Há algum tempo, o autismo vem ganhando espaço dentro das discussões na psiconeurologia. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), referência mundial no setor de psicologia, define o Transtorno de Espectro Autista (TEA) como “um transtorno de desenvolvimento neurológico caracterizado por dificuldades de interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritos”.
Variando entre os três níveis classificatórios de gravidade (leve, moderado e severo), o transtorno possui características conhecidas pelo senso comum, tais como repetições marcantes na linguagem, discrepâncias na interação social, contato visual precário e dificuldade de se expressar emocionalmente.
Com os avanços nos estudos sobre o diagnóstico, além de importantes artigos acadêmicos interessados especificamente em tais comportamentos definidores, as condições para a identificação do autismo tornaram-se mais ricas e, portanto, complexas, com uma série de novas premissas comportamentais que foram enquadradas.
Entre elas está a camuflagem social, espécie de metalinguagem dentro do mundo autista. Neste texto do Laboratório, vamos apresentar esse comportamento ainda pouco conhecido como característica do transtorno, as razões de seu aparecimento e a razão pela qual este mecanismo predomina em mulheres com o diagnóstico autista.
O que é camuflagem social
A camuflagem social — ou masking, termo mais utilizado — é caracterizada como uma estratégia utilizada por pessoas autistas de forma para mascarar características do próprio autismo. Elaine Cristina Zachi, psicóloga doutora na área de Neurociências e Comportamento pelo Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em transtornos de desenvolvimento, explica que a camuflagem é um conjunto de estratégias de enfrentamento social e um mecanismo de adaptação. “Ela é uma compensação de dificuldades e características que possam parecer socialmente estranhas, como movimentos ou atitudes repetitivas, por exemplo”.
Esse processo de acionamento do masking engloba referências diversas da comunicação e da interação social, e costuma envolver mecanismos de cópia, por meio da observação de comportamentos, gestos e outros aspectos não verbais da comunicação de outras pessoas, que são apreendidos e aplicados por autistas.
A fim de compensar esses traços evidentes do autista, o masking acontece para suprimi-los e faz com que a pessoa acione mecanismos conscientes dos desvios de sua conduta, como ir a uma festa e levar piadas prontas ou preparar tópicos de conversas específicos para uma melhor socialização. “Uma pessoa que tem dificuldade nas interações sociais pode treinar em casa e imitar pessoas que ela conhece e admira”, acrescenta a psicóloga.
A importância da camuflagem social está precisamente nesta busca pela adaptação social, isto é, uma aprendizagem, e por isso pode ser um ato tanto consciente quanto inconsciente. E é por essa razão que pode estar presente em autistas, mas não é exclusiva a eles, podendo se manifestar também em neurotípicos – ou seja, pessoas que não apresentam condições neurológicas atípicas.
Sophia Mendonça, jornalista, criadora do site e canal no Youtube “Mundo Autista” e diagnosticada com autismo relata: “A gente percebe o que parece funcionar na interação com outras pessoas e modula nosso comportamento com base nessa observação. A camuflagem social é um mecanismo importante para a adaptação de autistas no convívio em sociedade, principalmente quando se trata de um ambiente pouco acessível a diferenças”.
Masking em mulheres
Ainda que aconteça em pessoas de todos os sexos, a camuflagem social é mais comum em mulheres. “O que a gente observa é que são mais frequentes em meninos autistas os comportamentos repetitivos, estereotipados; enquanto nas meninas a gente vê interesses mais parecidos com as outras meninas da mesma idade, mais interesse social”, conta Elaine.
Sophia destaca o impacto da cobrança de socialização destinada às mulheres na maior tendência que elas têm ao masking. “Grupos de meninas, por exemplo, tendem a favorecer brincadeiras de modelagem, em que amigas oferecem dicas e corrigem comportamentos considerados inadequados. Mulheres autistas, assim, costumam ser mais extrovertidas e atentas às reações de outras pessoas, além de em muitos casos mais preocupadas com as regras sociais”, conta a jornalista.
Ela ainda compartilha sobre sua própria experiência: “A camuflagem social não foi um processo consciente, mas a maneira que eu encontrava por meio da observação para ser mais aceita em diferentes grupos de pessoas”. Ela comenta que sempre observou as nuances das personalidades das pessoas com quem interagia e, com base nessas observações e percepções, criava “personagens” diferentes para cada interação social. “Eu observava as características do grupo com o qual queria me relacionar, o que eles esperavam de mim e como eram os pensamentos de cada agrupamento de pessoas”, completa.
Esse comportamento foi especialmente comum na adolescência, quando diz que chegava a reproduzir ideias das quais discordava para ganhar a simpatia de outras pessoas. Sophia diz que chegou a ouvir de familiares e colegas que era como se ela “tivesse mais de uma personalidade”, por se adequar às características dos diferentes grupos com que interagia.
“As pessoas tendem a esperar de autistas dificuldades mais óbvias de comunicação e interação. Então, estranharam ao ver como eu podia ser extrovertida e falante, mesmo com dificuldade de acompanhar algumas sutilezas”, comenta.
A camuflagem mais acentuada tem um custo alto para as mulheres. Elaine conta que essa tendência maior à camuflagem torna mais comum sintomas de depressão e ansiedade em mulheres autistas, resultantes da exaustão causada por ter que lidar com situações como as descritas por Sophia.