A quarta edição da FLIPOP (festival de literatura pop) dessa vez acontece sem filas e sem ingressos: o evento é online. Em razão da pandemia da Covid-19, a Editora Seguinte (selo jovem da Companhia das Letras) optou por promover o festival ao vivo no YouTube, de forma gratuita.
A programação consiste em 16 bate-papos, com autores nacionais e estrangeiros, distribuída ao longo de quatro dias, entre 9 e 12 de julho. Confira o que rolou nos dois primeiros dias da FLIPOP:
Dia 09/07, quinta-feira
Por Wálace de Jesus
“Criatividade em tempos de crise”, com Giulia Paim, Otávio Júnior e Vitor Martins
O evento foi inaugurado com uma mesa sobre criatividade em momentos de crise, mediada por Felipe Castilho, autor de Serpentário (2019) e com participação de Giulia Paim, Otávio Júnior e Vitor Martins, escritores de literatura pop da contemporaneidade.
Felipe inicia o bate-papo e fala sobre como a pandemia e o isolamento social têm afetado a produtividade da produção textual e criativa. Autor de Um milhão de finais felizes (2018), Vitor Martins fala sobre como o período afetou sua escrita, que geralmente era mais criativa antes da pandemia. Assim como Vitor, a autora de Boston Boys (2014), Giulia Paim, também aborda a questão da cobrança do mundo externo: “O nosso processo criativo não é uma máquina”, diz ao relatar sua experiência durante a quarentena em relação à supervalorização da produtividade.
Autor de Da Minha Janela (2019), Otávio Júnior explica como a pandemia tem sido turbulenta para ele. O autor também reforça a questão acerca de ambientes calmos para uma produção criativa, e fala sobre o interesse em abordar, em obras futuras, os impactos da pandemia nas favelas e periferias ao seu redor.
Em um apanhado geral, eles discutem as dificuldades e burocracias do mercado editorial, assim como o preconceito que enfrentam mesmo durante a pandemia. “Somos além de autores, somos além de escritores”, destaca Otávio, “somos a representatividade e pluralidade dentro desse mercado”, complementa Vitor.
A discussão encerra apontando que os escritores e escritoras também estão na linha de frente da classe artística. “Agradeço por todos estarem produzindo e resistindo diante desse novo cenário global”, diz Giulia. Para finalizar, o mediador, Felipe, ressalta as novas percepções que surgem: “Somos escritores, somos imensos e não podemos ser confinados”.
“Mediação de leitura dentro e fora da escola”, com João Luís Ceccantini, Patrícia Kanno e Tiago Valente
Mediada pela jornalista Tatiany Leite, a segunda mesa teve participações do professor de literatura João Luís Ceccantini, da profissional de literatura infantil e fundadora de clubes de livros Patrícia Kanno e do escritor e tiktoker Tiago Valente. O debate é guiado pelos desafios, semelhanças e diferenças da mediação nas diferentes plataformas e formatos.
Eles discutem temas acerca da mediação: ato de mediar um grupo de pessoas, especificamente sobre leituras e interpretações. Ceccantini fala sobre a mediação como o seu “ganha-pão” e explica como é triste olhar para uma sociedade que só busca a literatura canônica. Ele também fala sobre a importância da subjetividade de cada mediador: “Cada um busca uma forma de mediar, independente do ambiente social”.
O debate é pertinente e revela assuntos atuais: Ceccantini, por exemplo, fala que “não são só os clássicos que formam o leitor”. Em outro momento Patrícia observa que “o verbo ler não aceita o imperativo”. Já Tiago desmistifica a literatura e diz que ela também é diversão.
O ponto crucial da mesa é a abordagem que os professores devem ter dentro das salas de aula: adotar uma mediação horizontal e aberta a todos, sem modelos prontos de interpretações de textos. A conversa termina ressaltando que uma mediação de leitura objetiva a pluralidade de escritores, leitores e interpretações.
“Uma linguagem para todes”, com Hailey Kaas, Koda Gabriel e Pri Bertucci
Nesta mesa, o jornalista e escritor Naná DeLuca está muito bem acompanhado: estavam presentes a escritora e transfeminista Hailey Kaas, a pessoa escritora Koda Gabriel e o CEO da Diversity Box, Pri Bertucci. “Todas as vozes devem ter espaço na literatura. Mas o que fazer quando a própria linguagem que usamos é excludente?”, questionava a descrição da FLIPOP sobre a mesa.
Em um papo sobre linguagem neutra, Bertucci explica sua visão a respeito da inclusão dessa nova linguagem e defende que deve começar nos meios de comunicação, por exemplo: “As redações de jornais são onde mais encontramos resistência em adotar essa nova linguagem”. Na mesma linha de raciocínio, Hailey fala sobre a linguagem neutra inclusiva como um projeto político, além de abordar o fato da carência de investimentos educacionais, que inviabilizam sua introdução. Sobre isso, Koda complementa: “Romper com o binarismo é o principal para uma linguagem mais inclusiva”. Hailey ainda lembra que não se trata de imposição, mas de uma alternativa à linguagem considerada “normal”.
Com uma abordagem fantástica, todes falam sobre a inclusão e visibilidade dessa nova linguagem neutra e sua importância representativa. Finalizando a mesa, a reflexão é a de que estamos em um espaço conjunto e todes têm de conhecer mais sobre o assunto.
Bate-papo com Casey McQuiston
Com direito a participação internacional, a escritora Clara Alves conversa com a autora do livro Vermelho Branco e Sangue Azul (2019), Casey McQuiston. Clara pergunta sobre o processo criativo, sobre como tem sido a reação dela com o público do livro, que está cada vez maior, e sobre como a pandemia está afetando a rotina dela. Casey traz muita simpatia e sabedoria para o debate.
Dia 10/07, sexta-feira
Por Juliana Alves
O segundo dia da FLIPOP Online 2020 pode ser definido em uma palavra: aprendizagem. As quatro mesas foram verdadeiras aulas, as quais geraram vários momentos de reflexão e, com descontração, agregaram conhecimento ao público:
“(In)Visibilidade Brasileira”, com Julie Dorrico, Leo Hwan e Sérgio Motta
A primeira mesa foi mediada por Mayra Sigwalt, escritora e produtora de conteúdo, e composta também por três convidados, que destacaram em um bate-papo muito interessante a maneira como a literatura retrata narrativas com quase nenhuma diversidade. Sérgio Motta, escritor e administrador do projeto Resistência Afroliterária, abordou a falta de reconhecimento negro em espaços culturais, as temáticas de alguns de seus contos e a função deles “para humanizar as vivências negras”.
Leo Hwan, cineasta e criador de conteúdo, fala da falta de pluralidade e requere: “Nós, amarelos, queremos representatividade na mídia”. Julie Dorrico, escritora e pesquisadora de literatura indígena, faz uma análise fascinante de como os indígenas são representados como povos dominados em clássicos, como nas obras de José de Alencar, e reflete sobre como a cultura indígena está sendo silenciada nos meios de ensino. Ela finaliza com a provocação aos educadores: “Que memória estamos construindo para o futuro?”
“Saberes e resistências compartilhados”, com Elizandra Souza, Mateus Santana e Winnie Bueno
Na segunda mesa foram apresentados, de maneira leve e didática, assuntos como a função da leitura, seu fator crucial de transformação e a disparidade do acesso à literatura no Brasil A mediação foi de Andreza Delgado, produtora de conteúdo e colunista da Uol.
Mateus Santana, escritor e idealizador da Bienal da Quebrada, faz uma reflexão notável sobre a desigualdade no ensino do país e destaca a falta de bibliotecas na rede pública. Ainda comenta as poucas condições econômicas da população periférica para ter acesso à literatura e o poder do livro como essencial agente transformador social: “O livro é um item de necessidade básica”.
Winnie Bueno, bacharel em direito e criadora da Winnieteca, aponta a importância das redes sociais para a promoção da literatura. Depois, comenta sobre as falácias de que a população negra não quer ler e aponta que a solução para combater essas histórias falsas é o conhecimento. Elizandra Souza, escritora e jornalista, acrescenta que o racismo cria fake news e que o livro serve para desconstruir essas falácias. Em seguida, sobre os escritores negros, diz: “Temos tradição literária, mas não temos visibilidade”. Elizandra ainda faz uma análise da rotulação “escritor negro(a)” e não apenas “escritor”, pois ainda não há visibilidade e normalização de escritores negros.
“Terrores e distopias”, com Alec Silva, Natalia Borges Polesso e Raphael Montes
A terceira mesa foi mediada por Beatriz D’Oliveira, e composta pelos escritores Raphael Montes, Natalia Borges Polesso e Alec Silva. Porém, este participou apenas no início devido à falha de conexão de internet. Em um bate-papo bem divertido, os dois escritores comparam a ficção e a realidade. Raphael discorre sobre como a ficção ajuda a pensar os medos da sociedade e a forma como os leitores conectam elementos do cotidiano com as histórias. Ele completa: “A ficção permeia o seu filtro de olhar para o mundo”.
Raphael fala também sobre o processo criativo: “Muitos escritores tratam o que detestam, eu falo sobre meus medos e angústias. Os autores colocam muito de si nos livros”. Natalia inclui também seus medos, mas afirma que quando o autor escreve mantém o controle mental. No final da conversa, Natalia comenta a dificuldade de ser escritor no Brasil e viver de literatura. Além disso, explica maneiras de ampliar o gênero terror no Brasil, como clube de livros e políticas públicas no ensino.
Bate-papo com Ibi Zoboi
A última mesa foi uma conversa animada entre a cientista social Isa Souza e a autora de Orgulho (2019), Ibi Zoboi. O livro é uma releitura contemporânea de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Na obra de Ibi, nenhum dos personagens é branco, e a escritora carrega a história com várias referências da cultura africana e latina. Ibi analisa a relação de Zuri e Darius (inspirados em Elizabeth e Darcy), na qual o aspecto de diferentes classes sociais gera conflitos entre os personagens. A escritora também faz paralelos entre as protagonistas, Zuri e Elizabeth, as duas são críticas e com traços feministas. Destaca-se também o final: para Elizabeth o sucesso foi alcançado pelo casamento e, para Zuri, foi pela educação.
Todas as mesas da FLIPOP podem ser assistidas no canal da Editora Seguinte no Youtube.