A política migratória brasileira regida pela nova Lei da Migração assegura os direitos ratificados pela Constituição Federal de 1988 e revoga a legislação de 1980, o Estatuto do Estrangeiro
Por Camila Mazzotto (camila.mazzotto@usp.br)
Após anos de reivindicação dos migrantes e da sociedade civil organizada em torno da questão da mobilidade humana no Brasil, o Estatuto do Estrangeiro (lei 6815/1980), elaborado e promulgado durante o período de vigência da ditadura militar no país, foi revogado. A nova Lei da Migração (lei 13.445/2017) “dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante”. Dentre os princípios ratificados pela norma, encontram-se a não criminalização da migração, o repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, bem como a práticas de expulsão ou de deportação coletivas. O direito de reunião e associação para fins lícitos, e o amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita mediante verificação de insuficiência econômica também são assegurados à categoria. A lei 13.445/2017, sancionada no dia 23 de maio de 2017, tem um prazo de 180 dias para entrar em vigor no país, considerando-se a data da publicação no Diário Oficial da União (25/05).
O elo de compatibilidade teórica entre a nova Lei da Migração e a Constituição de 1988 é apontado pela coordenadora voluntária do grupo de relação com refugiados do Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado, Carla Mustafa. “A nova Lei também está de acordo com os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”, completa. Segundo Pétalla Brandão Timo, representante em Brasília da ONG internacional Conectas Direitos Humanos, a lei expressa uma grande mudança paradigmática quanto a noção do Estado em relação ao migrante, que passa a ser compreendido como um sujeito de direitos. “Não se trata apenas de uma mudança terminológica, o migrante não é mais visto como ameaça”, defende.
A apresentação do projeto que remete ao início da construção da lei 13.445/2017 se deu em 2013 pelo senador e atual ministro das Relações Exteriores do Brasil, Aloysio Nunes Ferreira. Depois de passar por modificações, interlocução civil e tramitações no espaço de discussão entre as duas casas do Congresso Nacional, o projeto foi aprovado pelo Senado em 18 de abril de 2017.
O cenário anterior à sanção da lei pelo atual presidente da República, Michel Temer, entretanto, foi notavelmente marcado pela pressão de diversas categorias em favor do veto parcial ou até mesmo integral do projeto. Em uma consulta pública on-line no site do Senado, de 9824 votos contabilizados, 7849 negaram o apoio à proposição. No dia 25 de abril, ato organizado via Facebook pelo grupo Direita São Paulo reuniu manifestantes em torno do prédio da Gazeta – localizado na Avenida Paulista – contra a aprovação da lei. Na descrição do evento na rede social, o grupo caracterizava o projeto como “aberração”. Declarações xenófobas que associaram o islamismo ao terrorismo marcaram o clamor de uma série de grupos reunidos no início do mês de maio pelo veto integral da lei, também na Avenida Paulista. Para Carla Mustafa, a estigmatização do imigrante como sujeito terrorista configura um crime de ódio que deve ser combatido. “Uma coisa é você ser contrário a nova Lei da Migração e expôr a sua opinião, outra coisa é você ofender, humilhar ou associar de forma pejorativa e simplista grupos sociais ou etnias a prática do terrorismo”, defende.
6 da série de vetos
Dentre os dispositivos vetados da Lei 13.445/2017 pela Casa Civil, encontra-se a caracterização do migrante como sendo a “pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida”. Para Pétalla Timo, a definição proposta pela lei promovia “uma noção bastante adequada à interpretação contemporânea que se faz das dinâmicas migratórias mundiais”. Segundo ela, a globalização intensifica a complexidade dos fluxos migratórios e a terminologia “migrante” torna-se mais ampla. “Em outras línguas, no próprio inglês, por exemplo, o termo utilizado é migrant, justamente porque você não tem mais só aquela lógica do imigrante e do emigrante, aquele que chega e aquele que sai”, destaca. As razões para o veto giraram em torno da constatação de que o dispositivo, ao estabelecer igualdade entre o estrangeiro residente no território nacional e o estrangeiro residente em país fronteiriço, viola a Constituição em seu artigo 5º, “que estabelece que aquela igualdade é limitada e tem como critério para sua efetividade a residência do estrangeiro no território nacional.”
O veto ao artigo que concedia autorização de residência aos imigrantes que ingressaram no território nacional até 6 de julho de 2016, independentemente de sua situação migratória prévia, foi defendido pelo Gabinete de Segurança Institucional e pela Casa Civil, sendo elencado como o pior dos vetos pela organização Conectas Direitos Humanos. Segundo Pétalla, a possibilidade de regularização daqueles que já se encontram em território nacional seria benéfica tanto para o governo quanto para o imigrante. Para esse último, a regularização documental viabilizaria o acesso aos serviços públicos e a uma vida digna assegurando, por exemplo, a não exploração no mercado laboral. Já para o Estado, significaria o acesso às informações pertinentes a esse grupo específico de imigrantes, a partir dos dados de registro no país. Conforme o presidente Michel Temer, o dispositivo “concede anistia indiscriminada a todos os imigrantes”. A medida conhecida como “anistia migratória” já foi adotada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo presidente Lula, em 1999 e em 2009, respectivamente. Para Carla Mustafa, o veto “contraria expressamente o princípio de promoção de entrada regular e de regularização documental, previsto pela nova Lei de Migração”.
O direito à livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas aos povos indígenas e às populações tradicionais também foi vetado. A alegada afronta do mecanismo em relação aos artigos da Constituição da República “que impõem a defesa do território nacional como elemento de soberania” justificou a rejeição. Para o coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo, Flávio Antas Corrêa, “o veto foi pela questão da identificação”. Segundo ele, a verificação da pertença de um indivíduo às comunidades indígenas encontraria-se prejudicada.
Durante discussão em plenário, o relator do texto no Senado, senador Tasso Jereissati, afirmou que o objetivo de tal artigo é “garantir que esse indígena autêntico não seja constrangido nem ameaçado por eventualmente ter transposto uma fronteira marcada pelo homem branco dentro de uma região que há séculos seus antepassados habitam” e destacou a “distância abissal” entre esse propósito e a hipótese de que “hordas de narcotraficantes, terroristas e guerrilheiros, travestidos de indígenas, possam se valer desse mero dispositivo para invadir o país”.
Conforme Pétalla Timo, o veto é contrafactual, visto que as fronteiras das terras tradicionalmente indígenas, em grande parte, são artificiais. “Se você pegar, por exemplo, os povos guarani que ficam essencialmente no Sul do Brasil, na fronteira Argentina-Brasil-Paraguai, esses povos circulam desde sempre; a tradição é milenar. Então, não é a presença ou não do dispositivo na Lei que vai modificar essa situação”, reitera. Segundo ela, a Lei previa um reconhecimento normativo de um trânsito orgânico e o veto “é o governo negando essa realidade”.
A Casa Civil manifestou-se, ademais, pelo veto aos textos que possibilitavam a extensão da concessão de visto ou de autorização de residência por motivo de reunião familiar “a outras hipóteses de parentesco, dependência afetiva e fatores de sociabilidade.” O art. 40. estabelecia as condições para a admissão excepcional de pessoa no País e o inciso vetado (IV), por sua vez, apresentava a seguinte condição: “seja criança ou adolescente que esteja acompanhado de responsável legal residente no País, desde que manifeste a intenção de requerer autorização de residência com base em reunião familiar”. De acordo com o presidente, “os dispositivos poderiam possibilitar a entrada de crianças sem visto, acompanhadas de representante por fatores de sociabilidade ou responsável legal residente”, contexto que poderia “facilitar ou permitir situações propícias ao sequestro internacional de menores”.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), dentre outros atores relevantes que trabalham com a mobilidade de crianças e adolescentes, entretanto, participaram da construção do texto e da adequação da Lei da Migração no que tange à proteção da criança e do adolescente migrantes. “A nossa interpretação desse dispositivo é diferente, na verdade era um instrumento específico e protetivo dessa população vulnerável, cumprindo inclusive alguns parâmetros internacionais que se têm sobre essa matéria”, reitera Timo. De acordo com ela, não há justificativa para o veto e a eventual margem de interpretação dúbia deveria integrar a discussão acerca do processo de regulamentação da lei.
O veto ao dispositivo que admitia ao imigrante o exercício de cargo, emprego e função pública, com exceção àqueles reservados para brasileiro nato nos termos da Constituição Federal, por sua vez, remete, conforme Pétalla, a uma visão bastante restritiva das possibilidades de integração e enriquecimento das dinâmicas econômico-culturais do migrante no país. “Pensando na questão do organismo público que vai lidar com o tema do migrante no país, por que uma pessoa migrante estaria impedida de exercer essa função?”, argumenta. Segundo Temer, o dispositivo configura uma “afronta à Constituição e ao interesse nacional”.
O texto que estabelecia os componentes dos grupos vulneráveis, sendo estes os solicitantes de refúgio, os requerentes de visto humanitário, as vítimas de tráfico de pessoas e de trabalho escravo, os migrantes em cumprimento de pena ou que respondem criminalmente em liberdade e os menores desacompanhados, também foi vetado. De acordo com o presidente, “o dispositivo apresenta impropriedade”, pois admite como passível de benefícios no âmbito da política migratória nacional os indivíduos que respondam criminalmente em liberdade. As demais categorias referentes aos grupos vulneráveis, entretanto, não deixarão de ser contempladas pela Lei. “O que se retirou foi uma definição do que são esses grupos e essa definição pode vir posteriormente em regulamento. A referência aos grupos vulneráveis continua lá presente, inclusive para a possibilidade de isenção de taxas, entre outros”, destaca Timo.
Estatuto do Estrangeiro VS nova Lei da Migração
O Art. 2º do Estatuto do Estrangeiro determinava que “na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional”. Para Carla Mustafa, a preponderância do paradigma da segurança nacional no Estatuto do Estrangeiro correlaciona-se com o contexto histórico de sua elaboração, quando havia na América Latina um alinhamento político-ideológico contrário especialmente à imigração de grupos opositores ao governo. “Havia inclusive certa rede de comunicação entre os governos desses países, tanto para procurar supostos inimigos, como também para efetuar as deportações e extradições que foram comuns nessa época”, destaca. A Operação Condor é um exemplo das articulações travadas entre as Ditaduras do Cone Sul, na esfera da repressão política, durante as décadas de 1970 e 1980.

O Estatuto do Estrangeiro vedava a participação do imigrante na administração ou representação de sindicato ou associação profissional e o exercício de atividade de natureza política ou interferência nos negócios públicos do Brasil. Além disso, o Ministro da Justiça também podia impedir a realização de conferências, congressos e exibições artísticas ou folclóricas por ‘estrangeiros’, sempre que tal autoridade considerasse “conveniente aos interesses nacionais”. A nova Lei da Migração, por sua vez, concede ao migrante o direito de reunião para fins pacíficos e o direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos; trata-se da garantia do direito de pertencer a um corpo político. Conforme Carla Mustafa, o processo de integração do migrante não se cumpre apenas com a imposição de deveres. “Se o objetivo é de fato integrar o migrante, você tem que dar voz e direitos a ele, da mesma forma que deveres”, defende. A “promoção e a difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante” corresponde ao princípio XII que rege a política migratória brasileira a partir da nova Lei da Migração.
Quanto às condições para a expulsão do migrante, o Estatuto do Estrangeiro apresentava a noção de que a medida expulsória ou a sua revogação seria determinada por decreto. A Lei da Migração, em contraponto, determina que “caberá à autoridade competente resolver sobre a expulsão, a duração do impedimento de reingresso e a suspensão ou a revogação dos efeitos da expulsão”. A nova legislação, ademais, determina que “não se procederá à repatriação, à deportação ou à expulsão de nenhum indivíduo quando subsistirem razões para acreditar que a medida poderá colocar em risco sua vida ou integridade pessoal”.
A concepção da periculosidade como elemento vinculado ao migrante não foi, entretanto, inaugurada pelo Estatuto do Estrangeiro no país. A advogada Carla Mustafa destaca que, até 1930, alguns grupos dependiam da autorização prévia do Congresso para migrarem para o Brasil, com destaque para os imigrantes oriundos dos continentes africano e asiático. Além disso, em 1934 foi incluído na Constituição o regime de cotas migratórias, uma medida que acentuou o controle sobre a entrada e a distribuição de trabalhadores migrantes no país sob critérios eugenistas.
Domingos Quiteque, do município Maianga, localizado na capital da Angola, migrou para o Brasil em 2015 por incentivo dos professores brasileiros que lhe deram aula em Luanda, mas acredita que a idealização do brasileiro como acolhedor constitui uma criação midiática. Para ele, “o que a mídia tenta passar é que o Brasil é um país hospitaleiro, mas quando você chega aqui sendo negro, você vê que não é bem assim”. O angolano também reclama da burocracia referente aos processos de documentação no país. “Aqui pra tirar documento é muito complicado e a forma de tratamento para o imigrante negro é muito diferente da do imigrante branco e europeu”, denuncia.
Enquanto se encontra fora da ordem jurídica e política nacional, o imigrante, segundo o sociólogo Pierre Bourdieu – em prefácio à obra “A Imigração ou o Paradoxo da Alteridade”, de Abdelmalek Sayad – , constituiria uma “ameaça”, na medida em que “põe em “risco” a ordem nacional (…) forçando-a a revelar seu caráter arbitrário, a desmascarar seus pressupostos; forçando-a a revelar a verdade de sua instituição e a expor suas regras de funcionamento”.
A acolhida humanitária como princípio da política migratória brasileira
Com a nova Lei da Migração, a acolhida humanitária passa a constituir um princípio da política migratória brasileira. Em 2012, face ao terremoto ocorrido no Haiti em 12 de janeiro de 2010, o Ministério da Justiça e o Ministério de Relações Exteriores criaram o “visto humanitário”, destinado aos haitianos que tentavam se refugiar no Brasil. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), em 2013, ademais, garantiu a concessão de visto especial às pessoas afetadas pelos conflitos armados na Síria, estendendo o dispositivo às suas respectivas famílias. Contudo, a coordenadora do grupo de relação com refugiados do Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado, Carla Mustafa, alerta para o fato de que os sírios e os haitianos são apenas dois dos demais grupos de migrantes que se encontram em situação de vulnerabilidade e que não necessariamente estariam protegidos pelo refúgio no Brasil. A Lei 9.474/97 definiu os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 no país e as três hipóteses de reconhecimento do indivíduo refugiado, a saber:
“I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.”
Segundo Carla Mustafa, a Lei do Refúgio de 1997 foi um contraponto em relação ao Estatuto do Estrangeiro. “Havia uma lei extremamente protetiva e humanitária com relação ao refugiado [lei 9.474/97], mas quem não estava de certa forma protegido pelo refúgio e era um migrante, não tinha os mesmos mecanismos de proteção”. Para ela, a nova Lei da Migração também vai, de certa forma, harmonizar o acesso aos mecanismos de proteção no país, tornando-o mais igualitário.
De acordo com a autora da tese de doutorado O Devido Processo Legal para o refúgio no Brasil, Larissa Leite, o migrante não solicita o refúgio, mas sim, o reconhecimento da condição de refugiado – decorrente de sua realidade específica – pelo Estado. Sendo assim, seria correto denominar este migrante como solicitante do reconhecimento da condição de refugiado, dado que o refúgio não é constituído por decisão da autoridade competente. Conforme dados disponibilizados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), entre 2015 e 2016, foram contabilizadas novas 22.427 solicitações da declaração da condição de refúgio no Brasil. Destas, 2081 foram deferidas.

Migrantes no mercado laboral : trabalho análogo ao escravo e tráfico de pessoas
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a maioria dos migrantes se move, junto de suas respectivas famílias, em busca de emprego. “Como o Estatuto do Estrangeiro não permitia que os estrangeiros em busca de emprego permanecessem regularmente no país, muitos solicitavam refúgio para ter algum documento (o protocolo do pedido), desvirtuando o fim do pedido de refúgio. A nova lei corrige esta distorção”, destaca a Dra. Andrea Gondim, procuradora do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP).
De acordo com Gondim, tem sido crescente, desde a década de 1990, o número de denúncias registradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) quanto a casos de trabalho análogo ao escravo na produção de roupas e demais artigos têxteis que compõem o setor de confecções em São Paulo, “normalmente envolvendo trabalhadores estrangeiros de origem boliviana, como nos casos Zara, Pernambucanas, Le Lis Blanc, dentre outros varejistas”.
Em 1966, o Brasil ratificou a Convenção de Migração para Trabalho de 1949 da OIT, revisada em 1997. Segundo a Dra. Andrea Gondim, o documento obrigou o país, perante a comunidade internacional, a aplicar, sem discriminação de nacionalidade, de raça, de religião ou de sexo, aos imigrantes que se encontrem legalmente nos limites do território nacional um tratamento que não seja menos favorável que aquele que é aplicado aos trabalhadores nacionais, de acordo com a Constituição Federal de 88. A Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes, de 1990, e a Convenção 143 da OIT sobre a Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes, entretanto, ainda não foram aprovadas pelo Congresso Nacional para serem ratificadas pelo Brasil.
Para Gondim, é primordial ressaltar a centralidade do trabalho na questão migratória, dado que, de acordo com a OIT, o principal motivo da migração contemporânea é a segurança econômica. A procuradora do MPT-SP destaca a importância da participação das entidades da sociedade civil, dos representantes do poder Executivo a centrais sindicais, de brasileiros emigrados a imigrantes que residem no país, nas políticas acerca da mobilidade humana. Busca-se, assim, “a efetivação dos direitos humanos, com a adoção de procedimentos justos que minimizem os efeitos negativos dos controles migratórios, em conformidade com os padrões internacionais e regionais”.
A nova Lei da Migração também tipifica como crime a ação de traficantes que promovem a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional e de brasileiros em país estrangeiro, determinando pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa. A pena é aumentada de 1/6 a 1/3 se o crime for cometido com violência ou se a vítima for submetida à condição desumana ou degradante. Para o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, segundo Flávio Antas Corrêa, o grande avanço da Lei 13.445/2017 foi o acolhimento dirigido às vítimas do tráfico de pessoas.
Alguns avanços da nova Lei da Migração e a irresoluta definição da autoridade civil migratória
A nova Lei da Migração também trata das questões do apátrida e dos asilados, bem como ocupa-se com as políticas públicas e os direitos do emigrante, definindo como um dos princípios das políticas públicas para os emigrantes a “proteção e prestação de assistência consular por meio das representações do Brasil no exterior”. A proteção aos apátridas, asilados e brasileiros no exterior não integrava nenhuma outra norma anterior à nova lei , sendo verificada apenas em tratados internacionais.
Além disso, a Lei Da Migração ratifica a isenção das taxas e emolumentos consulares pela concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória, mediante verificação de insuficiência econômica. Para Carla Mustafa, trata-se de um grande avanço, dado que o acesso do migrante à saúde e à educação, por exemplo, estava restrito ao pagamento de uma série de taxas referentes à documentação. “Nem sempre o migrante dispõe de recursos para custear as taxas de documentação e acaba não se regularizando e, não se regularizando, fica às margens da sociedade”, ressalta. Ela enaltece, igualmente, a garantia, pela Lei 13.445/2017, do contraditório e da ampla defesa ao migrante. “Trata-se de uma garantia já prevista pela Constituição Federal, que é cabível para qualquer processo, tanto criminal quanto administrativo, mas que nem sempre era concedida aos migrantes que entravam no país de maneira irregular. Ter direito à defesa é fundamental”, defende.
Depois de um ano e meio estudando sozinho o idioma português, Deniel Pierrot, nascido no interior do Cabo Haitiano e residente no Brasil desde maio de 2014, conseguiu uma bolsa na Faculdade Zumbi dos Palmares, mas evidencia a dificuldade que encontrou com a emissão de documentos no país. “Não foi fácil, eu sou muito grato, mas foi um processo burocrático. É uma dor de cabeça enorme tirar documento aqui no Brasil, eu tive que ir até Brasília só pra conseguir uma declaração. Foi muito difícil tirar meu RNE [Registro Nacional de Estrangeiros] para conseguir entrar na faculdade”, relata o haitiano. Deniel ressalta também a expressão acentuada do racismo no Brasil. “O povo brasileiro é muito alegre, mas o racismo sufoca a gente. Eu já sofri muito disso, mas eu larguei tudo pra trás porque eu tenho um sonho pra alcançar”, revela.
Conforme a Dra. Andrea Gondim, outra inovação salutar da Lei é o direito à reunião familiar, enquanto o Estatuto do Estrangeiro “falava em direito individual ao visto que poderia se estender aos dependentes legais, mas não necessariamente”. Também merece destaque, de acordo com a procuradora, a possibilidade, desde que satisfeitos os requisitos previstos em regulamento, da transformação do visto de visita ou de cortesia em autorização de residência, o que “era muito difícil na lei antiga que acabava obrigando o estrangeiro a sair do país e retornar com novo pedido”.
Em função do vício de iniciativa, a nova Lei da Migração, entretanto, não define a autoridade civil migratória no país, mas, conforme Pétalla Timo, “a nova autoridade vai precisar ser criada no futuro e a nova Lei dá margem para isso”. A organização Conectas Direitos Humanos defende que “migração não deve ser caso de Polícia”. A função da Polícia é complementar e deve estar centrada na defesa das fronteiras do país e nos casos em que se identifica o tráfico de pessoas, mas “não deve constituir a autoridade que lida na ponta com o migrante”, pelo contrário, esta última deve ser “a autoridade civil migratória estabelecida especificamente para lidar com o migrante”, dado que a migração não está intrinsecamente relacionada com as dinâmicas de criminalidade no país.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), há mais de 244 milhões de migrantes no mundo. Conforme o último levantamento (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há cerca de um milhão de imigrantes residindo no país; e, de acordo com levantamento do Ministério das Relações Exteriores, mais de 3,1 milhões de brasileiros vivem no exterior. Carla Mustafa alerta para a discrepância entre os números de imigrantes no Brasil e brasileiros no exterior e, por isso, afirma que proporcionalmente não há fundamento no receio de que haverá, com a nova Lei da Migração, uma suposta invasão de migrantes ou um negligenciamento das fronteiras no país. “Não podemos deixar de reiterar: migrar é um direito humano”, completa.