Problema crônico de Palmeirense é sofrer de todo jeito. Não tem jeito. Tem sofrimento e, depois, comemoração. Tem reclamação para o Borja, para o Bigode e para o acaso. Por acaso ou por estrela, não tem para o Fabiano que, quem diria… Essa é uma crônica de 12 abril de 2017, oito dias após o meu décimo sétimo aniversário.
História, religião e Palmeiras
Naquela quarta-feira, resolvi me presentear: comprei um ingresso para assistir a partida entre Palmeiras e Peñarol — que seria disputada no Allianz Park. Pela primeira vez, eu veria um jogo de Libertadores da América no estádio. Torneio este, que meu gigante verde havia conquistado uma única vez: em 1999 — por infortúnio do destino, um ano antes de eu nascer.
A atmosfera que cercava aquele jogo era pesada. Pesada como a camisa do Peñarol, o terceiro maior campeão da libertadores, dono de 5 títulos. Um gigante amarelo e preto, uma espécie de Golias no qual Felipe Melo, o nosso Davi nada bíblico, prometeu dar tapas na cara.
Aproveitando o contexto bíblico, o palmeirense era Jó: teve abundância um dia — títulos, dinheiro, dignidade; perdeu tudo em uma provação; mas assim como no desfecho bíblico, o dinheiro voltou, as conquistas voltaram, e o verde se tornou, mais do que nunca, a cor da esperança.
Esperança. Acredito que derive do verbo esperar. Esperei quinze anos para ver meu Verdão se reerguer, conquistando a Copa do Brasil; dezesseis, para vê-lo chegar ao topo do país com o título brasileiro; dezessete, para junto dele, voltar a desbravar dignamente a América.
O primeiro a desbravar a América? Colombo. Coincidentemente colombiano — Mina, quase um mês antes, no dia 16 de Março, marcou diante do Jorge Wilstermann, colocando o alviverde na liderança do grupo 5 da Libertadores. Então, pela terceira rodada da fase de grupos, Palmeiras com 4 pontos e Peñarol com 3 se enfrentariam pela primeira posição.
Festa no chiqueiro e balde água fria
O jogo seria às nove e quarenta e cinco da noite, como moro no grande ABC, saí de casa às seis para chegar a tempo. Um pouco de CPTM pela linha Turquesa, um pouco de metrô pela linha vermelha, um mar verde ao chegar na Barra Funda. Mais do que nunca, eu estava em casa, junto à outras trinta e oito mil pessoas.
Aproveitei por cerca de quinze minutos a festa fora do estádio. Foguetes, sinalizadores e músicas cantadas a uma só voz faziam a Avenida Turiassu ganhar vida. Adentrei o Allianz, e apesar do calor humano dentro do estádio, meu corpo era somente calafrios dado o clima tenso da partida.
Os times entraram em campo. Eu já não tinha mais voz, nem coração, só pulmão — para puxar o ar e sussurrar: “a taça Libertadores obsessão”. A escalação foi anunciada no telão. Enquanto o trio Dudu, Willian e Guerra trazia a esperança de paz, Fabiano, escolhido para a lateral-direita, acentuava meus calafrios.
A bola rolou e meu coração relou na garganta: “VAMO PALMEIRAAAS”. A primeira meia hora de jogo não correspondeu a nenhuma expectativa. Dentro de campo, os times brigavam muito e jogavam pouco. Fora das quatro linhas, a apreensão gerava as primeiras críticas por parte da – no minimo – exigente torcida alviverde.
Aos 31 do primeiro tempo isso mudaria, um escanteio para o Peñarol mutaria a voz da arquibancada. Um amigo, que acompanhava-me no dia, disse: “nossa bola parada defensiva é péssima”. Respondi: “para de paranóia”. Para! Para a bola! Para o cara! Para tudo juizão, por favor, anula! Cabeçada direto para o gol. Ramón Arias, Peñarol 1 a 0.
Apesar do baque, a torcida aumentou o tom, levantou e empurrou o time. Não adiantou, emperrou, desandou completamente. O time palmeirense parecia perdido. Resultado disso, ainda na primeira etapa, o Peñarol quase ampliou em duas oportunidades.
A virada e o “quem não faz, toma”
Fim do primeiro tempo. Eu estava indignado com o futebol do time, porém, ponderei: “agora é hora de ter tranquilidade”. Acalmei-me e estava pronto para o segundo tempo quando dois palmeirenses começaram a trocar socos ao meu lado. Em questão de minutos, foram contidos. Mas aquilo demonstrava o quão tenso era o clima no estádio.
O Juíz apitou, começou o segundo round. Mais uma vez: “VAMOOOOS PALMEIRAS”. Sequer tive tempo de ficar tenso – com menos de um minuto de jogo, o Palmeiras criou grande chance para Borja. O centroavante, para variar, desperdiçou a oportunidade.
As arquibancadas aqueceram, esqueceram o primeiro tempo. Os uruguaios foram empurrados, encurralados dentro de seu campo. No lance seguinte, cruzamento de Fabiano para a área. Bate, rebate, bote, rebote, bateu… é gol — Willian Bigode, do Palmeiras. Por minha parte, berros, urros e abraços em desconhecidos; inclusive nos brigões antes citados.
A acústica do estádio colaborava, o barulho era imenso. Os jogadores imersos num mar de incentivo. Minutos depois, falha na defesa do Peñarol, Guerra invadiu a área, cara a cara com o goleiro. Foi solidário: solitário do outro lado da área, Dudu recebeu o passe e só empurrou para as redes. A virada, 2 a 1 no placar. Festa no gramado, festa na arquibancada.
Havia como melhorar? Havia. Aos nove minutos do segundo tempo, pênalti — era a chance do 3×1. Havia como piorar? Havia. Borja na bola, bola no céu. O colombiano isolou a penalidade. Em dez minutos, tudo havia mudado em uma velocidade impressionante. Ah, o futebol!
Somente aos 29 o jogo voltou a ganhar calor – após bate e rebate, Tchê Tchê chutou de dentro da área. Gritei gol, assim como todos ao meu lado. Porém, Lucas Hernández salvou em cima da linha. Um minuto depois, falta da intermediária para o Peñarol – “nossa bola parada defensiva é péssima” – gol de Gastón Rodriguez. Instantes de um silêncio ensurdecedor.
Minutos depois, a torcida voltou a empurrar o time, que passou a pressionar. Willian invadiu a área sozinho, driblou o goleiro. Todos de pé na arquibancada, e a bola na trave. Todos se olhavam, ninguém acreditava. Entre a multidão dos incrédulos, eu era o mais chateado, já que aquele era o último lance que eu veria.
Te amo, Fabiano
Lembra de eu dizer que morava no ABC? A linha Turquesa da CPTM, que uso para chegar em casa, para de funcionar à meia noite. Portanto, deixei o estádio aos 35 do segundo tempo para alcançar o último trem. Junto a um amigo, corri pela Turiassu — claro, sem largar o celular em nenhum momento, já que acompanhava o final do jogo por meio de um aplicativo.
Corre, corre, respira, corre. Não respira, não, só corre. Chegamos à estação Barra Funda da linha vermelha. “Vermelho não”, eu lamentava. O aplicativo acabara de informar que Dudu havia sido expulso, aos 49 do segundo tempo. Um metrô me separava da linha turquesa, um gol separava-nos da vitória.
Os comentários do aplicativo apontavam a expulsão como injusta, o Peñarol pressionava, e eu me impressionava com o quanto eu era capaz de correr. No fim, o saldo havia sido bom, vi um grande jogo, me diverti, comemorei, sofri, peguei o último trem. Enquanto eu tentava me convencer disso, escanteado, um pedaço do meu coração gritava: “falta a vitória”.
Exausto, me joguei no assento do trem e usei minhas últimas forças para abrir o aplicativo. Por algum motivo, o jogo ainda estava acontecendo. 54 do segundo tempo. Meu amigo, ainda mais exausto que eu, já havia desistido, preocupava-se exclusivamente em restaurar a respiração.
O celular vibrou. O estádio inteiro deve ter vibrado. Eu não vibrei, desabafei. Abracei meu amigo e gritei: “Fabiano, eu te amo!”. Ele entendeu na hora, proferiu palavras de baixo calão, as quais não posso citar. Quando voltei a pegar o celular, o aplicativo já indicava: Fim de jogo, Palmeiras 3 a 2. Olhei para o meu companheiro e disse: “essa libertadores é nossa”. Não foi, mas nem toda história é perfeita.