O racismo que adoece
A pandemia do coronavírus evidenciou uma série de desigualdades na estrutura sanitária do Brasil, inclusive no que diz respeito ao racismo no sistema de saúde brasileiro. A maior letalidade do vírus entre pessoas negras – em São Paulo, capital do estado que é epicentro da pandemia no país, o risco de negros morrerem por covid-19 é 62% maior se comparado aos brancos) – está relacionada, em grande parte, com o fato de representarem parcela significativa de diversos grupos vulneráveis em termos de habitação e saneamento, como quilombolas, pessoas privadas de liberdade, moradores de rua, população periférica, entre outros.
Elas também são a maioria entre profissionais com altas taxas de informalidade, como serviços domésticos, agropecuária e construção civil, que precisaram continuar trabalhando para sobreviver durante a pandemia e foram impossibilitados de seguir à risca as recomendações de isolamento social.
Essas desigualdades no impacto da covid-19 entre a população brasileira evidenciam opressões sistêmicas a pessoas negras muito anteriores. Um exemplo bastante ilustrativo da marca profunda do racismo na saúde são as doenças como hipertensão, diabetes e anemia falciforme, que aparecem com mais frequência entre pessoas negras. No caso específico da diabetes, a diferença é ainda maior entre mulheres: a doença atinge mulheres negras em torno de 50% mais do que mulheres brancas e homens negros, 9% a mais do que homens brancos.
Isso não é meramente uma predisposição genética. Um estudo estadunidense de 1997 descobriu que, apesar de os índices de hipertensão em afroamericanos serem mais altos em relação às outras etnias do país, o índice de hipertensão em negros africanos é, na verdade, menor que em brancos nos Estados Unidos (EUA). Segundo o estudo, isso indica que os números altos de hipertensão na população negra provavelmente são causados por fatores sociais que aumentam a vulnerabilidade dessas pessoas a esse tipo de doença, no caso, o estresse provocado pelo racismo.
Para a pesquisadora Mônica Mendes Gonçalves, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), isso se aplica também para outras enfermidades. Ela explica que, dentro do debate da saúde da população negra, há uma disputa entre aqueles que entendem a raça como uma expressão social de desigualdade, mas também afirmam que a prevalência dessas doenças crônicas seja expressão de uma condição biológica, constitutiva, diferente. E há outra vertente que diz que essa maior prevalência tem a ver com processos históricos e processos sociais ainda vigentes que fazem com que essas populações de pessoas negras tenham possibilidades de expressão fenotípica diferentes entre si e em comparação com pessoas brancas.
Segundo ela, entre os que entendem que existem diferenças de ordem genética defende-se, por exemplo, investir em pesquisa para entender mecanismos fisiológicos, hemodinâmicos, entre outros, e produzir remédios específicos para essa população e suas “especificidades” biológicas como uma medida antirracista.
“Existe, de outro lado, um campo que diz que a gente vai combater essas doenças mudando as condições de vida: essas pessoas precisam trabalhar de um outro jeito, morar em outras condições, subsistir de outra forma. E é assim que se vai construir política de saúde antirracista, investindo em emprego, educação, etc. E é nesse lugar que eu me situo”, ela afirma, reforçando que os genes dependem de certas condições materiais, sociais, objetivas e geográficas para se manifestarem.
O racismo que nega o cuidado à saúde
Todos esses danos que a vivência cotidiana da discriminação racial causam à saúde da população negra são ainda mais agravados pelas dificuldades e hostilidades que esta enfrenta na busca por atendimento médico.
De acordo com Márcia Alves, doutora em Odontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as pesquisas mostram que consultas com pessoas negras duram em média menos tempo, que os médicos tendem a ouvi-las menos e desconsiderar o que falam sobre suas próprias dores, que as prescrições são pouco dialogadas e frequentemente ilegíveis.
Em tratamentos odontológicos, sabe-se que as consultas de pacientes negros são mais mutiladoras: um estudo da UFPE mostrou que, em casos com diagnósticos iguais, dentistas escolhiam por extrair os dentes ao invés de tratá-los com mais frequêcia no caso de pessoas negras do que de pessoas brancas.
Há também questões específicas marcadas pelas interseções de gênero e raça no atendimento de mulheres negras, principalmente no que tange à saúde reprodutiva. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do total de 1.583 mortes maternas em 2012, 60% eram de mulheres negras e 34% de brancas. Além disso, cerca de 90% dos óbitos poderiam ser evitados, muitos deles por ações dos serviços de saúde.
As mulheres negras recebem menos analgesia, menos medicamentos para a dor e menos anestesia. De acordo com a pesquisadora Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutoranda no centro de integração de dados da Fiocruz, “isso acontece por que existe essa ideia no imaginário da sociedade que as mulheres negras suportam mais dor por serem mais resistentes, mais fortes, mais próximas dos homens, por assim dizer. É o imaginário do racismo que estrutura a sociedade e se manifesta no serviço de saúde”.
Ela ressalta que essa desigualdade não se atribui simplesmente a questões de condição financeira. Sobre seu estudo de doutorado, em que trabalhou com mulheres realizando procedimentos de aborto, ela conta:
“As mulheres pretas tiveram maior dificuldade de acessar o serviço. Elas esperaram mais para serem atendidas do que mulheres brancas, mesmo com o mesmo status social econômico. Então a única coisa que pôde explicar isso foi o racismo”
Vale notar a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) dentro dessa questão toda. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 67% dos cidadãos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS são negros. Logo, é essa população que mais sofre com o fato de o sistema historicamente nunca ter recebido os recursos necessários para funcionar plenamente e com os ataques que tem recebido com a intensificação recente de políticas de austeridade desde o governo Temer.
A defesa e o fortalecimento do SUS, que apesar de sucateado, ainda é reconhecido pela OMS como o maior sistema de saúde gratuito e universal do mundo, e cuja existência é um dos motivos de políticas públicas afirmativas como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra serem sequer possíveis, é crucial para a garantia do direito à saúde plena das pessoas negras.
Mesmo assim, seus médicos (a maioria brancos, devido ao fato dos cursos de medicina serem extremamente elitizados) são profundamente marcados pela subjetividade do racismo e isso é um problema central a ser enfrentado, como diz a psicóloga Mônica Mendes Gonçalves.
Em sua pesquisa de mestrado, ela entrevistou e analisou o discurso de profissionais da saúde sobre suas experiências atendendo pacientes negros. O que constatou foi que, muitas vezes, a discriminação acontecia na recusa do atendimento, constantemente mascarada por argumentos técnicos. “A atenção primária dá conta de resolver 70% dos problemas de saúde para todo mundo. O que a gente sabe é que as pessoas pretas em geral são barradas nos serviços mais especializados, e mesmo quando chegam nesses serviços, elas sofrem com maus tratos e negligências”, ela comenta.
Mônica também descreve os profissionais relatando histórias em que o racismo aparece não pela exclusão explícita do negro, mas pela exaltação e proteção do branco. Os profissionais brancos tinham a tendência de sensibilizar-se mais com casos de pacientes brancos em situações degradantes e fazer esforços excepcionais para garantir cuidados dos quais os pacientes negros não desfrutavam, mesmo que aparecessem nessas situações degradantes com muito mais frequência.
Para Mônica, isso demonstra como o racismo, que é rotineiro e marcante no atendimento médico, encontra maneiras sofisticadas de se esconder dentro do dia a dia do sistema de saúde.
O racismo que esconde os corpos
A invisibilidade da questão racial dentro dos dados produzidos sobre saúde é histórica. Os artigos científicos relacionados a desigualdades raciais e saúde são relativamente escassos, e essa discussão só começou de verdade na Academia no final da década de 1990.
Os avanços no sentido de coleta da informação qualificada sobre raça na saúde são resultado de articulações históricas dos movimentos negros. Apesar disso, o descaso no registro desses marcadores continua a ser um problema. Mesmo sendo obrigatória por lei desde 2017, a inclusão do quesito raça/cor em documentos oficiais do Ministério da Saúde ainda é frequentemente negligenciada.
Para Márcia Alves, que foi co-autora do artigo População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde, a própria categorização dessas informações como desimportantes é um exercício do racismo. Para ela, “a subjetividade estrutural do racismo aparece quando é incômodo para o profissional da saúde perguntar de raça ao paciente e se torna institucional quando as autoridades não cobram”.
Segundo a pesquisadora, os cursos de formação dos profissionais da saúde ainda discutem muito pouco sobre o impacto do racismo na saúde pública e sobre as necessidades de cuidado específicas da população negra, mesmo esses tópicos sendo previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais. E, naturalmente, o fato de o número de pessoas negras entre os professores da área da saúde ser muito pequeno só contribui para essa negligência.
A crise sanitária do coronavírus também pode exemplificar a omissão da informação sobre raça nos documentos governamentais. Nas primeiras fichas oficiais de notificação de casos de covid-19, que começaram a ser publicadas no final de março, a categoria raça/cor dos pacientes não constava nos dados coletados. A incorporação do quesito nos registros só aconteceu em meados de abril, após pressão do GT Racismo e Saúde, da Coalizão Negra e da Sociedade Brasileira de Médicos de Família e Comunidade.
Mesmo após essa inclusão, mais da metade das fichas de notificação ainda têm esse campo incompleto. Ou seja, a informação disponível, que já mostra uma letalidade desproporcional do vírus em pessoas negras, ainda é incompleta. É possível (e provável) que esses números sejam ainda maiores.
Para a doutora em Saúde Coletiva pela UFBA Joilda da Silva Nery, também integrante do GT Racismo e Saúde da Abrasco, é legítimo compreender que as rotinas dos serviços de saúde são muitas vezes extenuantes, ainda mais em um contexto de pandemia. Entretanto, existe a possibilidade desse campo [o quesito raça/cor] ser obrigatório nos sistemas de informação, de modo que só se alimente o campo seguinte quando ele for preenchido. “Se os profissionais de saúde e os gestores estiverem sensibilizados para essa questão, a gente tem como ter um melhor detalhamento do perfil epidemiológico da população considerando raça/cor”, ela afirma.
“A população negra é bastante heterogênea , não é como se todos estivessem sob o mesmo risco de adoecimento e morte”, ressalta ainda Joilda. Existem doenças, por exemplo, que acometem mais segmentos específicos, como por exemplo pessoas em situação de rua, que têm muitas doenças dermatológicas, infecciosas, como tuberculose, HIV/aids, etc. E na grande maioria das fichas de notificação não tem o campo informando que aquele indivíduo encontra-se em situação de rua.
Esses fatos, observados no trabalho coletivo dessas e de muitas outras pesquisadoras e pesquisadores, ilustram uma prática generalizada. A coleta de dados do Estado brasileiro frequentemente ignora as desigualdades sociais, raciais e territoriais desse país continental profundamente diverso e assim, é incapaz de considerar as especificidades cujo entendimento é essencial para a implementação das políticas públicas que salvam vidas.
*Capa [Imagem: Reprodução/Paula Froes – Governo Bahia]