“Nós fizemos tudo errado, tecnicamente… a única coisa que nós fizemos de certo foi reunir um grupo de pessoas que eram jovens, cheias de vida, e que queriam fazer algo de significado” – John Cassavetes em entrevista sobre Sombras (Shadows, 1959), filme que fundaria o cinema independente americano.
No final dos anos 50, François Truffaut e Jean-Luc Godard encabeçavam uma revolução nunca antes vista no cinema: a Nouvelle Vague. Dentre inúmeras quebras de linguagem e inovações estilísticas, o movimento buscava romper com o escapismo hollywoodiano, trazendo política, transgressão e, principalmente, espontaneidade às telas parisienses. Mesmo não sendo a primeira das vanguardas, a Nouvelle Vague foi a que mais inspirou cineastas do mundo inteiro a revitalizarem estéticas conservadoras que já não diziam respeito aos jovens da época. Dentre elas, a que provavelmente mais impactou as estruturas da indústria foi a do próprio Estados Unidos, aproximadamente dez anos depois, a chamada Nova Hollywood.
Num período de extrema efervescência cultural, sexual e política, em que, embalados por The Doors e Jimi Hendrix, os jovens da época chacoalhavam as bases do país, era frustrante que a talvez arte de maior disseminação ainda fosse controlada por senhores de 80 anos e valores anacrônicos a toda a explosão do momento. Contradizendo todos os antigos preceitos, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola são somente algumas das crias bastardas da Guerra do Vietnã, da paranoia comunista e dos bons modos cristãos. Dialogando diretamente com essa pulsante geração, filmes como O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), Apocalypse Now (1979) e Touro Indomável (Raging Bull, 1980) acompanhavam dramas grandiosos, que de forte aspecto transgressor, ganhavam grande apreciação dos jovens e respeito no meio artístico. Por outro lado, são poucos os que conhecem o nome de John Cassavetes e sua importância imprescindível para o surgimento de títulos cult posteriores, como Pulp Fiction – Tempos de Violência (Pulp Fiction, 1994), de Quentin Tarantino, Amnésia (Memento, 2000), de Christopher Nolan e Donnie Darko (2001), de Richard Kelly.
Nascido em nove de dezembro de 1929, em Nova York, John Nicholas Cassavetes formou-se na Academia Americana de Artes Dramáticas, onde também conheceu sua atriz favorita e esposa, Gena Rowlands. Iniciou sua carreira atuando em diversas séries de TV e filmes, como O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) e Os Doze Condenados (The Dirty Dozen, 1967). Cassavetes também era conhecido por financiar e dirigir filmes autorais, com o dinheiro que conseguia das produções de estúdio. Economizando em tudo que podia, seus filmes ganhavam maior naturalidade e imersão ao serem interpretados pelos próprios amigos e parentes. Com uma linguagem bastante documental, o diretor concebeu obras de imenso prestígio entre a crítica, sendo muitas vezes considerado um outsider dentro do sistema hollywoodiano e um autor underground, que se assemelhava mais à sensibilidade europeia dos franceses do que a dos conterrâneos americanos da Nova Hollywood; a começar pelos seus temas…
Diferentemente de Coppola ou Scorsese, Cassavetes retratava pequenos dramas. Em outras palavras, nenhuma de suas histórias dizia respeito a maior família do submundo, ao batalhão suicida de resgate em meio a Guerra do Vietnã ou ao campeão de peso médio do boxe. Elas eram povoadas por personagens reais em situações reais. Afinal, que maior drama senão aquele de todo dia: os relacionamentos e amizades. Uma cena de perda de virgindade, como a de Sombras, tinha muito mais significado por não ser explosiva, apaixonada e romântica, mas sincera e insegura. Essa espontaneidade o aproxima muito dos franceses, que muitas vezes preferiam a emoção à narrativa. Em contrapartida, ele também se distanciava dos europeus por pouco dialogar em seus filmes com o contexto político, preferindo mais uma vez a emoção à ideologia. “A vida são homens e mulheres. A vida não é política. Políticos são somente maus atores procurando poder. Essas pessoas e esses pequenos sentimentos são a força política maior que existe”.
Mesmo produzindo seus filmes mais importantes durante os anos da Nova Hollywood (1969-80), é notável destacar que seu primeiro trabalho ocorra quase dez anos antes, junto ao lançamento de Os Incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959), de Truffaut e Acossado (À bout de souffle, 1960), de Godard, patronos de toda essa revolução. Sombras, seu filme de estreia, conta então os desenlaces amorosos e de amizade nas relações interraciais da geração beat nova-iorquina dos anos 50. Improvisado em diversos momentos, a falta de recursos implicava em falas dessincronizadas das imagens, barulhos da rua se sobrepondo aos diálogos, cortes bruscos, iluminação escassa e enquadramentos fora de foco. Essa quebra de linguagem, por outro lado, criou uma aura que reforçou a autenticidade da vida real no filme. E se ainda considerarmos que a versão consagrada possui um maior primor técnico e uma melhor estruturação do roteiro do que a que Cassavetes havia inicialmente exibido, é de se imaginar o furor que a obra gerou no meio crítico e de produção da época. O próprio Scorsese comentaria quando já famoso que a partir daquele momento não havia mais desculpas: “Se ele podia fazer isso, nós também podíamos”.
Diante do sucesso de Sombras, Cassavetes seria convidado a dirigir dois filmes de estúdio, Canção da Esperança (Too Late Blues, 1961) e Minha Esperança é Você (A Child is Waiting, 1963), onde teria a oportunidade de trabalhar frente a grandes nomes do cinema, como Burt Lancaster e Judy Garland. Decepcionado, no entanto, com o controle mínimo que tinha sobre a produção, Cassavetes decidiria nunca mais delegá-la a ninguém menos que ele próprio, com exceção de seu último filme, Um Grande Problema (The Big Trouble, 1986), em que já se encontrava debilitado por um problema de cirrose.
(1) Um senhor quase idoso abandona sua esposa por uma mulher mais jovem. Desolada com isso, ela decide fazer o mesmo com o marido numa estória envolvendo os esforços de se encontrar amor no outro. (2) Com a morte súbita de um grande companheiro, três amigos de meia-idade, já casados e com seus filhos, fogem para se divertir e beber, enquanto reconsideram suas posições na vida. (3) Sofrendo de depressão e com o marido sempre preso ao trabalho, uma mulher de meia-idade se esforça exageradamente em ser amada por todos ao seu redor. (4) Após receber um papel de uma personagem de meia-idade, uma atriz de teatro famosa começará a se isolar na bebida enquanto tenta afastar suas inseguranças pessoais. Como é possível perceber pelas sinopses de (1) Faces (1968), (2) Os Maridos (Husbands, 1970), (3) Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974) e (4) Noite de Estreia (Opening Night, 1980), os principais temas de Cassavetes começam a se mostrar mais aparentes: a insegurança dos relacionamentos, o medo da velhice e a busca da felicidade.
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu em algum momento que seu parceiro parecia não amar a você de verdade? Em diversas situações como essas, a pessoa referida na verdade a amava muito, o problema foi ela não ter conseguido expressar isso da melhor forma. Mas que forma seria essa? São exatamente essas tentativas e esforços que Cassavetes tentará capturar em seus filmes. Nas palavras do grande crítico de cinema americano, Roger Ebert, “são filmes com grande pavor do silêncio; as personagens falam, brigam, fazem graça, cantam, admitem, acusam. Elas precisam de amor desesperadamente, mas são ruins em fornecer e ainda piores em recebê-lo; mas, Deus, como elas tentam”.
O talvez maior exemplo disso se encontra em sua obra máxima, Uma Mulher Sob Influência, em que em determinado momento, para agradar os colegas de trabalho do marido, a hospitalidade da protagonista é tão intrusiva, que aquele se irrita com ela em frente a todos, levando os amigos a se retirarem. Ajudado também pelos enquadramentos fechados nos rostos das personagens, os dramas pessoais tornam-se ainda mais claustrofóbicos e tensos. Somos levados a entrar no psicológico de cada relacionamento e nos defrontar com as inseguranças mais mesquinhas. Será que a mulher do título está sob influência do marido, da idade, da sociedade, ou quem sabe não estamos todos sob a influência de não podermos nos comunicar com o outro e expressar de forma empática nossos sentimentos e angústias mais profundas?
A cena final de vários de seus filmes presume uma reconciliação tumultuosa. Em Os Maridos, a última cena é a de um dos maridos retornando à mulher e seus filhos. Noite de Estreia acaba com a redenção da atriz e os elogios calorosos do elenco e do público. Os protagonistas de Uma Mulher Sob Influência, após dias de grandes discussões, preparam-se para dormir, arrumando juntos a cama. Pensando num primeiro momento, parece incongruente que os filmes acabem assim, mas após digerirmos melhor a obra percebemos a genialidade de Cassavetes. O amor não é somente feito de rosas, chocolates e noites de entrega, ele também pressupõe brigas, faltas, e acima de tudo, aceitação da imperfeição, ou em outras palavras, da humanidade do outro. A intimidade machuca, mas nos torna mais fortes e compartilha também maravilhosos momentos de harmonia.
Não à toa as personagens que deixam sua realidade de lado para procurar uma falsa satisfação se dão conta em algum momento do vazio de seus prazeres, de que é necessário retornar à realidade, e de que mesmo infelizes, loucos ou frustrados, não será dessa forma que eles superariam seus problemas. Mas como então? Todos nós queremos soluções rápidas, afinal, a morte logo bate à porta. A velhice parece assim ser a voz de que muito ainda precisa ser vivido. Por que outro motivo então os três amigos de Os Maridos largariam tudo a que sempre se orgulhavam? Ou uma atriz de respeito não conseguir decorar seus diálogos por temer estar ultrapassada, em Noite de Estreia (nesse filme em específico, é impressionante como o vermelho predomina nos quadros, como se fosse a expressão imagética da velhice que a assombra)? Nas palavras de Ebert mais uma vez, “ele nos dá personagens que estão claramente ruindo por dentro e os manda vagar loucamente em busca de reparações rápidas e Band-Aids”. Todavia, nada é resolvido num piscar de olhos quando se trata do psicológico humano, e seus personagens, assim como muitas vezes nós mesmos, não dão conta disto. É exatamente esta desilusão que será capturada em seus filmes: a miséria humana e a tentativa de achar no outro o pedaço que nos falta.
“Seja você mesma!”, grita o protagonista de Uma Mulher Sob Influência para sua esposa. Mas o que seria ser ela mesma? Se o jeito de determinada pessoa é o de agradar as demais, ela não estaria sendo ela mesma? Somos podados, podamos e, o pior de tudo, nos podamos constantemente. Aqui deflagramos então o mal de se viver em sociedade, o ser (verbo). Mesmo quando apenas somos, como as duas figuras loucas de seu último grande filme, Amantes (Love Streams, 1984), devemos satisfação a um outro alguém (ex-companheiros, maridos, amigos, filhos), o que acaba podando o nosso ser. Por outro lado, como dito acima, se isolar também não é a saída, já que o vazio se mostra ainda pior do que a vida em comunhão. Como proceder então? Essa é a grande dúvida das obras de Cassavetes, enquanto isso, apenas vivemos um dia após o outro.
Além de ter concorrido duas vezes ao Oscar, pelo roteiro de Faces e direção de Uma Mulher Sob Influência, Cassavetes é também conhecido por formar junto a Rowlands um dos casais de maior sucesso do cinema, assinando dez filmes juntos, sendo sete deles de direção do marido. Mesmo Rowlands roubando a cena em seus papéis vistosos e complexos, Cassavetes é por vezes vezes criticado (de forma justa) pelo machismo de suas personagens. Sua revolução, no entanto, foi outra.
Louvado pela vanguarda francesa por sua inventividade estilística (em uma das cenas iniciais de Noite de Estreia, a peça de teatro é observada cortada como se de fato estivéssemos na posição de um espectador da plateia), ritmo naturalista (a cena mais tensa de Uma Mulher Sob Influência acontece sem trilha alguma, com um foco oscilante que dialoga com a própria instabilidade da protagonista) e espontaneidade de atuação (filmando longuíssimas cenas, os atores tinham mais tempo para compor suas personagens, como os mais de dez minutos de uma de bar em Os Maridos), os dramas de Cassavetes eram os dramas de uma geração. Dramas esses que, por contradizerem o American Way of Life, nunca eram transpostos à tela. Dramas esses que diziam respeito aos franceses, à Nova Hollywood, ao cinema independente dos anos seguintes, aos cinéfilos e à todas as pessoas desse planeta. Dramas esses que se pautavam no ser, verbo, e no ser, substantivo. De mestre a mestre, a grande dúvida de Cassavetes já havia então sido proferida há muitos séculos antes: “ser ou não ser, eis a questão…”
Assim Fala o Amor (Minnie and Moskowitz, 1971), A Morte de um Bookmaker Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e (o horroroso) Gloria (1980) também são de direção de Cassavetes.
por Natan Novelli Tu
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