Por Karina Merli
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Em dezembro de 2017, Tifanny Pereira de Abreu entrou para a história do voleibol brasileiro: tornou-se a primeira mulher transgênera a jogar a Superliga Feminina. Atuando pelo Sesi Vôlei Bauru, a atleta começou a se destacar, quebrou o recorde de pontos por partida contra o Dentil Praia Clube, alcançando a marca de 39 pontos contra os 37 da então recordista, Tandara (Osasco). Além disso, foi a maior pontuadora do campeonato, com 5,33 pontos de média por set.
A boa performance da oposta rendeu uma enxurrada de críticas oriundas de especialistas, membros das comissões técnicas e até de atletas e ex-atletas, como as medalhistas olímpicas Sheilla Castro e Ana Paula Henkel. Para essas pessoas, Tifanny teria uma vantagem física por ter se desenvolvido e treinado em um corpo masculino, ainda que nenhum estudo comprove isso.
No entanto, muito além de ser alvo de debates polêmicos, ela revela-se não apenas ser uma atleta emblemática, mas uma pessoa que tem muito a nos ensinar.

Família e infância repletas de amor
Tifanny nasceu em Goiás, em um corpo que não era o seu lar, mas que ela sabia que não a impediria de ser uma mulher completa, como ressalta em suas entrevistas. É a caçula de sete irmãos e filha de Dona Amália, o pai biológico não conheceu. A atleta sempre demonstra gratidão pelo apoio e pelo amor que recebeu dos seus familiares ao longo da vida, em especial, após anunciar que estava passando pela mudança de sexo.
Na infância, viveu em Conceição do Araguaia (PA) e por conta de dificuldades financeiras teve que ajudar a família desde cedo. O vôlei lhe deu esta oportunidade e a estendeu para o sonho de realizar a cirurgia de adequação. Mas enquanto isso não era possível, o seu comportamento feminino despertava preconceito das pessoas, algo que a magoava conforme crescia. Na sua visão de criança, a única coisa que a diferenciava de uma menina era o cabelo, como relatou em entrevista concedida ao Globoesporte.com.
A paixão pelo vôlei e o início da carreira profissional
O relacionamento entre a jogadora e o vôlei começou na escola. Seu desempenho chamou a atenção e foi convidada para fazer parte de um time da região com apenas 17 anos. Profissionalmente, começou no vôlei paranaense, pelo Foz do Iguaçu, em 2007; também defendeu o Juiz de Fora e foi apontada como uma das responsáveis pela subida do time para a Superliga A.
No ano seguinte, passou a atuar em ligas internacionais masculinas passando por Indonésia, Portugal, Espanha, França, Holanda e Bélgica. Nesta última, atuou pelo time da segunda divisão, Zele-Berlare e deu início ao tratamento hormonal para realizar o seu grande sonho. Em entrevista à Veja, ela lembra que era tratada com muito respeito pelos colegas. “Se não havia um vestiário exclusivo, esperavam que eu saísse do banho para entrar.”

A transição: de Rodrigo para Tifanny
Até os 29 anos, a jogadora viveu em conflito com o corpo que tinha. Em entrevista, à Universa, ela declarou: “Estava bem no voleibol, mas não aguentava mais, meu psicológico não aguentava. Joguei profissionalmente como Rodrigo por seis anos. E isso serviu de alicerce para a Tifanny nascer. Foi com ele que consegui juntar dinheiro e toda estrutura para bancar as cirurgias, tratamentos e hormônios. Não é fácil e nada barato.”
Inspirada pela personagem Ramona da novela “As filhas da mãe”, a oposta do Sesi Vôlei Bauru decidiu que sairia do país para conseguir se tornar uma mulher como ansiava, o que, de fato, aconteceu. Tifanny poupou dinheiro para que pudesse realizar o procedimento cirúrgico e se manter no exterior até a sua recuperação. Após isso, planejava voltar ao país e buscar uma nova carreira profissional, já que, para ela, não havia a possibilidade de voltar a jogar vôlei.
Até receber a autorização da justiça brasileira para alterar o gênero e o nome de registro, a atleta usava o nome de batismo (Rodrigo), o qual afirma não gostar e procura deixá-lo no passado. A cirurgia de adequação de sexo se deu em 2014, na Holanda. De acordo com a oposta, o fato de ter ocorrido fora do país foi um ponto facilitador, já que há uma oferta maior de especialistas para o acompanhamento adequado, além da gratuidade. Ao longo do pós-operatório, ela também contou com a ajuda da irmã, Divina.
Tifanny soube logo que poderia atuar no vôlei feminino, algo que recebeu com certa descrença, pois acreditava que a sua força continuaria sendo a mesma. Mas havia perdido não só ela, como a velocidade e a resistência também, sem contar o fato de ter ganhado 13 quilos a mais. Com o fim deste processo e após apresentar a documentação necessária, ela pode voltar a jogar vôlei.
Para o Comitê Olímpico Internacional (COI), uma atleta transgênera pode atuar na categoria feminina desde que esteja em terapia hormonal há no mínimo dois anos e apresente nível de testosterona inferior a dez nanomol/L de sangue ao longo de um ano. Ademais, ela deve ser submetida ao exame duas vezes nesse período e reavaliada durante toda a sua carreira. Nos exames de Tifanny, os índices de testosterona foram inferiores a um.
No início de 2017, ela recebeu a permissão da Federação Internacional de Voleibol (FIVB) – com base nas regras do COI – para atuar no vôlei feminino, mais especificamente no Golem Palmi da segunda divisão italiana, tornando-se a primeira transgênera brasileira a atuar em uma liga feminina. A sua participação foi inicialmente bem aceita, depois, passou a repercutir de forma semelhante à que ocorre no Brasil. Ao final da temporada e com uma fratura na mão, a atleta veio se reabilitar no Sesi Vôlei Bauru e mal sabia o que o futuro lhe reservava.

Tifanny na Superliga Feminina
Ao longo de sua estadia no Vôlei Bauru, o clube acabou lhe fazendo uma proposta e ela resolveu ficar. Autorizada pela Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), no dia 10 de dezembro de 2017, Tifanny Pereira de Abreu entrou para a história do voleibol brasileiro: tornou-se a primeira mulher trans a atuar em um time da Superliga. O clube do interior de São Paulo enfrentou o São Caetano e acabou sendo derrotado por 3 sets a 2, mas nem por isso, a conquista da atleta foi reduzida.
A atleta e os torcedores destacam que a recepção no clube foi boa e bastante acolhedora. A fã Maria Eduarda Bonfim Soares afirma que “foi um time que a quis contratar para mostrar que não existe preconceito e que todos merecem uma chance.”

Bloqueio no preconceito
Por ser a pioneira no vôlei feminino brasileiro e por viver no país que mais mata transgêneros no mundo, Tifanny é alvo de preconceito dentro e fora das quadras. No jogo contra o Fluminense, por exemplo, a atleta foi insultada, de acordo com a capitã do Vôlei Bauru, Angélica. Para a estudante Maria Eduarda, “sempre existirão pessoas querendo deixá-la para baixo, querendo o mal dela.”
Porém, o apoio de muitos fãs, como os membros da Gigantes do Vôlei (torcida organizada do Bauru) e importantes representantes transgêneras, como Bruna Benevides e Roberta Peron, que analisam a ascensão da atleta como uma conquista para a comunidade trans, fortalecem ainda mais a jogadora. Henry Gimenez, membro da Gigantes do Vôlei, em entrevista ao Globoesporte.com, contou que a torcida surgiu com a vontade de fazê-la se sentir acolhida. Ademais, conforme o debate se acirrava sobre a sua participação, Tifanny atraía ainda mais torcedores a seu favor.

Com tamanho carinho, os fãs sempre falam de sua atenção e o amor que dá a cada um. Mateus Lopes Ramos, atleta de Conselheiro Pena, destaca que admira a humildade e o amor que a oposta demonstra pelo próximo. Já Maria Eduarda, que teve a oportunidade de falar com a atleta pessoalmente, relata: “Houve um momento especial, em que eu a conheci e ela me deu toda a atenção do mundo, me reconheceu sem eu ter dito uma palavra sequer.”
Ciente de sua conquista e do espaço que começa a abrir para outras transgêneras, em entrevista ao Globoesporte.com, Tifanny afirma que elas nunca devem desistir de seus sonhos e que o amor sempre vence. Para quem a acompanha, ela é um referencial de força e inspiração.
A oposta do Sesi Vôlei Bauru promete que só irá parar caso a lei mude. Enquanto isso, continuará lutando pelo próprio trabalho.
Os planos para o futuro
Como toda atleta de alto nível do vôlei brasileiro, a jogadora sonha em atuar pela seleção brasileira. Na sua visão, dado o momento em que mostrar bom desempenho, este sonho também poderá ser realizado. O técnico José Roberto Guimarães reforça essa ideia, desde que as federações brasileira e internacional de voleibol, além do COI, permitam a convocação da jogadora.