Por João Victor Vilasbôas (joaovilasboas.jvvp@usp.br)
Um jovem prometido ao seminário pela mãe se apaixona ainda criança por sua vizinha – que o corresponde. E, se o desafio de superar a jura materna parece grande, não se compara ao ciúme doentio que emerge do rapaz, anos depois, com a trágica morte de uma pessoa próxima à família.
Na escola, na universidade, no cinema, no teatro ou na televisão: parte significativa dos brasileiros já ouviu falar dessa história. Um folhetim que não nasceu em um jornal e se tornou uma das obras mais célebres do país, Dom Casmurro foi publicado pela Livraria Garnier há 125 anos, em 1899 – apesar de a primeira edição ter sido lançada apenas no ano seguinte.
Enredo que entrou para a história
Escrito pelo famoso Machado de Assis (1839-1908), o livro é narrado pelo protagonista Bento de Albuquerque Santiago, que, na maturidade, busca revisitar sua história. Chamado de “Casmurro” por ser um senhor de hábitos ranzinzas e solitários, Bento narra a trajetória de sua vida desde a infância, na rua de Matacavalos – que reconstruiu anos depois no bairro do Engenho Novo – até seus dias de velhice. Os relatos partem dos acontecimentos após José Dias, agregado da família, denunciar à viúva Dona Glória, mãe de Bento, o romance do filho com Capitolina, apelidada Capitu, a filha do vizinho Pádua.
O leitor logo entende o porquê deste ser o ponto de partida das lembranças de Bentinho. Ao saber da paixão do filho pela moça humilde, Glória teme não conseguir cumprir a promessa feita quando o garoto nasceu: a de torná-lo padre caso Deus a abençoasse com um “varão”, já que ela havia perdido um bebê ao dar à luz e demorou a engravidar novamente. O casal adolescente tenta impedir a viúva de cumprir o juramento de inúmeras formas, mas fracassa e Bentinho vai ao seminário. No local, ele conhece Ezequiel de Sousa Escobar, que se torna seu melhor amigo e o ajuda a sair do convento ao convencer D. Glória a desistir da promessa.
O par consegue enfim viver seu amor. Após se formar em Direito no Largo do São Francisco, em São Paulo, Bento retorna ao Rio de Janeiro e se casa com a amada. Escobar, que constrói uma carreira bem-sucedida como comerciante, casa-se, por sua vez, com Sancha, a melhor amiga de infância de Capitu. Os casais seguem cada vez mais unidos, ao ponto de Escobar e a mulher darem à sua filha o nome de Capitolina, homenagem que os protagonistas retribuem anos depois, quando dão à luz a Ezequiel. Entretanto, o que poderia ser o final de uma história de amor, torna-se o início de uma saga marcada por ciúmes e por uma dúvida que marcaria a história da literatura brasileira: Capitu traiu ou não Bento? Ao final do enredo, Escobar, apesar de ser excelente nadador, morre afogado e, no seu velório, Bento passa a desconfiar de que a esposa tivesse mantido um caso com o melhor amigo dele, devido à forma fixa com a qual ela olha para o cadáver. Essa suspeita tira a paz conjugal dos dois e se torna princípio de discussões, até beirar as últimas consequências.
O retrato irretocável de sua época
Escrito no penúltimo ano do século 19, Dom Casmurro é fruto de sua época. Seu autor, Joaquim Maria Machado de Assis, nascido e criado no Morro do Livramento (Rio de Janeiro, então capital do Brasil), conviveu com inúmeras mazelas desde muito jovem — da pobreza à orfandade materna, aos dez anos, e paterna, anos depois. Além disso, havia os desafios de ser um homem negro no período em que a escravização ainda vigorava no país. Autodidata, o jovem Machado estava sempre em busca de conhecimento, o que foi fundamental no processo de escrita que experimentou desde cedo, ao publicar seu primeiro poema, aos 14 anos, e nos inúmeros jornais e revistas em que viria a trabalhar, como na Imprensa Nacional. Já como funcionário da área da comunicação e, depois, como burocrata do Império, o autor de Bentinho e Capitu começou a ter contato também com intelectuais e com a elite carioca. As vivências de sua juventude o permitiram conhecer a fundo diferentes camadas sociais da capital da nação e retratá-las fielmente.
Àquela época, o Brasil já convivia com problemas que persistem até o século 21 – como desigualdades sociais, racismo estrutural e corrupção política –, e com alguns que, lentamente, começaram a mudar nos séculos seguintes – como a ausência de direitos às pessoas que não fossem homens brancos e ricos. Quando Dom Casmurro foi às vendas pela primeira vez, o golpe que proclamou a República completava dez anos com tensões sociais latentes. O novo regime governamental, idealizado pelas elites econômica, militar e religiosa sem participação popular, não conseguiu reduzir as misérias e tampouco melhorou a vida do enorme contingente de pobres e analfabetos – o que gerou conflitos, como a Guerra de Canudos (1896-1897). Além disso, não existiam projetos de cidadania para os escravizados, sobretudo em pleno período de início da chegada dos imigrantes no país – realidade que Machado de Assis viveu.
Com grandioso repertório desde a juventude, Machado, apelidado de “Bruxo do Cosme Velho” – em referência à casa em que viveu boa parte da vida com sua esposa Carolina e, também, da viuvez –, escreveu inúmeras obras, dentre as quais estão dez romances. Embora os primeiros tenham traços do Romantismo, ainda em voga no Brasil nas décadas de 1850 a 1870, foi com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (Tipografia Nacional, 1881) que ele introduziu a escola literária do Realismo no país. Com esse livro, iniciou o que os críticos chamam de trilogia realista, que seguiu com Quincas Borba (Livraria Garnier, 1891) e foi concluída com a história de Bento Santiago, em 1899.
Apesar de ser considerado pai da vertente realista brasileira, Machado de Assis não se restringiu às convenções desse movimento, conforme relata Margarete Maria da Silva, professora de Língua Portuguesa e Literatura, em entrevista à Jornalismo Júnior. Segundo a docente, o escritor ultrapassa os ideais de qualquer escola literária, sendo Dom Casmurro o livro que melhor comprova essa tese, pois o autor e sua obra são atemporais e visionários. Para ela, é verdade que Machado se vale de características realistas – como a construção aprofundada dos traços de personalidade e da psique das personagens, a abordagem de suas contradições e falhas de caráter e a incitação de questionamentos ao leitor. Mas ele não se restringe a esses aspectos, já que retoma alguns ideais românticos – como no início da história, em que o casal enfrenta desafios para permanecer junto – e antecipa abordagens que seriam apenas inseridas na literatura décadas depois, com o Modernismo – como os capítulos curtos, a metalinguagem e a estrutura não-linear da narrativa.
“Por isso, dizemos em sala de aula que Machado de Assis é o “mágico das letras”. Se você olhar sobre o que ele falava naquela época, é extremamente atual”
– Margarete da Silva, professora de Português
Referências? Aqui tem!
Para além das técnicas do escritor na construção do livro, Margarete ressalta como Machado usa em Dom Casmurro o repertório que adquiriu ao longo da vida. No romance, há várias citações de célebres filósofos e autores, como Fausto, de Goethe. Ao longo dos capítulos, são muitas as referências à obra de William Shakespeare. Como alusão ao teatro do dramaturgo inglês, identifica-se, por exemplo, intertextualidade entre o ciúme alucinado de Bento e as “visões” do príncipe Hamlet com o fantasma de seu falecido pai.
Ainda assim, o maior ponto de contato entre as memórias do protagonista e Shakespeare é a peça Otelo, o Mouro de Veneza. Nessa história, Iago quer se vingar de Otelo, marido de Desdêmona, e passa a alimentar os ciúmes dele ao levá-lo a crer que sua mulher o trai com Cássio, a quem foi dada uma promoção no exército, por amizade, quando Iago tinha certeza que seria ele o promovido. Apesar da semelhança – e de Bento citar Otelo nominalmente no livro –, a professora crê que não se deve reduzir Dom Casmurro a uma mera obra inspirada na peça: “entre Shakespeare e Machado, creio que Machado vai além. Porque ele dá o poder da dúvida. Não temos certeza se a desconfiança dele sobre a Capitu estava certa: Bentinho narra em primeira pessoa, do seu ponto de vista”.
No livro, outra referência que se destaca é a forte simbologia católica. Além de citar alguns dos apóstolos de Jesus Cristo, como São Pedro, e o livro de Eclesiastes – parte da Bíblia preferida de Machado –, os próprios nomes das personagens remetem às Sagradas Escrituras. Ezequiel foi um profeta do Antigo Testamento, cujo nome significa “Deus fortalece”; Bento quer dizer “santo” e Capitu remete ao termo latino capitis, que significa “cabeça” e ainda lembra, foneticamente, o termo “capeta”. Esses significados ajudam a reforçar características das personagens, marca da influência realista da época. Também são úteis à crítica que o autor faz à religião e aos fiéis que, segundo a professora, “enxergam a Igreja com interesse e não praticam a fé por amor, mas por obrigação e conveniência”. Ela ainda acrescenta: “a própria saída de Bentinho do seminário se dá com uma ‘barganha’ com Deus: colocam o filho de um escravizado em seu lugar e assim, a promessa de Dona Glória se cumpre”.
Inovador e revolucionário?
Margarete aponta a questão do tipo de narrador do romance como uma das inovações trazidas pelo livro, já que, antes do lançamento de Dom Casmurro, acreditava-se fielmente no que dizia o narrador-personagem. Para ela, à medida que os anos se passaram, os leitores começaram a enxergar outras possibilidades de resolução do conflito central e, consequentemente, a desconfiar da veracidade. Assim, Bento contaria a história sob sua perspectiva, contaminada por suas conclusões e vivências.
A professora ressalta, porém, que essa desconfiança do público para com Bento Santiago não foi imediata à publicação do livro. Há evidências na crítica de José Veríssimo, em 1903: “Não sei se acerto, atribuindo malícia ao pobre BentMachado de Assis – o mágico das letras e bruxo do Cosme Velho, em 1904o Santiago, antes que se fizesse Dom Casmurro. Não, ele era antes ingênuo, simples, cândido, confiante, canhestro. […] foi Capitu, a deliciosa Capitu. Foi ela, como diziam as nossas avós, quem o desasnou, e, encantadora Eva, quem ensinou a malícia a esse novo Adão”.
Foi somente a partir dos anos 1960 e 1970, com a consolidação do movimento feminista, que estudiosos passaram a questionar as acusações de Bento contra Capitu – como fez a ensaísta estadunidense Helen Caldwell em sua obra The Brazilian Othello of Machado de Assis. Pouco antes, na década de 1930, com a popularização da psicanálise, principalmente dos textos de Sigmund Freud, Dom Casmurro passou a ser objeto de estudo psicanalítico devido à abordagem do ciúme. Magda Graziella Martins e Roberta Giacobone, no artigo “Literatura e psicanálise: decorrências do amor em Dom Casmurro”, falam a respeito dos estereótipos do casal e a construção psicológica deles: “Machado expõe Capitu como uma personagem forte, força intrinsecamente relacionada à sedução, à sexualidade representada pelo feminino, ou seja, mulher impulsionada pelo desejo; no entanto, reprimida por um homem que parece vê-la como um objeto a ser possuído – retrato do século 19”.
Outro ponto ressaltado pela professora Margarete é o uso de flashbacks e ironias por Machado de Assis. Esses elementos, que permeiam a obra do autor, segundo ela, auxiliam na construção da narrativa não-linear de Dom Casmurro, principalmente quando Bentinho quebra a narração com outras lembranças. Os recursos também conectam o autor/narrador ao público leitor nas inúmeras vezes em que Bento se dirige a quem lê suas memórias.
Capitu: moderna, polêmica, adúltera ou transgressora?
Apesar de todas as discussões que podem ser feitas sobre Dom Casmurro, é fato que, 125 anos depois de escrito, um dos maiores motores de curiosidade em relação à obra é o suposto adultério de Capitu. Conforme exposto, ao longo das décadas, o público e os críticos deixaram de tomar como única, verdadeira e isenta a narração de Bentinho. E, com isso, surgiu o questionamento: afinal, não seria errado julgar Capitolina sem conhecer a sua versão da história?
Sobre a mulher que conduz a narrativa – e as acusações contra ela —, Margarete opina que, desde o início da obra, ela se mostra uma jovem que rompe com o ideal de submissão feminino que vigorava à época: “é a Capitu que tenta impedir que ele vá para o seminário e, quando ele está lá, o José Dias diz pro Bentinho que ela está bem, apesar da saudade. É ela sendo empoderada”. A professora ainda comenta que, por isso, Capitu não tem em Bentinho a sua razão de ser – “o que ele, filho único, naquela sociedade patriarcal, não aceita”, diz. “Em busca de se autoafirmar, ele subverte até o impacto da tragédia de Escobar para convencer ou manipular o leitor”, conclui.
Para além do “traiu ou não traiu”
Para a professora, essas discussões em torno do caráter de Capitu permitiram aos leitores mudar de opinião a respeito das personagens e aumentaram as possibilidades de resolução desse enlace: “hoje você tem quem ache que ela, de fato, o traiu; quem pense que não; quem enxergue que ele, na verdade, queria trair a Capitu e por isso tenta convencer ao público que ela é a culpada, pra desviar a atenção. Há até quem diga que Bentinho pudesse sentir algum tipo de amor reprimido pelo Escobar e descontar isso na mulher, sendo atormentado pela semelhança dos trejeitos do filho com o amigo. E mais: quem ache que ela não traiu, mas deveria ter traído”.
Questionada sobre sua visão a respeito do livro e qual acha ter sido a opinião de Machado de Assis, Margarete confessa não ter concluído o dilema: “acredito que ela possa não ter traído, mas não sei. Penso que o Machado quis que nós tirássemos nossas próprias conclusões. Acho que ele deixou esse final aberto”. Sobre sua passagem predileta, ela diz: “o início e o final, quando Bento reconstrói em outro lugar a casa de Matacavalos. É a falência dele e do ser humano, ali, sozinho e amargurado, sempre preso e em busca do ideal de um passado melhor, que não volta mais”.
A professora ainda expõe que, para ela, Dom Casmurro é o melhor romance brasileiro, escrito pelo maior autor do país. “Temos autores excelentes, mas Machado de Assis está num patamar acima ainda. Tudo ali é muito atual – a criação do filho mimado, o ciúme, as críticas à Igreja, à política e à sociedade. Isso é impressionante. Ele conseguiu captar a essência da sua época. É atemporal”, conclui, concordando com a afirmação de que o maior trunfo do livro é acompanhar a evolução dos discursos e dos avanços sociais do país, sempre mantendo sua relevância e atualidade.