Quando o usuário escolhe um personagem no game, ele leva em consideração a dança que o seu avatar está fazendo? No mundo corporativo dos jogos, esse questionamento é relevante: empresas, como a Epic Games, colocam as danças sociais do momento, tal qual Milly Rock, The Floss Dance e The Carlton Dance, para atrair seus jogadores e ganhar um retorno financeiro. Os emotes mais aprimorados têm esses movimentos, que devem ser pagos para se obter no jogo.
Para quem está apenas nesse universo de games, é indiferente se os criadores dessas coreografias são pagos ou não. No entanto, a comunidade da dança contesta essas empresas que não dividem com os artistas o lucro que têm com os emotes dançantes.
O que são danças/passos sociais e como elas viralizam?
Os passos sociais são um combo pequeno de movimentos, que é fácil para muitas pessoas aprenderem e dançarem. Existem passos sociais em todas as danças, desde o hip hop com o robocop até o sabará do funk. Cada comunidade tem seus passos sociais para serem reproduzidos e/ou sofrerem variações em coreografias e improvisos – os famosos freestyles. Em baladas e festas, as pessoas dançavam esses passos sociais de forma que todos pudessem curtir as músicas, esses eventos foram os responsáveis pelo nome dado à atividade.
Na história da dança, já tiveram muitos passos sociais popularizados, a valsa é um exemplo antigo, mas a diversidade das danças sociais se deu com as comunidades afro-americanas. Quando os afro-americanos foram trazidos e escravizados, proibiram-se os tambores, assim, a comunidade aprendeu a fazer as batidas com o próprio corpo. Depois da emancipação, essa noção de batidas com o corpo deu origem ao famoso charleston, uma dança batizada com o nome da cidade onde foi inventada pelos americanos negros nos anos 1920. Posteriormente, vieram outras danças como o twist, originalmente da música de Hank Ballard and The Midnighters.
Nas danças urbanas, os passos sociais são fundamentais para conhecer a história das danças e desenvolver novas habilidades na área. O programa Soul Train (CBS, 1971 – 2006), por exemplo, firmou alguns passos sociais como The Funky Chicken, Popping, The Robbot e o famoso The Soul Train line. Voltado para pessoas negras, foi o programa americano dos anos 70 que ficou mais tempo no ar. Nos anos 90, vieram outras danças de clipes como Beat It de Michael Jackson, U Can’t Touch This de MC Hammer, The Humpty Dance de Digital Underground, a famosa Macarena e assim por diante. Já nos anos 2000, os passos sociais do hip hop ficaram mais conhecidos pela geração atual, como o dougie e o nae nae. Importante salientar que a denominação “danças urbanas” não é mais aceita pela comunidade dessa modalidade de dança e há discussões de um termo mais adequado aos dias de hoje.
A viralização dessas danças se dá de diferentes formas em cada época. No período da valsa, os passos foram disseminados pelas navegações de Napoleão. Já o charleston ficou conhecido por vídeos e músicas gravados no século XX, o que facilitava a apresentação da dança em outros lugares. Com o surgimento da televisão, os canais CBS e MTV tornaram-se famosos por apresentar conteúdo sobre música e dança. A internet colaborou com a disseminação das coreografias, principalmente pelo Youtube, que permitiu que qualquer pessoa pudesse compartilhar um vídeo de dança gratuitamente.
A universalidade da dança fez com que as empresas ganhassem sobre esse bem cultural sem se preocuparem com a questão de direitos autorais. Antes, os passos sociais não eram alvo de propaganda e publicidade das empresas, já que tinham raízes africanas e afro-americanas, o que não era agradável aos olhos dos grupos corporativos formados por brancos. A partir da viralização e da aceitação dessas danças, entre adolescentes brancos, as coreografias foram vistas como produto de atração do público. “Em vez de colocar uma mulher preta para falar sobre cultura preta, é muito mais fácil colocar uma pessoa branca dentro de um lugar que foi criado para uma pessoa preta, para aquilo ser rentável de alguma forma”, exemplifica Flávia Lima, bailarina e coreógrafa de Gloria Groove.
Não só em consequência da globalização e da tecnologia, as contestações sobre a cópia das danças vieram à tona também a partir da conscientização social e dos movimentos negros, como o Black Lives Matter – em tradução livre: “vidas negras importam” -, que criticam a apropriação da cultura negra sem a devida credibilização e a divisão de lucros com a comunidade explorada.
The Carlton Dance, Milly Rock e The Floss Dance
The Carlton Dance foi desenvolvida por Alfonso Ribeiro, ator de Um Maluco no Pedaço (The Fresh Prince Of Bel-Air, 1990 -1996) , uma série no formato de sitcom que ficou muito conhecida pela participação de Will Smith. Segundo Afonso para a Variety, a dança foi criada durante a sua atuação como Carlton Banks na série. A coreografia foi reproduzida sem permissão do ator em emotes do Fortnite e do NBA 2K16, jogos eletrônicos multiplayer online famosos entre os adolescentes. Assim, o estadunidense processou a empresa Epic Games, produtora do Fortnite, e a NBA 2K alegando que não obteve os créditos pela dança.
A ação judicial se dá em duas esferas: a nomeação do emote como Fresh em Fortnite e a dança do personagem Carlton. Esses dois fatores revelam a intenção da Epic e da NBA 2K em induzir uma conexão direta entre: a compra no jogo e o show em que a dança começou, por isso, o ator processou. No entanto, Afonso teve seu pedido para registrar a dança negado pelo US Copyright Office, órgão responsável pelas patentes dos Estados Unidos. Para a associação, os movimentos são muito simples e não podem ser considerados uma coreografia para ser registrada com direitos autorais – nos Estados Unidos, o registro de direito autoral é considerado apenas para coreografias como os repertórios de ballet.
O caso do Milly Rock foi semelhante: o rapper Terrence “2 Milly” Ferguson acusou a desenvolvedora de jogos de copiar, em Fortnite, a dança que faz em seu clipe Milly Rock. O emote Swipe It realiza uma sequência de movimentos iguais aos do clipe, além de ser um movimento comprado, o que levanta a questão do uso de direitos da dança para fins comerciais.
No caso de 2 Milly, há um conflito maior por envolver, segundo os advogados do rapper, um registro audiovisual de um passo coreografado, o que pode ser protegido sob copyright. Ainda assim, o conceito de transformar um passo de dança em uma coreografia ainda é subjetivo e amplo. A Epic está recorrendo legalmente pela ação e o processo ainda está em andamento.
Um último caso e mais recente foi o processo pela dança The Floss Dance, reproduzida por Russel Horning, também conhecido como Backpack Kid. A dança viralizou em 2017, quando apareceu, no Youtube, um vídeo dele dançando, que chegou a celebridades como Katy Perry – ele participou da apresentação da cantora no programa Saturday Night Live em sua música Swish Swish. No mesmo ano da viralização da dança, o Fortnite incluiu como um de seus primeiros emotes com o mesmo nome dado por Horning. O estadunidense tinha 17 anos na época, então sua mãe processou em seu nome. Assim como no caso de Afonso, em 2019, Horning desistiu do processo por não receber aval de direitos autorais pelo US Copyright Office. Ainda assim, o menino recebeu um retorno financeiro como Backpack Kid em publicidades nas mídias sociais.
Caso Kyle Hanagami X Fortnite
Esse é o caso com maior alcance jurídico entre os outros processos mencionados. Kyle Hanagami é um dançarino dos Estados Unidos que atua como professor e coreógrafo. Já coreografou muitos artistas, como BlackPink, Dove Cameron, Now United, Ariana Grande e Charli XCX. Também trabalhou como diretor coreográfico em A Caminho Da Lua (2020), animação da Netflix.
Kyle tem um canal no Youtube em que publica suas danças em aulas e seus trabalhos com outros artistas. Em novembro de 2017, ele publicou a sua coreografia sobre a música How Long de Charlie Puth. Em março de 2022, o artista processa Fortnite por ter roubado uma parte de seus passos e colocado no emote It’s Complicated sem consentimento de Kyle.
Os advogados do estadunidense criaram um vídeo de comparação entre a coreografia e a dança realizada pelo emote. No entanto, após 6 meses, o juiz distrital da Califórnia rejeitou o processo, alegando que as obras não compartilham elementos criativos suficientes para que o emote de Fortnite constitua uma violação.
Copiar uma dança para fins comerciais é ilegal?
Apesar de diferentes danças e passos sociais, todos os casos seguiram pelo mesmo caminho de busca pelos direitos autorais. O processo de Kyle pode ter sido o mais sólido, já que envolvia uma coreografia registrada e patenteada. Ainda assim, o Fortnite e outros games continuam se apropriando das danças sem a divisão do lucro com os criadores e precursores delas.
Mas copiar uma dança para fins comerciais é ilegal? Considerando que os casos mencionados respondem pela legislação estadunidense, as leis de direitos autorais dos Estados Unidos não consideram danças e passos sociais como algo passível de patenteação, apenas coreografias.
Caco Aniceto, bailarino da drag queen Gloria Groove, associa o passo social a uma palavra, que pode ser usada em diferentes frases, as quais, nessa associação, representam as coreografias. O passo social é um movimento que se repete e que não se sabe a autoria exata da dança. Por isso, a avaliação criativa considera majoritariamente a coreografia em detrimento do passo social.
Segundo o US Copyright Office, coreografias são a composição e arranjo de uma série relacionada de movimentos de dança e padrões organizados em um todo coerente. Ainda de acordo com o escritório, são elementos comuns das coreografias: movimentos rítmicos de um ou mais dançarinos em uma sequência e ambiente definidos; uma série de passos ou padrões de dança organizados em um todo coerente, integrado e expressivo; uma história, tema ou composição abstrata transmitida através do movimento; uma apresentação perante uma audiência; uma performance desempenhada por indivíduos habilidosos e um acompanhamento textual ou musical.
Ana Claudia Zandomenighi, advogada especializada em Direitos Autorais no meio da cultura, explica a diferenciação entre a legislação brasileira e estadunidense: “No Brasil, não só a obra é protegida, como o autor também, visto que temos uma ampla defesa dos direitos morais do criador. Já os Estados Unidos, que adota o copyright, não considera amplamente o artista, mas sim a priorização da parte financeira gerada pela obra.” Segundo Ana, para eles é mais simples pagar uma taxa diretamente à administradora da obra do que enfrentar a burocracia extensa e completa com as editoras para obter a autorização de uso.
Para obter a proteção sob copyright, o autor deve fixar a obra em algum suporte/meio que servirá para identificar a autoria a partir do detalhamento dos movimentos e de demais componentes. Pode ser por anotações, vídeos, descrições textuais, fotografias, desenhos, dentre outros.
Como comenta Ana, a dificuldade em registrar uma dança e até mesmo uma coreografia está relacionada à desatualização das leis e a necessidade de adaptar às circunstâncias atuais na legislação. A dançarina Flávia Lima acrescenta que: “Com advento da internet e com as coreografias ganhando um patamar tão forte, assim como qualquer tipo de arte, há a necessidade urgente de modernizar a nossa lei”. A coreógrafa também menciona o sindicato ultrapassado, que não acompanha o comércio e que possui uma bancada pouco representativa diante das variadas modalidades na dança.
O cenário da dança nos Estados Unidos é bem diferente do Brasil: enquanto eles têm agências de dançarinos, assim como agências de modelos, os brasileiros precisam trabalhar como freelancers para continuar no ramo da dança. Nem todos têm um trabalho fixo como coreógrafo de um artista – há dançarinos que trabalham informalmente para desenvolver a sua dança focada nos freestyles, que não tem tanta atenção da área comercial.
Caco comenta que o sucateamento dos artistas é muito evidente e compara com o trabalho em Tecnologia da Informação (TI), em que ele se formou: “Enquanto a pessoa que fez a faculdade de TI cobra um valor médio para o trabalho, algum menino de 12 anos, por exemplo, que, com a ajuda de plataformas simples que disseminam informações de forma prática e rápida, consegue a oportunidade de trabalho por um preço abaixo do mercado”. Esse cenário prejudica os artistas, que estudam por muito tempo para realizarem seus trabalhos, por serem substituídos por influencers ou outras pessoas que não fazem parte do meio artístico.
Esses casos enaltecem o tratamento da dança como algo universal e gratuito, invalidando o trabalho de inúmeros artistas. “Eles querem ter aquilo dentro do seu projeto, mas não querem ter nenhum tipo de custo. Aí vem a falta de respeito com o trabalho de um profissional da área”, ressalta Flávia.
A autenticação do trabalho dos dançarinos já é invalidada quando se emite uma nota fiscal. Caco Aniceto é empreendedor e criador do Caco Class, uma plataforma de aulas de dança para todos que buscam flexibilidade com tempo e espaço. O bailarino comenta que, quando vai emitir a nota, sofre dificuldades por não ter uma categoria que o classifique como dançarino ou coreógrafo no sistema, precisando procurar por sub funções para emiti-la. “Acho que o caminho ideal seria colocar a dança dentro da lei, mas só vai acontecer no dia que entrarmos na política e começarmos a defender os nossos, porque ainda é muito informal”, explica o empreendedor.
Um dos obstáculos apontados tanto por Ana quanto por Caco é o pouco preparo do artista para lidar com questões legislativas. Caco enxerga que a conscientização entre dançarinos pode ser feita pela própria comunidade artística, para que saibam como reagir a essas situações. Já Ana comenta que: “O direito autoral alcança muito menos gente, porque o artista vem de qualquer lugar e artistas, em geral, querem saber do processo criativo de ganhar dinheiro com internet, mas a burocracia que envolve o direito autoral sequer passa pela cabeça deles”.
Alternativas para melhorar a defesa da propriedade intelectual dos dançarinos
Para lidar com essa mentalidade empresarial de gratuidade da dança, Ana sugere que as leis, como a Lei Rouanet, sejam mais divulgadas. Ela explica que a dificuldade dos dançarinos de obterem seus direitos autorais pode ser maior se for deixado de lado. “Ser obrigatório já ajudaria”, comenta a advogada sobre a conscientização dos documentos de direitos autorais.
Um sindicato mais ativo aparenta ser necessário para o atual cenário e Caco acredita que esse posicionamento em conjunto pode melhorar a valorização dos dançarinos. Junto ao sindicato, o empreendedor sugere que os créditos sejam dados às referências obtidas para colocar a dança nos emotes, assim como o Spotify, plataforma de música, coloca um botão para mostrar os artistas e os nomes da produção. “Ter o seu nome num dos maiores games do mundo é muita coisa, é melhor do que nada”, comenta sobre a importância das referências.
Caco explica que a comunidade artística precisa estar mais atenta e mais colaborativa para que os dançarinos não sejam explorados e tenham seus direitos garantidos: “Falar sobre essas coisas para que nós, como comunidade, fiquemos mais atentos e para que comecemos a tomar a frente politicamente, ter isso como uma pauta. Assim, conseguiremos nos proteger mais e proteger os nossos direitos”.