Por Daniel Miyazato
Os tempos, eles se acumulam. Vá até o centro da cidade, verá como arquiteturas de diversas décadas se aconchegam entre os cabos de telefone e internet. Países modernos, de culturas milenares, são um exemplo especialmente interessante desse fenômeno. No Japão, pode-se sentir o peso irremediável da tradição em valsa com a facilidade de incontáveis produtos industrializados. O Sumô internaliza estas contradições, dinamiza-se nelas. O esporte é o terceiro mais popular do país, atraindo espectadores de todas as idades, ainda que haja um número decrescente de crianças japonesas. Nascido de épocas míticas, a arte marcial é, em si, um registro histórico, a metáfora de uma nação.
Há algo de místico no ar nipônico, que fascina o ocidente. Um entrelaçamento antigo de cultura e religião, conferindo a pequenos gestos simbolismo divino. O xintoísmo é um dos pilares desta atmosfera. Meio religão, meio filosofia, trata, basicamente, da comunhão do indivíduo com a natureza. O Sumô surgiu como um ritual xintoísta, oração por boas colheitas. No presente, a modalidade dita profissional, exclusiva do Japão, mantém a teatralidade de séculos. Antes do combate, os sumotoris bebem água e lançam sal no chão de argila batida para purificação. O dohyo, há meio metro de altura, demarcado por um círculo de 20 sacos de arroz, ou 4,55 metros, de diâmetro é lugar sagrado. Poucos têm a honra de sentirem sua dureza na sola dos pés.
De frente ao adversário, cada lutador estende os braços e bate suas palmas, para chamar a atenção dos Deuses. Depois, apoiam as mão sobre as coxas e aguardam. Olhos nos olhos. O árbitro, gyoji, dá o sinal. Os punhos fechados encostam no chão e os corpos se chocam violentamente. As lutas, quando muito, duram mais de um minuto. Tocar outra parte do corpo, que não os pés, no piso, ou ultrapassar a linha do dohyo, traz a derrota. Quem perde deixa o círculo antes, enquanto o vencedor permanece agachado, à espera do anúncio de sua vitória.
O estado de São Paulo abriga a segunda maior concentração de descendentes japoneses fora Japão. Entre suas várias colônias, o Sumô resiste. O bairro do Bom Retiro, na capital paulista, abriga um dohyo aos moldes tradicionais. Todos os fins de semana, pessoas de diversas idades vestem seus mawashis e treinam o esporte milenar. Luciana Watanabe, 31, é uma delas. “Já fui para 14 países pelo Sumô”, diz com o entusiasmo de quem treina desde os 15 anos e foi vice-campeã mundial em 2013. A atleta é professora na cidade de Suzano, interior de São Paulo, onde criou e coordena um projeto de incentivo ao esporte nas escolas municipais. As crianças do 1º ao 5º ano podem praticar no contra-turno escolar. Em 2016, Watanabe conta que chegaram a ter 80 alunos. “A prefeitura fornece os tatames e o espaço; os pais ajudam bastante também”.
Corina, 12, e a irmã, Letícia, 14, conheceram o esporte por meio do projeto. Hoje, treinam no ginásio em São Paulo. Letícia conseguiu o terceiro lugar no campeonato brasileiro em 2014. “Foi o primeiro esporte que pratiquei. Gosto muito, aprendi a manter a persistência”, conta animada. Para Luciana a luta ensinou-lhe tanto habilidade pessoais quanto sociais. “Gosto do Sumô por ser uma luta dinâmica e pelo senso de comunidade envolvido. O esporte me ensinou a ter iniciativa e ser paciente”.
Outra veterana, Fernanda Pelegrini, 31, dos quais 10 foram dedicados ao Sumô, destaca como a luta lhe proporciona maior domínio corporal, “ você precisa estar de corpo e alma no combate”. No currículo de Pelegrini consta o terceiro lugar no mundial de equipes e o terceiro no mundial de veteranos. Quando questionada sobre o preconceito por ser mulher, ela conta que no mundo do Sumô não se sente discriminada, “treinamos juntos, homens e mulheres. Todos somos atletas”. Fernanda comentou, ainda, que agora as pessoas são mais receptivas ao esporte, em contraste com representações ridicularizantes de outros tempos, “hoje eu percebo que muitos veem com curiosidade os treinos, mais do que preconceito”.
Foi com essa curiosidade que o primo de Fernanda, David, começou a frequentar o ginásio do Bom Retiro. “Antes eu pensava que era um esporte para pessoas gordas, mas eles fazem muitas flexões e alongamentos. São muito fortes!”, diz o estudante, de 19 anos e 66kg, o olhar atento em Rui, 22, e 150kg. O universitário de educação física se exercita ao redor do dohyo, sob a supervisão austera do sensei Kyoshi. “Estou tentando ir para o profissional. O problema é que as academias estão diminuindo o número de estrangeiros”, comenta ofegante.
Esta é uma questão delicada para os japoneses. O Sumô, como todo esporte, tem as divisões profissional e a amadora. No entanto, a amadora seria considerada profissional caso se tratasse de outro esporte. É nela que acontecem os campeonatos nacionais, continentais e mundiais. O profissional, propriamente dito, só ocorre no Japão. Esta é a categoria em que o lastro da tradição se ostenta. Nela não participam mulheres, os torneios ocorrem seis vezes ao ano, em meses ímpares. Para competir entre eles, é preciso, antes, se filiar a uma academia, a etapa que preocupa Rui.
Há uma aura espartana para se tornar um lutador profissional. Uma vez filiado à uma academia, a rotina do sumotori é intensa. Antes de se tornar um sekitori, não recebe salário, é concedido-lhe apenas abrigo e alimentação. Ele serve os lutadores mais velhos, faz a limpeza dos quartos, lava a roupa, cozinha e serve as porções do chankonabe, o prato típico dos lutadores de Sumô. É também o mais exigido nos treinos; a tradição faz da dor o caminho para fortalecer o espírito. Quando se alcança a categoria de juryo, o lutador passa a receber salário. A próxima etapa é ser promovido a makuuchi. Esta classe é composta por 42 atletas, que lutam as seis vezes ao ano. 15 lutas em 15 dias. Se o lutador obter um saldo positivo entre vitórias e derrotas, ele sobe de categoria, caso contrário é rebaixado. Depois de se tornar um ozeki, se o sumotori vencer dois campeonatos seguidos, recebe o título de yokozuna. Tal façanha é tão difícil que, em mais de 300 anos de existência, houve apenas 71 campeões dos campeões.
Desde 1999 não há um yokozuna japonês. O primeiro estrangeiro que alcançou o topo do esporte foi o havaiano Musashimaru Koyo, posteriormente, os lutadores da Mongólia monopolizaram a categoria. Isto impõe um dilema aos japoneses. A baixa taxa de natalidade do país reflete no número decrescente de novos aspirantes a yokozuna. Ao mesmo tempo, muitos são resistentes a ver esta manifestação cultural protagonizada por estrangeiros, gaijins.Vale mais deixar o esporte minguar a mantê-lo pela presença de outras nacionalidades? A sobreposição de tempos costuma ser impiedosa com certas convenções.