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(Não) Tá Tudo Certo: Indústria musical na era pós-gravadoras

Desenvolvimento tecnológico e dificuldades empresariais influenciaram o domínio das plataformas de streaming, a crise das gravadoras e a busca de artistas por carreiras independentes
Por Sarah Kelly (sarahkelly@usp.br)

A recente série brasileira lançada no Disney Plus Tá Tudo Certo (2023), interpretada por jovens da música brasileira, retrata a vida de uma cantora independente que teve sucesso na carreira graças à internet e seu romance com o estagiário de uma gravadora que sonha em ser uma estrela da música. O diretor e idealizador da produção, Felipe Simas, pontuou, em entrevista ao Estadão, que o foco da minissérie é o declínio das grandes gravadoras e a ascensão de artistas independentes. Além de propor reflexões sobre sonhos e o conceito de sucesso, Tá Tudo Certo levanta dúvidas sobre os limites entre realidade e ficção ao representar o atual cenário da indústria musical brasileira. 

A série é classificada  como uma autoficção: seus personagens carregam mesmo nome e características dos atores, a exemplo dos protagonistas Ana Caetano e Pedro Calais [Imagem: Reprodução/ Divulgação Disney+]

Afinal, a crise das gravadoras se limita à ficção? A sequência de acontecimentos históricos que proporcionaram essa situação, além de recentes casos de artistas, como Anitta, que tiveram sérios problemas com suas gravadoras, mostram que esse modelo de negócio está em colapso. 

A revolução e a decadência das gravadoras

A música popular como a conhecemos surge com os meios de gravação, explica o professor doutor Eduardo Vicente, especialista em indústria fonográfica. A sobrevivência da cultura musical, que até então dependia da tradição oral, é revolucionada no Brasil e na América do Sul em 1902, com a chegada da primeira gravadora, a Casa Edison. Na década de 20, com a transição de uma fase mecânica — em que o gramofone movido a corda era necessário para a tocagem de discos — para a fase elétrica, mais gravadoras chegam ao Brasil, consolidando uma indústria musical.  No período pós-Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento foi ainda maior, pois a juventude passou a ser o principal público consumidor de músicas e a indústria adaptou suas tendências para essa mudança. O professor esclarece que, a partir desse momento, é possível perceber uma dinâmica de oposição entre as grandes gravadoras internacionais, chamadas de majors, e as gravadoras independentes e nacionais, também conhecidas como indies, normalmente ligadas a gêneros musicais específicos.

Antes de se tornar uma casa gravadora, a Casa Edison importava e vendia artigos fonográficos, marcando o início da indústria no país [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]

O marco do declínio das gravadoras é a perda de controle do desenvolvimento tecnológico. O professor Eduardo elucida que no pós-guerra surgiram os LPS (Long Playing Record) que substituíram os discos de 78 rpms, que comportam apenas uma música de cada lado, por uma tecnologia que suportava várias músicas com maior qualidade. Em seguida, nos anos 60, é desenvolvida a fita-cassete, depois o walkman, que permitia ao usuário ouvir músicas andando em qualquer lugar, com seus fones de ouvido. Nos anos 80 surge o CD, primeira mídia digital de música. 

A partir da segunda metade dos anos 90, esse cenário passa por uma transformação com o surgimento do MP3, dos computadores e dos gravadores domésticos de CD. Com o formato MP3 — muito mais leve que os anteriores —, e a internet, as músicas ampliaram sua capacidade de circulação. O monopólio das gravadoras sobre a distribuição, produção e promoção das músicas chegou ao fim.  “A indústria de gravadoras progrediu no último século porque controlava não só os direitos de edição e as gravações das músicas mas também a forma como essa música era prensada e distribuída”, conta o professor. Embora elas ainda desempenhem um papel importante na indústria da música hoje em dia, a ascensão da tecnologia digital e da internet mudou significativamente o modelo de negócios.

O professor Eduardo Vicente acrescenta que atualmente o lucro das gravadoras depende de plataformas como o Spotify, o TikTok e o YouTube: “Hoje as gravadoras não estão sozinhas nesse jogo. Elas enfraqueceram, algumas delas foram absorvidas por outras empresas, mas é lógico que ainda existe uma grande indústria por trás da música”.

O conceito de independência na música

Até os anos 70, o que se conhecia como música independente ou indie era limitado e absorvido pelo exponente crescimento das indústrias, que não abria espaço para autonomia. Em seu artigo “A Música Independente no Brasil: Uma Reflexão”, o professor Eduardo Vicente explica que, na década de 80, a crise econômica no país resultou em uma maior seletividade das gravadoras e redução de artistas não alinhados com sua lógica de mercado. Como resultado, uma cena independente emergiu como um espaço de resistência cultural e política e como única opção de acesso ao mercado para muitos artistas.

Nesse contexto, o que surge é “uma música que se pretende diferente, mais autoral, menos comercial, que se contrapõe ao mainstream”, declara o professor. As grandes gravadoras produziam música comercial de alcance massivo, enquanto as gravadoras independentes se dedicavam a um estilo mais autoral, com ênfase em questões artísticas, políticas e sociais. 

Essa definição de música independente, apesar de ainda ser buscada por parte da classe artística, não pode ser aplicada na atualidade, considerando que a maioria da música produzida hoje é independente das gravadoras. “É uma questão de identidade e uma questão de necessidade”, afirma o cantor e compositor Vítor Vital, ao ser questionado sobre o que significa ser um artista independente.  Para ele, por causa do difícil acesso às gravadoras, a produção autônoma é necessária para aqueles que querem trabalhar com música. Por outro lado, é também uma questão identitária por possibilitar o pleno controle sobre o que se produz, promove e distribui, sem interferências externas.

Cantor Vítor Vital em performance em 2019

[Imagem: Reprodução/ Arthur Reys]

Em entrevista, o cantor Marcos Almeida, que já foi filiado à gravadora Som Livre quando fazia parte da banda Palavrantiga e hoje trabalha com o selo independente que criou, faz uma analogia dos músicos autônomos com os artistas artesãos, que possuem controle sobre sua arte. “É um artista que faz o seu colar e a sua miçanga e vende lá na feira. Eu acho que o artista foi feito para a feira”, pontua. Para ele, um ponto positivo é que não há interferência de executivos que tomam decisões sobre as músicas sem qualquer noção de harmonia, melodia ou sem “sentir as dores da sua época”.

Dilemas de liberdade criativa e direitos autorais em gravadoras

Para além da perda de monopólio, casos crescentes de problemas em gravadoras levam a uma possível diminuição na credibilidade desse modelo de negócio. Em abril deste ano, a cantora Anitta rompeu seu contrato com a Warner após 11 anos de parceria.  Antes da separação, as desavenças do relacionamento já estavam expostas pelos desabafos da artista nas redes. Alegando boicote  por parte da gravadora, que impedia o lançamento de suas músicas, a cantora chegou a tuitar que, se fosse possível pagar uma multa para rescindir o contrato, provavelmente já teria leiloado seus órgãos, por mais caro que fosse. A cantora também contou que ouviu da Warner que ela não seria forte o suficiente para fazer sucesso sem um feat na música Envolver,  que foi lançada sem feat e chegou ao Top 1 Global do Spotify em 2022.

Anitta aconselha jovens artistas após problemas com a Warner [Imagem e tradução: Reprodução/ @AnittaBass no Twitter]

No cenário da música brasileira, os dilemas na indústria fonográfica não se restringem a Anitta: alguns nomes como Luísa Sonza, Thiaguinho e Ludmilla já denunciaram impasses e, no caso dos dois primeiros, romperam contratos com a Universal e Som Livre, respectivamente. Fora do Brasil, as queixas dos artistas são semelhantes, pois reclamam sua autonomia e liberdade na hora de produzir suas músicas, além da divisão de lucros e direitos autorais justos após os lançamentos.

O caso de Taylor Swift ficou conhecido e pôs novos artistas em alerta sobre contratos com gravadoras. Em resumo, a cantora decidiu regravar seus seis álbuns produzidos pela Big Machine Label para deter contratualmente o controle sobre o uso de suas gravações originais. Até agora, Taylor já regravou três álbuns anteriores e está programada para regravar seus álbuns Taylor Swift (2006), 1989 (2014) e Reputation (2017), que seguem sob  propriedade de sua ex-gravadora.

Frank Ocean é outro exemplo dessa guerra entre artistas e gravadoras, e, nesse caso, também plataformas de streaming. Desde o início de sua contratação pela Def Jam, da Universal Music, em 2010, Ocean demonstrava estar frustrado com as burocracias que envolviam seu contrato, e chegou a lançar, com samples não autorizados, o álbum Nostalgia, Ultra (2011) em seu perfil do Tumblr

Em 2016, o cantor encontrou uma maneira de se libertar do selo: lançar um álbum independente sem o conhecimento da gravadora. Obrigado por contrato a lançar mais um álbum na Def Jam, estreou Endless (2016), de forma exclusiva na Apple Music. Simultaneamente, negociou de forma sigilosa com a Apple o lançamento independente de Blonde (2016), seu álbum subsequente, que foi registrado por meio de seu próprio selo, nomeado “Boys Don’t Cry”. Sua jogada audaciosa permitiu além do escape dos conflitos com sua antiga gravadora, o controle de suas obras, mas levou ao decreto de que nenhum artista da Universal estaria autorizado a negociar lançamentos exclusivos com serviços de streaming.

Primeiro álbum lançado pelo selo independente de Frank Ocean representou virada na carreira [Imagem: Reprodução/ Spotify]

Em entrevista à Folha Ilustrada, o ex-presidente da Sony Music Alex Schiavo assumiu que há muitos artistas já bem sucedidos, em gravadoras multinacionais, que querem ser independentes para ter controle sobre suas carreiras.  Por outro lado, Schiavo não concorda com a bipolaridade dos debates das redes, que colocam gravadoras sempre como vilãs: “As gravadoras não são demônios. Pelo contrário. Tem muita gente que ama música ali “, alega. “Esse é o tipo de negócio que eles têm, embora eu ache que o mercado realmente esteja muito imediatista. Sobrou pouco espaço para se investir em carreiras de longo prazo”, confessa o executivo.

Os benefícios e desafios da atual indústria musical

O cantor Marcos Almeida alega que o principal ponto da produção autônoma é que “você não tem como culpar ninguém”, como acontece quando há filiação a uma empresa em que muitas pessoas estão envolvidas na produção de músicas. Ao se tornar o principal responsável por sua carreira, o artista começa a tomar consciência dos detalhes que envolvem todos os processos na indústria musical, desde a composição até a promoção das canções. O compositor vê com olhos positivos tal realidade: “Isso é muito saudável, porque passamos daquela época em que existia uma super estrutura para formar um ícone”.  Um exemplo dessa produção autônoma é a carreira da cantora Clairo, dona do hit Sofia, que ficou conhecida após lançar o clipe de Pretty Girl no Youtube, produzido unicamente com a webcam de um computador. “Uma produção como essa jamais seria permitida por uma gravadora”, afirma Sophia Santana, estudante de Publicidade e fã da cantora. O sucesso espontâneo da artista já foi questionado por internautas, que afirmam que ela é uma “cria da indústria”.

A produção lofi atingiu milhões de visualizações 

Por outro lado, Marcos reconhece que, na prática, ainda existem os “vilões” que só viabilizam a música feita de forma comercial: “Você vai ser independente, mas você tem que comer, tem que pagar suas contas. Então você pode cair numa auto-censura muito grande que eu acho que é até pior do que a censura externa”.  Por necessidades básicas da vida, muitos artistas são obrigados a se render ao tipo de música que vende. “Além de perder qualidade, nesse caso também se perde autoridade”, alega o cantor. 

“Me preocupa que as pessoas achem hoje que os acessos estão abertos” conta o professor Eduardo Vicente. “Uma característica importante do capitalismo é a ideia do controle. Se por um lado qualquer pessoa pode ter sua música, pode gravar sua em casa e pode colocá-la no Spotify para ser ouvida no mundo inteiro, por outro não há milhões de artistas fazendo sucesso” relata o professor sobre as dificuldades de inserção no mercado sem uma estrutura de produção. “Para um artista chegar nesse sucesso, ele precisa ter uma série de conhecimentos e, principalmente, um suporte financeiro”, conta.

“Avisa pro rap que eu saí do jogo

Virei madrugada sangrando a caneta

E suando pra cena que aplaude tão pouco…”

Cesar MC, Minha Última Letra

Na busca pelo sucesso, muitos se adaptam ao grande ditador de tendência da atualidade, o TikTok. A rede já chegou a ditar o padrão de tempo das músicas, que estão cada vez menores. Isso acontece devido à diminuição do período de atenção dos usuários da internet, que propicia o crescimento de propostas imediatistas.

Outra fórmula para o sucesso é a música sertaneja, que frequentemente ocupa posições de destaque nas listagens de músicas mais ouvidas no Brasil. A série do Globoplay Rensga Hits! (2022) apresenta denúncias sobre a lógica empresarial de busca incessante pelo lucro dentro do gênero. “É um gênero musical que é constantemente reinventado e faz sucesso desde os anos 90”, conta o professor Eduardo.

O cantor Vítor Vital coordena o Quintal do CMU, coletivo de artistas independentes da Escola de Comunicações e Artes da USP, e relata que “no mercado musical é muito difícil conseguir se manter. Geralmente todo mundo que trabalha na área musical acaba trabalhando também em outros lugares”. Original de Florianópolis, o compositor é antropólogo pela UFSC e pesquisou em seu TCC a cena de artistas que vivem fora do eixo São Paulo e Rio de Janeiro, e explica que há um grande obstáculo para artistas independentes que não moram nesses grandes centros de produção cultural do país. 

As plataformas de streaming, como Spotify e Deezer, e as redes sociais são grandes ditadores de regras na indústria atual. “Os artistas têm que se adaptar a uma realidade que não foram eles que criaram” conta Eduardo. Mesmo que não exista mais o monopólio das gravadoras, outras estruturas pouco transparentes, como os algoritmos, ainda controlam a indústria.

Marcos conta que a construção de uma comunidade foi importante para  a viabilidade de sua carreira [Imagem: Reprodução/ Spotify]

Apesar de todos os impasses, viver de arte ainda é o sonho de muitos. Para quem quer ingressar na música, Marcos Almeida recomenda o foco na formação de identidade e comunidades, que são facilitadas com as redes. Vítor aconselha a ousadia:  “Como diz Glauber Rocha, a arte é mais do que criatividade, é também coragem”, alega.

1 comentário em “(Não) Tá Tudo Certo: Indústria musical na era pós-gravadoras”

  1. Parabenizo a Sarah Kelly pela profundidade desse texto interdisciplinar, inicia-se a leitura e o leitor fica fisgado pela curiosidade. Claro, a participação das imagens é fundamental, o criativo Pedro Malta desenvolve excelente parceria…

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