação, inicialmente no Níger, e depois no Mali e em Burkina Faso.
Mali: ‘o golpe dentro do golpe’
Em 2012, o Mali enfrentou a ocupação jihadista no norte do país e, mais tarde, sofreu dois golpes em menos de um ano. Em agosto de 2020, com apoio popular, o então presidente Ibrahim Boubacar Keïta (IBK) foi deposto e preso por militares liderados pelo coronel Assimi Goita, que o acusaram de deixar a defesa do Mali nas mãos dos franceses e ser incapaz de lidar com a crise do país.
Em 2021, ocorreu um “golpe dentro do golpe”. Para restabelecer um governo de transição para a democracia, Bah Nadw foi nomeado presidente temporário e Assimi Goïta vice-presidente. No entanto, em maio do mesmo ano, Goïta depôs o Nawd e o primeiro-ministro Moctar Ouane, alegando que ambos haviam assinado a Carta de Transição sem o seu aval.
Desde que Assimi Goïta assumiu o poder, as forças armadas francesas foram expulsas do país e a insurgência jihadista aumentou significamente.
Burkina Faso: uma história de golpes
Cerca de um ano após o segundo golpe de Estado no Mali, em 2022, Burkina Faso serviu de cenário para outros dois golpes no Sahel, com apenas alguns meses de intervalo. Esses episódios, no entanto, não são isolados. Desde sua independência em 1960, o país é acarretado por instabilidades políticas. Burkina Faso foi governado por quase três décadas pelo capitão do exército Blaise Compaoré, após destituir Thomas Sankara da presidência por meio de um golpe em 1987.
Trinta e cinco anos depois, em janeiro de 2022, militares derrubaram o governo de Roch Kaboré e instauraram um regime autoritário, com toque de recolher e fechamento das fronteiras, sob o comando de Paul-Henri Damiba. Nove meses depois, Damiba também foi vítima de um golpe. O oficial Ibrahim Traoré, com uma junta militar, desempossou o então presidente. A justificativa foi praticamente a mesma do Mali: o governo falhou na segurança do país e em derrotar os terroristas.

Como previsto, as tentativas de mudança não surtiram efeito. Atualmente, as fronteiras com o Mali e o Níger estão sob o comando dos grupos jihadistas e cerca de 200 soldados e mais 130 civis foram assassinados em ação do governo em 2024.
Níger: “fora França!”
O golpe do Níger foi o mais recente dentre os ocorridos na região do Sahel. Em 26 de julho 2023, uma rebelião iniciada nas ruas da capital Niamey resultou na destituição do presidente eleito democraticamente, Mohamed Bazoum. A ação foi liderada pelo general Abdourahamane “Omar” Tchiani, então comandante da Guarda Presidencial. A população foi às ruas em apoio ao golpe militar.
O anúncio da deposição e prisão de Bazoum foi televisionado, e assim como no Burkina Faso, foi decretado o fechamento das fronteiras, a anulação da constituição do país e a dissolução de qualquer partido político. Durante os protestos em Niamey, foram avistadas bandeiras da Rússia e palavras de apoio a Vladimir Putin, presidente da Rússia, que é considerado um aliado na luta contra os terroristas, além de estimular a propaganda anti-francesa e anti-Ocidente no país.
De acordo com Alexandre dos Santos, a presença russa no país se dá por meio do Grupo Wagner, que está presente não só no Níger, mas também em outros países do Sahel e do continente africano, como um aliado da população e dos governos para combater ativamente os rebeldes. “Desde 2015, o Grupo Wagner está presente nesses países como uma presença oficial das relações diplomáticas e comerciais da Rússia. Então, ele treina, apoia, vende armas e munições para as forças armadas do Níger”, explica o professor.

A insatisfação popular com a relação imperialista da França no Burkina Faso, no Mali e no Níger facilita a presença de países como a China na região. O país asiático tem aproveitado essa oportunidade de aproximação com o continente, oferecendo assistência e equipamentos militares para países como Chade e Nigéria, que também enfrentam insurgências.
Resistência e Cooperação
O novo relatório do Índice de Terrorismo Global (GTI, na sigla em inglês) de 2024, aponta a região do Sahel como o novo “epicentro do terrorismo global” ao concentrar “51% das mortes relacionadas ao terror em todo o mundo”. Isso equivale a 3.885 de um total de 7.555 casos registrados.
Ainda para Alexandre dos Santos, a geografia e a economia da região são fatores que podem explicar esse título. Por ser uma área pobre e acarretada pela desertificação, esse cenário propicia a captação de jovens desiludidos para entrar nos grupos extremistas, o que gera mais violência na região.

Issau Agostinho, PhD em História das Relações Internacionais pela Universidade La Sapienza de Roma, na Itália, e pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (UP), explica que as economias desses países são semelhantes, baseadas principalmente na prestação de serviços. Embora contenha recursos naturais usados para a tecnologia – como o urânio no Níger – a região não dispõe de recursos tecnológicos que sustentam sua economia.
Esse cenário favoreceu a criação da SAARC (sigla em inglês para Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional), uma aliança voltada à cooperação entre países do continente africano e do Oriente Médio. Seu principal objetivo, segundo Agostinho, é impulsionar o desenvolvimento econômico dessas regiões, hoje marcadas pela presença de regimes autoritários e pela atuação de grupos terroristas.
Nos últimos anos, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) também tem promovido sanções entre seus 15 países membros com o objetivo de desencorajar os regimes militares e os golpes de Estado, e contribuir para o progresso e o desenvolvimento econômico do continente africano. “A CEDEAO é uma espécie de pacto para a defesa de uma aliança política e militar entre esses países. Ou seja, é uma economia frágil, normal, mas que está, nessas novas condições, tentando dar passos significativos em nome da economia regional e do seu futuro”, diz Issau.
Os militares do Níger se opuseram à ajuda ocidental proposta na CEDEAO. Os chefes de estado do Mali e de Burkina Faso declararam apoio e prometeram defender o país contra qualquer tentativa de intervenção. Diante desse cenário, os três países criaram a Aliança dos Estados do Sahel (AES, na sigla em inglês) para estabelecer assistência mútua entre os países. Além de cooperações oficiais diplomáticas, a população também tem sido mobilizada e treinada militarmente para se defender dos grupos rebeldes e contribuir com as forças armadas para melhorar a segurança do país.

A luta contra a desertificação
Com o avanço da desertificação e o aumento das temperaturas, as mudanças climáticas na região do Sahel têm alterado as atividades cotidianas da população. As mudanças atingem a agricultura, que é uma das principais atividades que sustentam sua economia, além de afetar no aumento da fome, da sede e da extrema pobreza na região.
Localizado entre o deserto do Saara e a savana, o Sahel ocupa uma região geográfica estratégica que, muitas vezes, pode compor um cenário perfeito para conflitos geopolíticos. José Maria Chilaule Langa, doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), explica que o conhecimento da geografia local é um fator estratégico utilizado nos conflitos.
Os grupos jihadistas e suas ramificações estão presentes, em sua maioria, nas extremidades e fronteiras dos países que estão localizados. Esse domínio da região faz com que os conflitos cresçam consideravelmente, como é o caso no Burkina Faso e no Mali.
“Ter o conhecimento da geografia, lhe permite, em algum momento, ou fazer guerra ou defender-se da guerra”.
José Maria Chilaule Langa

O conhecimento sobre a geografia do deserto do Saara pelos rebeldes facilitam na captação de jovens para participar dos conflitos [imagem: Reprodução/Fickr]
Atualmente, medidas têm sido tomadas a fim de minimizar os impactos ambientais e a desertificação no Sahel. Esse é o caso da Muralha Verde, um projeto da União Africana – organização composta por todos os países do continente africano – que promove o plantio de árvores e o surgimento de empreendimentos e projetos ligados à ecologia. “Temos uma melhoria, por exemplo, na circulação de renda para as famílias que estão diretamente ligadas a esses projetos, como também a proposta de continuar a investir a partir da União Africana em um projeto estruturante maior comunicativo e de ação concreta”, afirma Chilaule.
Os impactos das mudanças climáticas não se resumem apenas aos aspectos econômicos. Segundo o doutor em geografia, é necessário redirecionar o debate climático, deslocando o foco do poder econômico para uma análise mais atenta dos efeitos negativos da questão sobre a vida cotidiana das populações que vivem em territórios mais vulneráveis. Esses impactos, inclusive, têm se tornado fatores determinantes para a perpetuação de conflitos no continente africano. “Em África estão os nove dos países mais pobres do mundo. Por isso, suas comunidades estão entre as mais afetadas pelas consequências das mudanças climáticas. É importante escutar o que elas vivem. É preciso mudar o paradigma desse debate”, afirma o geógrafo.