Já não é novidade que o futebol brasileiro não é o mesmo de antigamente. As participações em Copas do Mundo, o nível técnico das competições nacionais e a postura, não só nossa, mas também dos vizinhos sul-americanos no cenário mundial, deixa muito a desejar. A nova – e sem dúvida mais polêmica – mudança nos principais torneios do esporte mais popular do Brasil foi a do árbitro de vídeo. Implementado aos moldes europeus, esse recurso vem gerando muitas controvérsias. Nesse texto do Arquibancada, você verá como o uso do VAR na América Latina pode ser tão diferente daquele encontrado nas demais ligas do futebol mundial.
A implementação lá
O assistente de vídeo do árbitro (VAR, do inglês video assistant referee) foi criado com o objetivo de minimizar os erros de arbitragem ao longo de uma partida. Ideia semelhante foi base da decisão da Federação Internacional de Futebol (Fifa) de 2012, que aprovou o uso de bolas com chip para a validação de gols nos quais a redonda encontra-se em posição duvidosa.
Sugerido pela primeira vez em 2014, os primeiros testes do VAR só foram feitos em 2016. Durante aquele ano, a ferramenta foi experimentada em partidas da Major League Soccer (liga norte-americana de futebol), amistosos internacionais e no Mundial de Clubes da Fifa.
Seguindo o princípio de “interferência mínima e benefício máximo”, o uso do VAR está restrito a situações de infrações anteriores a um gol, decisões de pênalti, uso direto do cartão vermelho e dúvida em relação a identidade de um atleta punido. A autoridade do árbitro na partida ainda deve ser máxima. Na Alemanha, por exemplo, o juiz não marcou um pênalti interpretativo, mesmo revendo o lance no monitor, por convicções pessoais. Vale lembrar também que cabe ao árbitro, orientado pelos seus assistentes, decidir conferir ou não o lance no monitor de vídeo.
Ao longo de seu começo de caminhada, sua precisão foi evidente. O árbitro de vídeo contou com uma eficiência próxima a 100% nos 2.023 lances capitais que checou durante a temporada 2017-2018 na Itália, segundo dados do UOL. Os primeiros resultados renderam ao VAR uma participação na Copa do Mundo de 2018 – alterou a decisão do árbitro 17 vezes nas 64 partidas da competição.
As primeiras ligas de ponta a introduzirem a ferramenta foram a alemã e a italiana. O movimento de implementação nessas e em outras competições pareceu servir como pressão a outros países. O maior exemplo disso foi o caso da Inglaterra. Mesmo após uma série de testes controversos marcados por erros técnicos, o então presidente executivo da Premier League (liga inglesa de futebol), Richard Scudamore, admitiu ver a adoção do VAR como “inevitável”. Dito e feito. O uso do árbitro de vídeo na liga inglesa foi confirmado para a temporada 2019-2020.
A implementação aqui
Um pouco mais curta, porém, igualmente complexa. Assim pode ser definido o conturbado início de trajetória do árbitro de vídeo nas principais competições brasileiras e sul-americanas.
Tentando acompanhar as tendências do cenário mundial, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) propôs oficialmente o uso do VAR em 2017 – uma preparação já estava sendo feita desde 2016. A perspectiva de se assemelhar ao nível europeu fez com que a implementação do árbitro de vídeo no Brasil se mostrasse um tanto quanto impulsiva. Em entrevista ao Globo Esporte, o comentarista de arbitragem da Globo, Sandro Meira Ricci fez referência à preparação menos intensa dos árbitros no Brasil, que não contou com tantos testes offline.
À época, o Campeonato Brasileiro entrava em sua reta final. Em setembro de 2017, o Corinthians enfrentou o Vasco da Gama em sua Arena. No segundo tempo da partida, o atacante Jô, do clube paulista, fez um gol decisivo de mão na pequena área, mas a infração não foi notada pela comissão de arbitragem.
Em meio à pressão da torcida e imprensa, o então presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, optou por implementar o VAR no Campeonato Brasileiro “o quanto antes”. No fim das contas, pela falta de planejamento financeiro e logístico adequados, a decisão foi postergada para o ano seguinte.
Depois de alguns dirigentes dos 20 clubes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de 2018 terem vetado o árbitro de vídeo naquela competição pelos altos custos que eles teriam de arcar (R$50 mil por partida), a CBF decidiu implementá-lo somente nas quartas de final Copa do Brasil daquele ano.
Hoje, a situação parece ter encontrado um rumo melhor. O VAR é utilizado em fases decisivas de nove campeonatos estaduais ao redor do país. Em São Paulo, a escolha de implantação do recurso se relacionou ao escândalo de arbitragem na final do Paulistão de 2018, entre Corinthians e Palmeiras. No jogo de volta daquela ocasião, a comissão de arbitragem demorou quase dez minutos para decidir se houve ou não um pênalti para o alviverde. O ocorrido, sem dúvida, pressionou membros da Federação Paulista de Futebol, organizadora do torneio, a repensar o uso do VAR.
Pouco discutida atualmente, a questão da profissionalização de árbitros nacionais é mais um obstáculo para que a tecnologia seja instalada aqui da melhor maneira. No Brasil, não é raro encontrar um juiz que também atue em outras funções – indo desde militar até banqueiro. Com isso, o tempo que um árbitro tem para se dedicar a entender e treinar melhor as novidades trazidas pelo seu auxiliar em vídeo é muito menor se comparado ao do europeu.
Outra entidade que apoiou o uso dessa ferramenta foi a Confederação Sul-Americana de Futebol, a Conmebol. Depois de seu sucesso na Copa do Mundo de 2018, o VAR encontrou seu novo destino: a Copa Libertadores da América daquele mesmo ano. O árbitro de vídeo, porém, só daria as caras a partir das quartas de final da competição. No ano anterior, a tecnologia só estava sendo usada durante as semifinais e finais do torneio continental.
As diferentes faces do VAR
Dentre os vários casos de implementação, o recurso do árbitro de vídeo sempre priorizou a redução dos erros. A autoridade da comissão de arbitragem, organização e rapidez, em teoria, devem ser sempre antepostos. Porém, como as realidades dos países em que o VAR foi implantado são, muitas vezes, diferentes, seu uso está sujeito a substanciais distorções.
Para início de conversa, o custo de instalação do recurso no Brasil é superior àquele encontrado na renomada liga italiana, por exemplo. Um dos motivos para essa diferença é o fato de que há uma cabine para o VAR em cada estádio brasileiro, por conta das dimensões continentais do nosso país. Já em alguns casos europeus, há uma única central de comando para o recurso.
No Brasil, uma das principais indignações que o VAR já estimulou em torcedores e jornalistas esportivos relaciona-se à demora do mediador da partida em tomar uma decisão com o auxílio da tecnologia. Para efeito de comparação, o uso do VAR em uma partida da Liga dos Campeões da Europa 2018-2019 não tomou mais do que um minuto, e na última Copa do Mundo, a média foi de 38 segundos.
Do outro lado, em um jogo do Paulistão de 2019, houve um lance interpretativo de pênalti nos minutos finais. A partida chegou a 5 minutos de paralisação e, no final das contas, o juiz nem sequer conferiu o lance no monitor. A disputa era entre São Paulo e Corinthians no jogo de ida da final daquela competição. O momento final foi tão embaraçoso que os cantos de incentivo da torcida tricolor no Morumbi deram lugar a gritos de “vergonha”.
Vale lembrar, porém, que a pressão não vem somente das arquibancadas. Em um dos últimos “Fla-Flus” (clássico carioca disputado entre Flamengo e Fluminense) os holofotes se voltaram para o então técnico do rubro-negro, Abel Braga. Na ocasião, o treinador foi criticado pela intimidação ao árbitro enquanto esse verificava um lance pelo vídeo, fazendo com que a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj) optasse por mudar o local do monitor do VAR.
Em outra ocasião – no Campeonato Gaúcho de 2019 – passados quase dez minutos de paralisação para a marcação de um pênalti a favor do tricolor no duelo entre Grêmio e Internacional , o jogador D’Alessandro e o técnico Odair Hellman, ambos do colorado, foram expulso por reclamação.
Em entrevista ao Arquibancada, o comentarista de arbitragem da Globo, Sálvio Spínola, afirmou que o problema comportamental presente dentro das quatro linhas ainda deve permanecer, pelo menos, até a oitava rodada de um campeonato de pontos corrido como é o Brasileirão. Situações parecidas aconteceram no início do VAR nas ligas europeias. A adaptação à nova tecnologia não acontece somente entre os árbitros, mas também entre os próprios atletas.
Assim, a insatisfação também aparece em quem está dentro das quatro linhas. Na final do Campeonato Mineiro de 2019, entre Atlético-MG e Cruzeiro, mesmo ganhando o título, o meia da Raposa, Robinho, criticou o uso do VAR: “Eu sou contra. Eu acho que está atrapalhando muito, segurando muito. Sete minutos de acréscimo porque o VAR toda hora para, não é mais o juiz que apita”. Na mesma decisão, o recurso em vídeo foi usado dez vezes, porém, o mediador só foi verificar o monitor, de fato, em uma ocasião.
Em ligas europeias, é raro vermos jogadores e treinadores criticando o recurso. Muitas vezes, o contrário acontece. Depois de ter um gol de seu time anulado pelo VAR nos minutos finais, o técnico do Manchester City, Pep Guardiola, ratificou seu apoio à ferramenta, ressaltando a proposta de tornar o jogo menos injusto.
Os casos curiosos de utilização
As boas intenções do árbitro de vídeo já viraram consenso. Porém, além de problemas como a demora, há outro fator chave que deve permear a discussão: o que fazer com a emoção incontrolável que um gol traz depois que ele foi anulado pela ferramenta?
Para ilustrar esse cenário, convém lembrar o jogo de volta das quartas de final da última Liga dos Campeões da Europa entre Manchester City e Tottenham Hotspur. O jogo estava empatado no placar agregado em 4 a 4. Bastava um gol dos cityzens para que o time de Pep Guardiola se classificasse. Aos 47 minutos do segundo tempo, Sterling consegue o feito – para a explosão de felicidade dos jogadores e torcedores do City. Porém, segundos depois, o árbitro faz o sinal do VAR de anulação por impedimento, deixando um sentimento de vazio no coração de todos aqueles que comemoraram o balançar das redes.
Contudo, mesmo com o VAR, ainda existem erros. Na Libertadores de 2018, o Cruzeiro enfrentaria o Boca Juniors nas quartas de final da competição. No segundo tempo, o zagueiro Dedé, do time mineiro, ao tentar cabecear a bola, acertou involuntariamente o rosto do goleiro do clube argentino. O brasileiro acabou sendo expulso depois de o juiz da partida rever o lance. A decisão foi tão equivocada que a própria Conmebol anulou a suspensão do atleta do Cruzeiro, gerada pelo cartão vermelho.
Perspectivas para VAR no Brasil
Em fevereiro de 2019, a CBF promoveu uma nova votação para decidir sobre o uso do árbitro de vídeo no Campeonato Brasileiro. Os 20 clubes que disputam a primeira divisão deste ano foram unânimes na decisão de utilizar a ferramenta ao longo das 38 rodadas, resultando no maior uso da tecnologia em uma única competição. Além dos gastos – agora divididos entre times e CBF – ainda é possível destacar os últimos obstáculos que o VAR enfrenta no Brasil.
Nos 39 jogos dos estaduais que contaram com o uso do VAR, a tecnologia mudou a decisão do campo em 19 dessas partidas, ou seja, quase 49%. Assim, comprova-se que a presença desse recurso, de fato, pode mudar a trajetória de um time em uma competição.
Apesar da eficiência, o uso do árbitro de vídeo ainda está sujeito ao nível técnico da arbitragem do Brasil e de outros países sul-americanos. Caso seja utilizado – a decisão ainda está nas mãos do juiz da partida – erros ainda podem acontecer, como mostramos no caso ocorrido no duelo entre Boca Juniors e Cruzeiro.
Questões como essa se tornaram mais uma especificidade do futebol brasileiro. Isso porque ainda não tivemos contato com a padronização desse recurso – isto é, ter um campeonato inteiro como o auxílio do VAR. Nos estaduais, por exemplo, diferente do Brasileirão – comandado somente pela CBF – o uso dessa tecnologia ficou sujeito aos diferentes investimentos das federações regionais. “Não tem no futebol brasileiro árbitros preparados e capacitados com a tecnologia do árbitro de vídeo, até pelo problema de apitar um jogo com VAR e apitar um jogo sem VAR na semana seguinte” comentou Sálvio.
Para aprimorar o recurso no Brasil, o responsável pela comissão de arbitragem da CBF, o ex-árbitro Leonardo Gaciba, tem um projeto de criar um árbitro especializado na parte de vídeo.
Por fim, mesmo com a implementação do VAR, as decisões do juiz sobre uma partida de futebol ainda estarão sujeitas ao fator interpretativo. A clássica situação de “mão na bola ou bola na mão” é um bom exemplo para lembrarmos que o árbitro de vídeo é uma máquina sujeita ao olhar e às convicções humanas. Ainda sim, é um recurso de extrema importância para tornar o esporte mais justo e transparente, apesar das diversas resistências que têm enfrentado – e ainda enfrentará – no espetacular mundo do futebol.