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1. Arte, mulher e feminismo: muito além de Frida Kahlo

Por Fernando Souza Incorporando o feminismo no campo artístico desde os anos 60, muitos artistas se empenharam na crítica da representação dos corpos, discutiram a ausência de mulheres na História da Arte, questionaram as instituições e o cânones artísticos e desconstruíram o imaginário de uma cultura patriarcal e machista Ao questionar se as mulheres precisam estar …

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Por Fernando Souza

Incorporando o feminismo no campo artístico desde os anos 60, muitos artistas se empenharam na crítica da representação dos corpos, discutiram a ausência de mulheres na História da Arte, questionaram as instituições e o cânones artísticos e desconstruíram o imaginário de uma cultura patriarcal e machista

Ao questionar se as mulheres precisam estar nuas para entrar nos museus, o coletivo Guerrila Girls demonstra o potencial subversivo da arte feminista. Incorporando o feminismo no campo artístico desde os anos 60, muitos artistas se empenharam na crítica da representação dos corpos, discutiram a ausência de mulheres na História da Arte, questionaram as instituições e o cânones artísticos e desconstruíram o imaginário de uma cultura patriarcal e machista.

Em “Femme Maison” (1994), Louise Bourgeois une o feminino ao doméstico, em uma simbiose que revolve os discursos que encerram a mulher e seus pensamentos no âmbito privado.

Ícone feminista, Frida Kahlo é talvez a mais conhecida pintora do mundo, mas sobre outras centenas de milhares de artistas, o esquecimento foi quase regra. O que existe além da pintora mexicana? Vista por mais de 2 milhões de pessoas no Centro Georges Pompidou, em Paris, a exposição Elles reuniu 350 obras de 150 artistas do começo do século 20 aos dias de hoje. Entre pinturas, esculturas, vídeos de performances e instalações, nomes distantes culturamente como Frida, Louise Bourgeois e Marina Abramovic estiveram reunidos para resgatar historicizar mulheres artistas e suas produções.

Para Luana Saturnino Tvardovskas, historiadora de arte e pesquisadora da Unicamp, esse tipo de proposta “dialoga com um primeiro momento em que as exposições, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, tiveram a intenção mostrar artistas que tinham sido esquecidas da história canônica”. Apesar desse tipo de curadoria ser importante para o (re)conhecimento e visibilidade da história dessas mulheres, a historiadora adverte que esse tipo de curadoria pode não estar criticando as instituições e categorias próprias que colocaram as colocaram historicamente em uma posição de submissão e opressão.

“Uma curadoria feminista não é uma curadoria que contemple apenas mulheres artistas. É uma curadoria que mostra as diferenças dessa produção e como essas mulheres estão discutindo a identidade feminina, como estão propondo novas configurações subjetivas na atualidade, como estão efetivamente estão transformando a cultura”, explica. Para ela, essas curadorias contemplam determinados aspectos, temáticas e eixos que as curadorias tradicionais não contemplam. “Vejo que várias artistas tem incorporado questões feministas ou questões de gênero nas obras e que existe um movimento de que as curadorias comecem a discutir esses aspectos e elementos na própria apresentação do trabalho”, analisa a historiadora.

Pensar em gênero como um termo de curadoria torna mais complexo nosso olhar para produção artística, pois segundo Luana, é preciso “compreender que as mulheres não produziram da mesma forma que os homens, não tiveram as mesmas oportunidades, não aprenderam a enxergar o mundo da mesma forma e existem outras preocupações que precisam ser contempladas.” Apesar do mundo da arte estar em constante transformação, a pesquisadora acredita que que é uma questão que precisa ser debatida, pois é muito pouco apresentada e discutida.

Da arte feminina à arte feminista

Apesar do status de primeira pintora da rainha Maria Antonieta, Élisabeth Vigé-Lebrun recebeu muitas recepções negativas da crítica da época por ser mulher e por ter seu nome associado ao Antigo Regime.

“Por quê não existiram grandes artistas mulheres”? É com essa proposição que Linda Nochlin intitula o artigo em que tenta responder . Segundo a autora, as duas respostas mais óbvias para essa pergunta geram mais problemas do que soluções: a primeira, seria resgatar as mulheres artistas esquecidas da História, já outra resposta seria argumentar que nas artes das mulheres, há um tipo diferente de grandeza, postulando a existência de um estilo “feminino” de arte. Linda Nochlin refuta tais tentativas, pois não chegam perto de uma visão feminista real, de crítica das ideologias e das práticas consideradas naturais. Élisabeth Vigée-Lebrun, Angelica Kauffmann, Rosa Bonheur e Berthe Morisot, artistas europeias dos século tão distantes como o XVII, XVIII e XIX podem até ser resgatadas, mas para a autora, não se pode relacionar suas obras apenas por serem mulheres.

A Semana de Arte Moderna de 1922 trouxe ao circuito artístico e cultural Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, nomes muito (re)conhecidos e relembrados no Brasil. Porém, antes delas, houve um esquecimento de mulheres artistas do período dito acadêmico. Em seu livro “Profissão Artista: Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras“, a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Ana Paula Cavalcanti Simioni, traça a história dessas mulheres, incorporando a crítica das instituições artísticas. Fruto de sua tese de doutorado, o trabalho retoma artistas como Julieta de França, que alcançaram notoriedade no meio artístico brasileiro e europeu.

Além das imposições sociais tradicionais, muitas das instituições acadêmicas de arte não permitiram a entrada de mulheres até o início do século XIX. Como sugere Ana Paula, o grande obstáculo das artistas para crescerem profissionalmente estava na barreira moral e institucional do estudo do modelo-vivo. Por meio da observação do corpo, a excelência técnica no desenho as privava do exercício da pintura de história, tida como mais elevada, por tratar de temas civis, republicanos, construída como masculina. Se o maior gênero da arte acadêmica era quase inacessível às artistas por não poderem estudar o nu, elas então se dedicavam a pinturas de paisagem e de natureza-morte, tomadas como de menor valor artístico e femininas, logo, duplamente negadas.

Segundo Luana, na crítica de arte é possível trabalhar com categorias de gênero em  todas as épocas histórias. “Como foram construídas as imagens sobre o feminino e o masculino em determinada época? Como essas imagens impactaram ou não a produção artística?  Como o circuito artístico respondia a essas divisões de gênero? Algumas mulheres se rebelaram a esses padrões, tiveram críticas?” são exemplos de perguntas que podem guiar essa análise.

Frida Kahlo configura-se muitas vezes como a única referência de mulher artista. Suas obras que reproduzem temas associados constantemente à mulher artista: enfermidade, hipersensibilidade, desequilíbrio emocional e formação a sombra de um grande gênio. No livro “Frida Kahlo: contra el mito”, Patricia Mayayo procura transcender o marco da psicobiografia de sua obra, característica que confina a história de muitas artistas somente ao âmbito do privado e aos estereótipos de criatividade feminina. Além de ícone pop, Frida é também um ícone feminista, mas seria possível dizer que sua obra também seria? Para a autora, não é possível ter certeza disso, pois como pode ser visto em suas pinturas, há uma tentativa de construção da própria imagem, porém, cheia de conflitos e contradições.

Com características de pintura muralística, Moises (1945) é uma obra na qual Frida resgata imaginários políticos, religiosos e míticos em uma só tela, quase que fecundada por si própria.

Na primeira onda feminista do começo do século XX, principalmente na Europa, muitas mulheres artistas eram emancipadas e tinham a arte como profissão em tempo integral. Segundo Luana, porém, não é possível afirmar que estas foram feministas antes do próprio movimento sem que se conheça melhor suas histórias. “Não se trata de chamá-las de feministas, mas mostrar como elas estão imersas na época em que vivem, discutindo, propondo, brigando muitas vezes com as regras que foram impostas dentro da família, dentro da sociedade, dentro das próprias escolas de arte”, explica.

Ao longo de séculos de História da Arte, muitos artistas foram considerados gênios de seu tempo. De Da Vinci a Monet, esses artistas foram escolhidos por uma minoria, com interesses mercadológicos e financeiros, e como pontua Luana, até há pouco tempo atrás, o cânone era uma categoria masculina, europeia, branca, burguesa ou aristocrática. Luana acredita que paras as artistas, não há o interesse em fazer parte do cânone, pois este é excludente por si  próprio. “Precisamos procurar outras maneiras de dar visibilidade para práticas culturais e artísticas que do nosso nosso mundo, uma outra maneira que não seja canônica (…), porque elas sempre entrarão em segundo plano no cânone”, contesta. Para contar a história dessas artistas, não se pode deixar de lado o corpo, a sexualidade, a maternidade e outras experiências que impediram as mulheres de entrar e se manter na carreira artística.

Mulheres artistas no Brasil e na Argentina

Como as mulheres transformaram (e transformam) a cultura a partir de uma crítica feminista, propondo novos tipos de relações intersubjetivas através da produção artística e cultural de uma história que não foi escrita? Resumidamente, essa pergunta reúne as preocupações de Luana em sua pesquisa de mestrado e doutorado. “Por que nós realmente não conhecemos essas artistas? Por que nós não discutimos o que elas produzem de crítica feminista?” Com essas perguntas em mente, a historiadora pesquisou o traçado de artistas que produziram após a Ditadura Militar, como Márcia X e Anna Maria Maiolino. Na contemporaneidade, artistas brasileiras como Rosana Paulino, Cristina Salgado e Ana Miguel e também as argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Constantino foram analisadas.

Na performance “Savon de Corps”, Nicola Constantino traz à tona o consumo do corpo, seja na arte ou na propaganda.

Segundo Luana, existe uma diferença muito grande entre as artistas que precisaram produzir durante a Ditadura daquelas jovens que cresceram nesse período, pois já estavam em um contexto diferente politicamente. “O Brasil entra com um forte movimento feminista depois da Ditadura Militar, quando as mulheres exiladas voltam, começam a se mobilizar e acontecem congressos feministas. Antes disso, nos anos 60 e 70, é possível fazer uma leitura de gênero, mas as artistas sentem muito o impacto da violência política da Ditadura Militar e isso não é tão explícito nas obras”, explica.

Lygia Clark é um exemplo de artista que atuou durante a repressão, mas por meio de sua experiência na França e com o impacto do ano de 1968 como marco para o feminismo, expandiu suas possibilidades de criação e liberação para produzir dentro de universidades francesas. “Lygia Clark tem obras onde claramente pode ser vista uma discussão ou uma preocupação com a construção de uma subjetividade das mulheres e dos homens, só que isso não foi lido até nos anos 80, quando passamos a ter uma chave crítica feminista”, analisa Luana. Em “Cesariana” (1967) por exemplo, a proposta da artista é o engajamento masculino no parto, uma experiência tida como exclusiva feminina.

“Cesariana”: a experiência “feminina” em aparato

Falecida em 2005, Márcia X foi uma das artistas contemporâneas mais transgressoras do cenário brasileiro. Em suas obras, religião, sexo e infância ultrapassam seus espaços tradicionais. Criticada pela comunidade católica a ponto de ser retirada da exposição em que era apresentada, a instalação e performance “Desenhando com terços” (2000) subverte o uso dos objetos para sujeitos.

Nesse cenário, a desconstrução do gênero é o ponto principal das obras. “Elas estão trabalhando em um momento de pós-liberação feminista, então elas estão desconstruindo o imaginários que temos de gênero, através da manipulação das imagens do corpo”, afirma a pesquisadora, pois que é no corpo em que as categorias de “masculino” e “feminino” estão consolidadas como naturais. Em pinturas, esculturas e performances, essas artistas criaram imagens desconfortáveis e estranhamentos, criticando a cultura de manipulações de imagens e estereótipos,  principalmente do corpo feminino.

Corpo, raça, beleza, trabalho, memória e feminino são algumas das temáticas que fazem parte do trabalho da paulista Rosana Paulino, uma das artistas plásticas mais bem recebidas na contemporaneidade.  Além de participar do circuito artístico tradicional, suas obras também foram incorporadas e analisadas em trabalhos acadêmicos e ativistas do feminismo.

“Sem título” (1998): uma experiência anônima que une.

Bem recebida na pela crítica feminista, Rosana prefere se colocar como uma artista que debate questões políticas do feminino. “Uma das minhas plataformas de discussão é o lugar da mulher na sociedade brasileira e, principalmente, da mulher negra dentro dessa sociedade” diz, explicando que as temáticas trabalhadas são frutos de sua própria experiência no mundo. Como artista, Rosana afirma que deve trabalhar com as questões que lhe afligem: “Sempre me incomodou essa dubiedade da sociedade brasileira em relação ao racismo e sempre me incomodou ainda sermos uma sociedade muito machista”.

O assédio dos modelos de beleza impostos às mulheres também faz parte de seu trabalho. “Se é uma mulher negra, é duplamente assediada, porque o padrão exige ser alta, ser loira, ter cabelo liso”, diz a artista ao se referir aos modelos de beleza, imbricados de preconceitos atrelados ao corpo feminino e negro. A problematização da beleza pode ser vista na obra “Sem título”, de 1998. Expostos de forma quase documental, “retratos” metonímicos de mulheres são mostrados através da identidade de seus cabelos.

“Bastidores”, detalhes.
“Bastidores”, detalhes.

“Bastidores” (1997)  é uma série de retratos da própria família da artista conjugam memórias pessoais e coletivas. Agressivamente, o rosto é bordado com violência, interrompendo o olhar, trazendo a tona o silêncio de gerações de mulheres, duplamente subjugadas pelo gênero e raça. Vários trabalhos da artista revolvem o imaginário da escravidão, também recuperando as experiências das escravas domésticas. Em “Amas de leite” (2007), por exemplo, as fitas que partem dos seios mais separam do que ligam as figuras de escravas e pequenos senhores, numa situação desigual, hierarquizada de nutrição e rejeição.

Colocados como parte do ambiente doméstico, visto muitas vezes como menor, sem importância, os têxteis são marcas fortes do trabalho da artista. “A escolha do material é extremamente importante para que sua mensagem seja efetivamente reconhecida e entendida. Nesse sentido, trabalhar com tecidos vai agregar elementos que a sociedade tradicionalmente coloca na esfera do feminino, então, trabalhar com tecidos e linhas agrega significados na escolha”, explica. Segundo ela, a facilidade com esses materiais vem da infância, quando aprendeu a manuseá-los com sua mãe, que bordava para ajudar nas despesas da casa.

“Paredes da memória” (1994): lembranças agora bordadas.

Ligado à identidade, modelos e estereótipos, o corpo é presença que permeia todo o trabalho da artista. Rosana analisa que no Brasil, “o corpo da mulher negra é visto como uma coisa de menor valor, aquele corpo pra ser explorado”, seja no mercado de trabalho, seja na imposição de padrões de beleza. “É muito maior na mulher negra do que sobre a mulher branca, sobre a mulher indígena também, porque cada vez mais se afasta daqueles padrões que são colocados”, opina a artista sobre a pressão pelos modelos, se impressionando como a sociedade ainda não discute esse assunto.

Para Rosana, independentemente do gênero ou sexo, ser artista no Brasil é muito difícil, mas acredita que ainda há desigualdades na carreira. Se para o homem artista há uma cobrança maior para fazer sucesso e faturar, ela vê que “de maneira muito contraditória, talvez por ser mulher, no início de minha carreira tenha sido mais fácil, porque da mulher não se espera tanta coisa”. Até hoje, a artista encontra dificuldades em relação ao local e papel do artista na sociedade brasileira, devidas a poucos planos de fomento e leis de incentivo, além da falta de um mercado de arte muito restrito e incipiente.

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