Imagem: Fernanda Pinotti / Comunicação Visual / Jornalismo Júnior
Em um mundo de moralismos, é fácil diminuir tudo aquilo que não se entende. O problema nasce justamente quando o indivíduo, tão focado em suas visões e perspectivas, não se propõe a ouvir a voz dos reais afetados por determinada questão. A pornografia, um dos maiores tabus da sociedade, é um dos meios que mais enfrenta esse dilema. Atrizes e diretoras, antes mesmo de ter sua história conhecida, tem sua fala negada por pessoas que, por não entenderem seu modo de vida, consideram-no ilegítimo. Dessa forma, as trabalhadoras do sexo são taxadas de desde inocentes e ingênuas até as grandes culpadas pelos problemas do mundo.
Com a intenção de trazer uma nova perspectiva e tratar um assunto tão negligenciado, mesmo que parte do cotidiano da maioria das pessoas, o Sala33 ouviu quem realmente pode falar sobre o tema. Confira, à seguir, a história de 5 mulheres que trabalham com o sexo. Nossa intenção foi retratar a pornografia pela perspectiva de pessoas que a veem de diferentes lugares e posições. Assim, os depoimentos abaixo estão divididos em: atrás das câmeras, na frente das câmeras e nas prateleiras das lojas.
- Atrás das câmeras
May Medeiros
Diretora de filmes e produtora da XPlastic
“Eu estudava artes visuais, estava no último ano da faculdade, com 18 anos, e estava trabalhando dentro da Fundação Bienal. Tinha total tranquilidade com a nudez e com corpos nus na minha frente… (…) Então, o estudo da sexualidade fazia parte do meu cotidiano. Acho que o ponto de virada foi uma exposição na Fundação Bienal, na qual 80 por cento das obras eram proibidas para menores de 18 anos. Eu já gostava de obras mais questionadoras mesmo, sou super fã do Egon Schiele, então sou super fã de alguns artistas que questionam muito a nudez e a sexualidade. Eu acredito muito na ideia de Foucault, que quando você descobre a sexualidade de uma pessoa você descobre quem ela é de verdade. Então acho que isso sempre foi um ponto crucial para mim. E acho que estudando a sexualidade dentro de arte, a gente flerta com filosofia o tempo todo. E ali, eu estava estudando os artistas, os pintores, a vida deles e das meninas que eram retratadas, que eram sempre colocadas como as meretrizes e prostitutas. E quando eu fui trabalhar nessa exposição, eu conheci o pessoal da Xplastic. Era um pessoal extremamente…. revolucionário mesmo. Eu sei que é uma palavra meio batida, essa coisa de ser disruptivo… Mas era uma galera que estava fazendo punk rock com pornografia, era uma galera que estava pensando pornografia de um jeito anarquista. Então para uma menina de 18 anos, aquilo foi tipo ‘quem são essas pessoas? Eu quero ser amiga dessas pessoas!’ Foi muito surreal, eu fiquei alucinada. Eu enxerguei neles um reflexo do que eu estava estudando em teoria. (…) Na época era um grupo de 3 caras, andando com um monte de meninas. Meninas que, até hoje, algumas são minhas amigas… Meninas muito a frente do tempo mesmo, que sustentavam a própria família, que estavam cagando pra todo mundo e que, muito diferente da maioria das meninas do mainstream, tinham um estilo de vida de fato atípico, porque elas estavam fazendo aquilo, porque “eu faço isso porque eu posso fazer isso com meu corpo”. (…) ‘Quem são essas mulheres? Eu queria saber quem elas eram… A força que elas têm, a forma com que elas se colocam no mundo é um lugar de investigação para mim. Foi meio que isso… Não foi uma decisão muito consciente ‘vou trabalhar com pornografia’, foi um processo de pesquisa mesmo, de entender. (…) E aí eu fui me aproximando deles… (…) Não era um trabalho. Eu ia, no final de semana, para me divertir, para ver o que eles faziam… Chamei eles para fazer uma visita técnica no museu, e, no final, tinha um ateliê com modelos da Xplastic. Um ateliê de modelo vivo, só que ao invés de ser uma modelo vivo tradicional, no espaço positivo e sagrado, era uma modelo do pornô alternativo… Acho que foi isso. Foi um negócio de querer me aproximar de alguém que estava fazendo a mesma coisa que eu estava estudando na teoria, só que fazendo, no contemporâneo, com a tecnologia do contemporâneo. Se a tecnologia do século XVIII era uma tinta acrilíca, a tecnologia dali era uma câmera HD. Foi isso… Não foi assim ‘eu quero trabalhar com pornografia’, eu odiava pornorgrafia… Acho que eu nem gosto de pornografia ainda… (risos)”
- Na frente das câmeras
Patrícia Kimberly
Atriz pornô
“Então, têm doze anos já [que ela começou]… Na verdade, eu sempre tive vontade de me expor, eu queria sair na capa de uma revista masculina. Aí eu conheci um agenciador e ele disse “por que você não começa fazendo filmes? Que através dos filmes você pode ser capa de revista…” Eu queria posar nua, já tinha essa vontade… Então eu abracei, era isso que eu queria para mim… Eu lembro que eu pensava “eu quero ter nome e sobrenome, vou virar atriz porque daí todo mundo vai me conhecer, com nome e sobrenome.”. Eu comecei e, em pouco tempo, eu tinha muitos filmes. Em três meses, eu super me destaquei e um ano depois eu estava muito conhecida. Eu saí em várias revistas, então eu vi que era mesmo o que eu queria… Sair em revistas e ter esse público masculino me desejando… E nos filmes tinha muito disso, saindo nas capas dos filmes também. E foi assim que eu comecei…”
Gween Black
Cam girl
“Eu comecei porque eu tava muito deprimida na minha faculdade de direito, eu fazia direito em São Bernardo. Aí eu comecei a fazer o camming por diversão e eu me apaixonei! Eu comecei a fazer o camming de madrugada… Eu tinha muito preconceito com meu próprio corpo porque tinha aquele padrão europeu de mamilos claros e meus mamilos são escuros. E isso foi, para mim, uma quebra de tabu enorme porque as pessoas começaram a gostar do meu corpo. E eu falei ‘como assim vocês gostam de mim?’ Eu sempre fui muito rejeitada na escola, eu apanhei de uma pessoa que eu gostava na escola e eu sempre fui muito chamada de feia, de magrela… E foi muito libertador ver pessoas que gostavam de mim, da minha aparência e da minha personalidade… Foi muito tipo ‘como assim pessoas querem me ver? Pessoas falam que eu sou bonita?’ E é um site americano, então eu falava só inglês, eu sempre falei só inglês. E foi uma experiência muito incrível e eu me senti muito feliz, muito feliz mesmo. Eu percebi ‘poxa, eu tava na faculdade tão deprimida, fazendo 4 anos de faculdade de direito… E eu não me achava naquele lugar. Eu não me achava.’ E eu percebi que eu podia fazer arte online… Como o site que eu trabalho é como se fosse um palco, as pessoas te assistem e tudo mais, eu podia fazer shows de dança… E eu pensei ‘isso aqui eu posso usar como um lugar artístico para mim.’ E foi assim que eu comecei. Foi incrível! E aí eu comecei a ter uma paixão incrível pela arte.”
Dread Hot
Atriz pornô e Cam girl
“Então, eu sou formada em Publicidade e, na época, eu trabalhava em uma agência de publicidade. E aí uma amiga minha falou que ela fazia, e ela era cam girl no Câmera Privê. Eu fiquei interessada, já namorava, aí eu falei “ah, vou experimentar.” Falei com meu namorado, ele curtiu a ideia… Ele estava vendendo a empresa dele, então ele estava precisando de grana também. A gente experimentou, gostou… Eu saí do trabalho e tal… Depois de 8 meses, a gente começou a fazer uns vídeos, amadores mesmo, para vender. E depois a gente passou para os filmes profissionais com a Xplastic.”
O namorado da atriz se chama Diego Alemão e é ator pornô. Em um debate organizado pelo festival PopPorn, que aconteceu em junho de 2018, ele afirmou “a galera acha que quem escolhe fazer pornô é porque não tem outra escolha… E não é assim, a gente optou por isso.”
- Nas prateleiras das lojas
Carlyle Jansen
Fundadora da loja canadense Good For Her
Fundadora do festival International Toronto Porn Festival
(antigo Feminist Porn Awards)
“Começou há 21 anos. Eu era alguém que não era confortável com sexo e eu não conseguia ter orgasmos. E então eu descobri várias coisas diferentes, sex toys e workshops… Tudo começou, principalmente, porque eu dei alguns sex toys para minha irmã, em sua despedida de solteiro, mas todas as amigas dela levaram outras coisas como recipientes de salada e taças de vinho. E, então, quando elas abriram o presente que eu levei, elas tinham várias perguntas. E elas disseram “se você é tão confortável falando sobre sexo, você deveria começar a promover workshops”. Então, eu comecei a promover workshops, e mulheres, em particular, queriam um ambiente confortável para comprar e queriam mais workshops, então eu abri minha loja Good For Her. Nós sempre vendemos pornografia, naquela época era em videocassete, e não tinha muita coisa disponível. Então eu estava sempre tentando escolher as melhores seleções… Candy Deroyal tinha alguns filmes… Ela foi uma das primeiras mulheres a começar a produzir e vender pornografia mainstream heterossexual, conteúdo explícito, para mulheres e seus parceiros. (…) Existiam algumas pessoas, como Annie Sprinkle e Nina Hartley que também estavam fazendo as coisas de forma diferente… E também existiam algumas diretoras de filmes lésbicos, mas não eram muitas. Nós vendíamos pornografia mas eu sempre tive alguns receios, do tipo ‘isso é muito bom, mas as unhas são longas demais’. Ou ‘esses filmes são bons para isso, mas os homens performam oralmente nas mulheres por 30 segundos e as mulheres fazem um boquete de 10 minutos.’ Sempre existia o sentimento de que aqueles eram os melhores que podíamos encontrar mas existiam muitas desvantagens. (…) Depois de um tempo, o que nós percebemos é que haviam muitos filmes surgindo, por pessoas que não conhecíamos. (…) Neles, você podia ver mulheres, mulheres negras, pessoas negras, pessoas trans, pessoas com deficiências, todo o tipo de pessoas que nem sempre se sentiam representados, pelo menos de forma positiva, fazendo seus próprios filmes. Então quisemos fazer um evento para notificar nossos consumidores, dizendo ‘ei, olhem esse tanto de gente legal que está fazendo bons filmes’; então fizemos o evento e pensamos em premiar aquelas pessoas, que eram os pioneiros. E as pessoas gostaram e foi assim que se tornou um evento anual.”
Essas cinco histórias foram escolhidas por trazerem uma visão diferente da normalmente esperada pelo senso comum que julga a pornografia. Dessa forma, elas explicitam, com o respaldo do lugar de fala, que são várias as formas de ver algo. Porém, na intenção de estabelecer uma consciência crítica e conhecer os fenômenos em todos os seus pormenores, é preciso lembrar que a realidade aqui apresentada não é a única. Em outras situações e lugares, mulheres que trabalham com o sexo não se sentem empoderadas ou felizes com sua decisão, porém, reduzir toda a realidade de uma indústria à sua faceta mais podre não é um ato sensato. Um bom exemplo pode ser visto na indústria têxtil: existe a moda que oprime e a moda que liberta, existem as costureiras que se realizam e as que são escravizadas. O problema, portanto, não estaria na indústria, e sim na forma com a qual o trabalho é realizado, negligenciando os direitos básicos dos trabalhadores.
O que a presente reportagem busca despertar é a reflexão acerca das diferentes possibilidades de se encarar um fato ou trabalho, questionando os limites entre direitos e moralismos. As histórias aqui apresentadas não são as únicas possíveis, mas são possíveis quando se garante a um trabalhador a possibilidade de exercer sua vontade com segurança e autonomia. Pensar a pornografia de forma progressiva é pensar o exercício da sexualidade como libertador.
Por Laura Scofield
lauradscofield@yahoo.com.br