Por Lorenzo Souza (lorenzosouza@usp.br)
O mundo inteiro é rodeado de histórias. Elas aparecem nos filmes, nos livros, nas músicas e, para além da arte, a vida de cada ser humano é uma história. Muitas das narrativas mais conhecidas e aclamadas, como Star Wars, Matrix ou O Mágico de Oz, compartilham um traço em comum, mesmo sendo universos completamente diferentes: a “Jornada do Herói”, ou monomito, um conjunto de direções que guiam a maioria das narrativas clássicas mais conhecidas nos dias de hoje.
O renomado roteirista de Hollywood Christopher Vogler explora as nuances possíveis dessa estrutura em A Jornada do Escritor: estrutura mítica para escritores (Aleph, 2015). No livro, o autor detalha todas as 12 divisões do processo, como a história acontece em cada seção e as personagens mais comuns nas obras que utilizam este modelo.
O monomito
A ideia de monomito, também conhecida como “Jornada do Herói”, surge pela primeira vez na obra O Herói de Mil Faces, do escritor americano Joseph Campbell. Em seu livro, ele analisa as relações entre as histórias modernas da humanidade com os mitos da Antiguidade. Como resultado, surge a ideia de monomito, um tipo de “padrão” que se repete e se modifica de diferentes formas, a depender do artista e da narrativa que está sendo contada.
Vogler, por sua vez, junta seus diversos anos de experiência no audiovisual americano, seu conhecimento sobre arquétipos e suas análises sobre a teoria de Campbell para criar uma obra quase que “obrigatória” a todo escritor de Hollywood. Em seu livro, narra sobre as fases da jornada, o que acontece em cada uma delas, as relações delas com os mitos da Antiguidade, os arquétipos que aparecem nas histórias, entre outros aspectos.
As quatro partes de uma história
A Jornada do Herói se divide em três atos, separados em partes que completam o caminho da narrativa. Vogler analisa cada uma dessas divisões e as relaciona com histórias famosas do audiovisual, como no contraste em Star Wars entre o “Mundo Comum” de Tatooine e a galáxia afetada pelo poder do Império, o “Mundo Especial”.
No primeiro ato, o herói, imerso em seu Mundo Comum, é chamado para a “aventura” de alguma forma. Em Star Wars, esse chamado consiste em Luke receber a mensagem de ajuda da Princesa Léia, transmitida pelo androide R2-D2, originalmente destinada ao sábio Obi-Wan Kenobi. Entretanto, é comum que os heróis neguem inicialmente essa proposta de aventura. Na sequência, algo que envolve o Mundo Especial alcança o Mundo Comum do personagem, o obrigando a aceitar o chamado. Ainda na narrativa espacial, isso seria o equivalente à morte dos tios de Luke pelos stormtroopers.
O segundo ato divide-se em dois: um lado formado pelas provações, dificuldades e amizades formadas no caminho do herói pelo novo mundo em busca de um objetivo específico — denominado o elixir. O outro é formado pela provação “principal”, ponto em que esse herói alcança um poder ou capacidade, declarando-se oficialmente como protagonista. O fim da segunda parte é marcado pela recompensa da prova maior que o personagem acabara de passar. Em Star Wars, isso seria a salvação da Princesa Léia, enquanto o clímax seria a destruição da Estrela da Morte. Após esse ponto, o herói retorna com o “elixir” para seu mundo, salvando-o ou resolvendo o problema que o ameaçava.
Vogler explica que, apesar da estrutura de muitas histórias da humanidade terem esse formato, nem todas fazem jus a esse modelo. Isso se dá porque o monomito é uma possibilidade e pode ser modificado de qualquer forma, a depender do pensamento criativo do escritor. As seções podem mudar de lugar, mudar de tamanho, tornarem-se metafóricas, tudo sujeito à necessidade do artista com a narrativa.
As personagens da história não são por acaso
Além da sequência de acontecimentos da narrativa, outra característica importante de toda história é analisada por Christopher Vogler extensivamente em seu livro: as personagens. A influência de Joseph Campbell e dos conceitos de arquétipo de Carl Jung — que também inspirou Campbell — foram fundamentos para as dissertações de Christopher sobre as personagens/arquétipos que mais aparecem nas narrativas, da Antiguidade até os filmes modernos.
No conceito psicanalítico de Jung, arquétipo é uma construção social existente dentro do inconsciente coletivo, nascida ao mesmo tempo que a nossa consciência, e é resultado de toda história humana passada. Arquétipos seriam “imagens primordiais”, advindos das mesmas experiências que ocorrem geração após geração. De acordo com Jung, existem diversos deles, porém, alguns se repetem e podem ser identificados com mais frequência. Influenciado por essa linha psicanalítica, Joseph Campbell e Christopher Vogler refletem esses conceitos em suas análises das narrativas humanas. Dessa forma, incluem os arquétipos como “tipos” de personagens essenciais para a construção de uma história.
Vogler traz em sua obra alguns desses arquétipos, seus significados e influências narrativas. O herói, o mentor e o arqui-inimigo são exemplos existentes em quase toda história já criada. O herói é, em suma, o personagem principal, figura mais importante da jornada, e serve como forma de reflexo da nossa própria vida. O mentor, por sua vez, é uma espécie de sábio, geralmente com mais conhecimento do Mundo Especial do que o herói. O arqui-inimigo, por fim, é um contraste completo das características e morais do herói. Na maior parte dos casos, é oposto a ele em todas as coisas.
A obra de Vogler não se propõe a ser um guia para a criação de histórias por completo – mesmo que o próprio autor admita que o livro foi e é utilizado por roteiristas de Hollywood com frequência –, mas sim uma oportunidade de compreender o formato de quase toda história existente na humanidade. Ainda de acordo com ele, compreender a Jornada do Herói é uma forma de refletir sobre a jornada da própria vida e, em certa medida, se preparar para os capítulos que virão “a seguir”.
Imagem de capa: Lorenzo Souza/Acervo pessoal