Não é preciso ser um grande fã de comédias românticas teen ou telespectador assíduo da Netflix para perceber o notável crescimento das produções originais do gênero no catálogo do serviço de streaming. No último ano, Todos Os Garotos Que Já Amei (To All The Boys I’ve Loved Before, 2018) foi um dos filmes mais assistidos na plataforma. No mesmo ano, a empresa anunciou que mais de 80 milhões de assinantes deram play em rom-coms (termo usado para se referir a comédias românticas, em inglês) como Sierra Burgess é uma Loser (Sierra Burgess is a Loser, 2018) durante o verão norte-americano. De olho nos algoritmos que mostram a força dos filmes do gênero, a empresa logo encomendou mais uma fornada de produções do tipo ー como Dumplin’ (2018) e O Date Perfeito (The Perfect Date, 2019).
Em comum, as novas comédias românticas originais do Netflix parecem seguir uma receita de roteiro para agradar seu público jovem, em sua maioria formado por millennials e geração Z ansiosíssimos por representatividade nas telas. Nada de exaltar protagonistas populares, ricos e de perfeição inalcançável para os demais mortais ー tal qual fizeram antes clássicos teen dos anos 90 como As Patricinhas de Beverly Hills (Clueless, 1995). Aqui, os holofotes são dos excluídos, os impopulares, as minorias como asiáticos, meninas fora do padrão estético, negros, LGBTQI+ e personagens com dificuldades financeiras. Junte a esses personagens relacionáveis pela audiência um roteiro no qual eles têm, contra todas as probabilidades de uma sociedade machista, racista e gordofóbica, seu final feliz e bum! temos um filme teen da plataforma.

Sierra Burgess (Shannon Purser), a menina loser protagonista do filme homônimo da Netflix, têm seu final feliz com seu crush. A asiática Lara Jean (Lana Condor) de Todos os Garotos Que Já Amei, também. E o menino sem dinheiro para a faculdade que dirige um carro velho em O Date Perfeito? Ora, também (e não é com a mocinha linda e popular, aqui uma mera coadjuvante, vejam só). Sobem os créditos. Personagens, roteiros e finais felizes outrora impensáveis numa cultura acostumada a exaltar vencedores e heróis ー de perfeição tão irrealista quanto inalcançável ー hoje impulsionam a receita de cerca de US$ 4 bilhões alcançada pela Netflix em 2018. Toma essa, Cher Horowitz.

Mas se o serviço de streaming tem de fato algum mérito em trazer às telas de milhões de jovens representatividade identitária, o recurso de dar voz (e um final feliz) para os excluídos não é tanto uma novidade das novas gerações como pode parecer. Há 30 anos atrás, John Hughes, o icônico diretor, produtor e roteirista de filmes adolescentes dos anos 80 como Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985) e Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986) já tentava ー a duras penas e contra uma Hollywood fascinada pela glamourização do ideal de “vencedor” ー garantir o final feliz de seus esquisitos e adoráveis outsiders em duas de suas melhores e mais subestimadas produções: A Garota de Rosa Shocking (Pretty in Pink, 1986) e Alguém Muito Especial (Some Kind of Wonderful, 1987).
Ela já usava rosa (e não era às quartas)
A Garota de Rosa Shocking marcou a estréia de Hughes como produtor e a de Howard Deutch como diretor de filmes de grande porte. O roteiro também é de Hughes. A melhor parte do enredo, no entanto, não está no filme. Após uma exibição inicial para um público teste, o final do longa teve que ser modificado para agradar a audiência de então. Hughes idealizara um final feliz para o personagem de Jon Cryer, o esquisito e adorável Duckie, com a mocinha Andie (Molly Ringwald), mas o roteirista estava muito à frente do seu tempo e foi obrigado pelos testes do estúdio a modificar o final para que a personagem terminasse a história com o popular e rico Blane (Andrew McCarthy).

Ainda assim, A Garota de Rosa Shocking vale o play. O filme aborda com delicadeza abandono materno, depressão e diferenças sociais gritantes numa sociedade profundamente consumista e desigual. Talvez você também não consiga evitar revirar os olhos para a mocinha impressionável e o mocinho insosso, mas os personagens de Cryer e Annie Potts (na pele de Iona, a nada convencional mentora e amiga de Andie) garantem personalidade ao longa. Duckie, o melhor amigo de Andy, passeia pelo roteiro carregando suas singularidades com bastante altivez e, no fundo, não seria sobre isso quase todas as produções teen atuais? De bônus, a canção final If You Leave, do grupo britânico Orchestral Manoeuvres, é um hino pouco reconhecido que gruda na cabeça e deixa a prima famosa Don’t You Forget About Me, do também mais famoso Clube dos Cinco, no chinelo.

Em Hollywood, conta-se que o corte do final desejado fez com que Hughes brigasse com Deutch e, um tempo depois, mergulhasse no roteiro de um novo filme no qual poderia concretizar o final feliz inicialmente desejado para Duckie. Nascia Alguém Muito Especial, uma das melhores produções do cineasta, pouco conhecida no Brasil e último filme teen da carreira de Hughes.
Pra lá de especial
Em Alguém Muito Especial, o trio Andie, Duckie e Blaine dá a vez para Keith (Eric Stoltz), Watts (Mary Stuart Masterson) e Amanda (Lea Thompson) ー os sexos do triângulo amoroso teriam sido trocados propositalmente por Hughes para a nova estória. Com Watts, o papel da amiga pra lá de inconvencional do protagonista (e terceiro vértice do triângulo amoroso) ganha ainda mais personalidade e carisma do que tivera com Duckie em A Garota de Rosa Shocking. Watts é baterista, moleca, afiadíssima em suas opiniões sobre a galerinha popular, feminista e andrógina, num mundo que ainda nem sonhava em debater fluidez de gênero em produções comerciais da cultura pop para adolescentes.
O Date Perfeito, produção mais recente da Netflix, traz algumas similaridades com o longa. Seja nas dificuldades financeiras do protagonistas (trinta anos depois, parece que pagar a faculdade continua sendo um desafio muito atual para os protagonistas teen americanos, infelizmente); seja na cegueira seletiva do mocinho que por um longo tempo objetifica e valida sua crush por sua aparência em detrimento da amiga (inquestionavelmente mais interessante) que sempre esteve ao seu lado.
O longa também ganha pontos ao adicionar camadas de complexidade à personagem bonita e popular de Lea Thompson, um recurso que os roteiristas da Netflix também tem utilizado nos roteiros de produções atuais como Sierra Burgess é uma Loser, numa tentativa de humanizar essas personagens. Em uma das cenas, Amanda Jones (Thompson) chega a questionar diretamente o mocinho Keith sobre a natureza superficial de seu amor platônico por ela.
Apesar de pecar pela falta de representatividade identitária (sim, todos eram brancos e héteros e magros e zzzzz… Hughes era, afinal, também um homem de seu tempo) o final, dessa vez do jeitinho que Hughes queria, destoa positivamente das produções da época pela ousadia em dispensar (e questionar) o endeusamento ao núcleo dos populares numa época em que essa era a regra e trazer para os holofotes do final feliz alguém tão especial e singular quanto a personagem de Mary Stuart Masterson.

A contragosto de poderosos do estúdio e do público da época, John Hugues criou histórias capazes de fazer qualquer millennial vendo seus filmes em pleno 2019 assistir os créditos subirem com um sorrisinho de aprovação no rosto. Há 30 anos, foi considerado uma referência e um visionário das comédias românticas de high school. E quem poderia discordar?