Por Luiza Queiroz (luly.agnol@gmail.com)
Foi pegando emprestadas as antigas colunas e esculturas do demolido teatro São José que Francisco de Castro construiu seu palacete em meio a outras 35 construções – posteriormente destinadas a arrendamento. Essa estranha aglomeração de moradias populares com palacetes foi chamada por seu construtor de Vila Itororó. Talvez nem os próprios moradores soubessem, mas Itororó, em tupi, significa “água barulhenta”. Hoje em dia, em meio aos sons urbanos, seria injusto culpar a água dos rios canalizados pelo barulho. É justamente próximo ao que antes fora um curso d’àgua, porém, que se encontra o galpão de obras da Vila Itororó, com a própria vila ao fundo – ou o que restou dela. A fachada branca e sóbria do galpão ergue-se destoante em meio ao caos moderno da Bela Vista, disputando um espaço cada vez mais tomado por conglomerados alimentícios (leia-se unidades do Mc Donald’s e do Pão de Açúcar), por construções inacabadas e por outros estabelecimentos comerciais mais modestos.
Dentro do galpão, existe um pouco mais de cor, porém a simplicidade ainda espanta. Como resultado de ser um canteiro de obras, existe muita madeira não pintada, muitas vigas à mostra. Isso não impede, porém, que a madeira usada para reconstruir a vila seja aproveitada também para fazer mesas, cadeiras e até um balanço, improvisado a partir de um caixote, no qual um garotinho se balançava. O objetivo desse estilo inacabado do galpão é justamente mostrar o processo de restauro em tempo real do patrimônio tombado que é a Vila Itororó.
Chegando até os fundos do galpão, enxerga-se a Vila. Para descer até lá e andar em meio às construções, é necessário colocar um capacete, assinar um termo, e aguardar o funcionário que explicará a história da Vila. Naquela tarde, o único grupo para a visita era formado por cinco pessoas, incluindo o garotinho do balanço e seus pais. A sexta pessoa era Ana*, pesquisadora da história do local, que nos guiava e contava o que deixara o imóvel em tal estado de abandono. Inaugurada em 1922, Itororó foi habitada até 2013, quando os moradores foram expulsos com a finalidade de transformar o espaço em centro cultural. A vila foi tombada em 2005, e o governo estadual comprou-a em 2009. Desde a notícia de que teriam de sair dali, em 2006, até 2011 – quando a expulsão iniciou-se – os moradores passaram a realizar atividades como o grafite, peças teatrais, festas e exibição de filmes, na tentativa de provar que também são parte integrante da cultura do lugar.
A grande pergunta, diz Ana, é por que essas pessoas foram expulsas. A resposta, segundo ela, é que esse foi o resultado de um projeto, engavetado desde a década de 70, que visava transformar o local em centro cultural, mas para o qual moradia e cultura seriam conceitos conflitantes e não poderiam existir em conjunto. Hoje, os grafites e marcas deixados pelos moradores ainda contestam essa visão. Sem ninguém mais habitando as antigas casas, o cenário parece quase apocalíptico. A mãe do garotinho que se balançava no caixote comenta que o lugar se parece com a imagem de uma cidade após um bombardeio. Concordo, e assinto com a cabeça.
Mais polêmico do que parece
A Vila Itororó exemplifica como o tombamento, aliado a uma visão elitista a respeito do que é cultura e do que é moradia, pode levar à gentrificação (processo urbano de expulsão de uma população de baixa renda para que o espaço antes ocupado seja utilizado pela classe dominante).
O tombamento, entretanto, é um instrumento de preservação da história e cultura de uma determinada sociedade, e não deveria, portanto, rechaçar nenhum segmento social. É o que explica Jorge Rubies, presidente da Associação Preserva São Paulo: “Todos os países civilizados desenvolvidos têm esse instrumento para preservar aquilo que é importante para uma sociedade. É importante para a identidade nacional, é importante para o turismo, é importante para a economia, até para o meio ambiente é importante – já que a construção civil é uma das atividades que mais impactam no meio ambiente. Pouca gente sabe, mas a maior parte do entulho e dos resíduos sólidos que são gerados em São Paulo é produto das construções e demolições.”
Rubies explica também que o tombamento e a rentabilidade de uma propriedade não deveriam ser conceitos antagônicos: “O proprietário continua sendo dono do imóvel tombado, e ele pode usá-lo da forma como ele quiser. Se ele quiser fazer uma loja, uma residência, um restaurante, é possível isso, desde que respeitando as características do imóvel”, afirma Jorge. A diferença seria que, para fazer esse tipo de alteração ou reforma, seria necessário uma autorização dos órgãos de preservação do patrimônio histórico. No caso da cidade de São Paulo, o órgão municipal responsável por conceder tais autorizações seria o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (CONPRESP). A nível estadual, o tombamento é realizado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Estado), e a nível federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
As razões para o descaso
No início do ano de 2009, o jornal Estado de S. Paulo concluiu que 40% dos 1.813 imóveis da cidade de São Paulo até então tombados, ou em processo de tombamento, estavam “abandonados, destruídos ou desfigurados”. Ainda segundo o levantamento, uma parte significativa desses imóveis abandonados (mais de 400) encontrava-se na região central.
Entretanto, é questionável até que ponto o tombamento foi o responsável por esse estado de abandono. Na edição de número 51 da revista Urbs, realizada pela Associação Viva o Centro, algumas causas para o abandono são elencadas: além da desvalorização, outros motivos seriam pendências jurídicas, pagamentos de impostos atrasados e os custos de reformas.
Em teoria, o tombamento não deveria influenciar no valor da construção, ou no retorno econômico que o proprietário pode obter, já que ainda é possível utilizar economicamente o patrimônio tombado mediante autorização. Entretanto, o que geralmente acontece é a desvalorização do imóvel após o tombamento – afinal, em caso de venda, o novo dono não poderá modificá-lo demais e necessitará de autorizações para fazer eventuais reformas (as quais costumam ser caras).
Como forma de compensar essa desvalorização e estimular a preservação, a cidade de São Paulo oferece incentivos fiscais aos proprietários de bens tombados em restauro. Esses benefícios municipais estão previstos na Lei Municipal de Incentivo à Cultura (ou Lei Mendoça), estabelecendo isenção parcial de IPTU e do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) para imóveis tombados em processo de restauração pelo proprietário. Além destas, é possível utilizar-se da lei estadual LINC (Lei de Incentivo à Cultura da Secretaria de Estado da Cultura) e da Lei Rouanet, a nível federal.
Contudo, ainda argumenta-se que esses incentivos seriam insuficientes quando comparados aos custos de obras e à queda no valor da propriedade. Assim, foi criado em 2005 o projeto de lei 5460/2005, que estipula a possibilidade do dono de um imóvel tombado que sofra desvalorização receber uma indenização. Uma das críticas a esse projeto, porém, é que alguns proprietários, mesmo com o imóvel desvalorizado, teriam plenas condições de se manter sem ajuda vinda dos cofres públicos – é o caso do Casarão Franco de Mello, cujos herdeiros condenaram o governo estadual a pagar uma indenização de 110 milhões de reais, alegando que seu imóvel sofreu desvalorização após ser tombado. O estado planeja transformar o local em um Museu da Diversidade Sexual, porém até o valor da indenização ser quitado, o herdeiro Renato Franco de Mello continua morando no local.
Outra questão muito discutida em São Paulo é se haveria ou não um excesso de imóveis tombados. A Revista Urbs cita o arquiteto Haron Cohen, que afirma que os órgãos responsáveis pelo tombamento (o Conpresp, o Condephaat e o Iphan) estão “confundindo coisa velha com coisa antiga. Muitos dos prédios que estão por aí não mereciam ser tombados”. Jorge Rubies diverge dessa opinião: “Tem muita coisa que merecia ser preservada no centro expandido, ou na periferia de São Paulo”. É uma colocação interessante, tendo em vista que a maioria das construções tombadas encontra-se em bairros nobres, na região da Avenida Paulista e do centro antigo. Levar o tombamento até a periferia poderia ser uma forma de valorizar e democratizar um pouco mais o espaço urbano.
A resposta para a discussão pode girar em torno do questionamento levantado pela pesquisadora da Vila Itororó, Ana: o que é patrimônio? A recusa da sociedade em abarcar esse debate, aparentemente trivial, talvez seja uma das causas que levaram à expulsão das mais de 80 famílias que habitavam a Vila. “A modernização vai produzindo a cidade, e a cidade é construída e demolida o tempo inteiro, então é um espaço meio amnésico. E aí você tem esses lugares que são eleitos como memoráveis. E como é que a modernidade e o processo de urbanização capitalista dá conta desses espaços? Talvez seja atribuindo a eles uma função cultural, porque afinal, como torná-los rentáveis sem necessariamente transformá-los em outra coisa?” Tentar encontrar essas respostas mostra-se cada vez mais imprescindível; afinal, os conglomerados alimentícios e as construções inacabadas perto da Vila não parecem dispostos a esperar muito tempo antes de se propagarem em novos – ou antigos – lugares de São Paulo.
*Nome fictício