Por Ana Carolina Mattos (a.carolinamattosn@usp.br)
Em 1995, o filme As pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995) foi lançado nos cinemas. O longa acompanha dois irmãos que após a morte da mãe, Francesca (Meryl Streep), encontram em seus pertences cartas e diários que narram quatro dias de um caso extraconjugal que teve com o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood).
Para seus filhos aquilo vem como um grande choque. Como poderia uma mãe e esposa tão dedicada ser infiel a seu marido e sua família?Tentando entender melhor a situação, os irmãos começam a ler seus escritos e com isso, questionam seus próprios casamentos e escolhas. A partir daí, acompanhamos os quatro fatídicos dias pela visão de Francesca.
No primeiro dia em que seu marido e filhos deixam a isolada casa em que vivem, Francesca conhece Robert ao acaso. A caminho de fotografar as pontes de Madison, o fotógrafo se perde e opta por pedir informação e assim conhece Francesca, que aceita ajudar e vai com ele até o local. Ali iniciam um envolvimento amoroso no qual conversam sobre tudo de maneira apaixonante, com Francesca se expressando e sentindo-se livre pela primeira vez em muito tempo.
Em um momento do filme, Francesca chega a confrontar Kincaid sobre suas reais intenções, questionando o que um homem culto e viajado como ele está fazendo perdendo tempo com ela, uma simples mãe e dona de casa.
O questionamento de Francesca demonstra a impotência que sente perante sua própria vida, que depois de assumir integralmente os cuidados com a casa e com a família, nem parece mais sua. Esse é um dos pontos centrais da narrativa, colocando o dilema de escolha entre os desejos da protagonista quanto a sua própria vida e o dever de cuidar de sua família.

Esse tipo de narrativa não é nova no cinema, principalmente em filmes que têm a maternidade como tema central e apresentam debates quanto ao peso da maternidade ou as cicatrizes e traumas deixados pelas inúmeras responsabilidades de ser mãe e muitas vezes, comandar e reger uma família.
A representação de mães e mulheres no cinema
Na história do cinema, as mulheres — principalmente as mães — sempre estiveram presentes mas, por vezes, como personagens coadjuvantes e raramente protagonistas ou definidoras de suas próprias trajetórias, mesmo quando são um ponto central da narrativa.
Em entrevista ao Cinéfilos, a crítica de cinema Fabiana Lima, associada a Critics Choice Associations (CCA) e da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) afirma “muitos filmes dão papéis totalmente coadjuvantes para as mulheres, ao ponto do troupe da ‘mulher da geladeira’, em que se mata uma mulher para motivar o protagonista, a mulher não ter muito uma função narrativa, ela está o tempo todo servindo em função do outro personagem que é realmente o grande protagonista da ação.”
Por anos, muitos filmes representavam mães com um mesmo arquétipo que perpetuaram o mito da maternidade, ideia de que a maternidade é algo intrínseco à natureza de uma mulher e quando o momento de ser mãe chega, ela desempenha seu papel com maestria.
No artigo Deitadas no Divã: a Mãe e a Mulher, a mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Emily Garcia, escreve “a partir do século XVIII e início do século XIX, há uma nova constituição da relação entre mulheres e maternidade por meio do qual o bebê e criança transformam-se nos objetos privilegiados da atenção materna. Diante disso, segundo ela, “a devoção e presença vigilantes da mãe surgem como valores essenciais, sem os quais os cuidados necessários à preservação da criança não poderiam mais se dar”.
Para Emily, as responsabilidades maternas aumentam em consequência dessa nova relação, valorizando ainda mais o papel mulher-mãe, que detém poder e respeito desde que se mantenha no âmbito doméstico. Com o aumento das responsabilidades da mulher ao ser intitulada a mãe, cresce a valorização a devoção e ao sacrifício feminino para seus filhos e família, destacando tais características no discurso médico e filosófico como funções intrínsecas à natureza da mulher.
A boa mãe e a mãe psicótica
No cinema, principalmente durante a “era de ouro” de Hollywood, essa ideia é muito presente. As mães dos filmes da época normalmente carregam poucas características marcantes além da maternidade, dedicando-se completamente a sua família. Mulheres bondosas, cuidadosas, sempre arrumadas de maneira modesta e que mantinham o dever de cuidar e zelar por sua família acima de tudo, mães boas e ideais.
A vida de um sonho (I Remember Mama, 1948), possui um clássico exemplo de uma mãe idealizada. A trama acompanha as memórias de uma escritora que relembra a infância e como era viver com seus irmãos e pais imigrantes noruegueses nos Estados Unidos de 1910.
Como uma mãe que se esforça para dar o melhor que pode aos filhos, Marta (Irene Dunne) é uma mulher dedicada, cuidadosa e amorosa que tenta manter a felicidade na casa apesar de todas as dificuldades e problemas enfrentados.

Mesmo sendo retratada de maneira positiva, a personagem não possui características marcantes além da maternidade e os trejeitos esperados de uma boa e amorosa mãe. O papel que exerce em sua família é o que a define, sendo uma figura praticamente perfeita que mesmo com as dificuldades do dia a dia, ama seus filhos e família acima de tudo. Consequentemente, Marta recebe aprovação por parte de sua família e por parte da sociedade, já que cumpre tão bem seu papel.
Até mesmo em filmes que contam com mães e maternidade como um importante tema, as personagens, por vezes, não possuem uma voz própria. Em Psicose (Psycho, 1960), Norma Bates, a mãe do famoso personagem Norman Bates, é a raiz da trama. Sem seu comportamento obsessivo e personalidade narcisista que desencadeou a loucura de seu filho, não há história. Mesmo assim, Norma não passa de menções e comentários sobre ser uma mãe mentalmente instável e psicótica.
Apesar disso, Psicose traz à tona um debate relativamente delicado sobre a maternidade, quando uma mãe falha com seu filho e sua família. Com uma visão maniqueísta entre uma mãe boa e uma má, quando uma mãe não é santificada e programada para sacrificar-se em nome de sua família, ela é negligente, egoísta e até mesmo violenta, causando traumas e conflitos em sua família.
Essa lógica de comportamentos extremos de mães no cinema contribui para a criação de personagens rasas, que não são exploradas de maneira completa pela narrativa, carregando pouca complexidade e mostrando ao espectador apenas uma simples face do que a personagem é, reduzindo-a apenas a uma mãe boa ou cruel.
Em contraponto, outros filmes não caem nessa dicotomia e apresentam não só mulheres complexas como também as relações danificadas derivadas das atribulações e dilemas da maternidade.
A complexa maternidade

Em Sonata de Outono (Autumn Sonata, 1978), de Ingmar Bergman, acompanhamos o reencontro entre Charlotte (Ingrid Bergman) e Eva (Liv Ullmann) após a morte do companheiro de Charlotte. No início do filme, a distância entre as personagens é tanta que o fato de serem mãe e filha chega a ser imperceptível para alguns espectadores, já que ambas, apesar de parecerem se conhecer há muito tempo, permanecem estranhas e afastadas.
Depois de um dia marcado por tensão, mãe e filha conversam profundamente pela primeira vez. Eva revela seus sentimentos angustiantes relacionados à constante ausência da mãe, que era uma pianista famosa. Charlotte passava meses em turnê com suas apresentações, deixando sua filha e marido sozinhos.
Na perspectiva de Eva, a mãe se tornou uma sombra, algo que quando presente, tornava tudo mais pesado, enquanto para Charlotte, seu casamento e filha a separavam da vida artística que almejava, sendo um peso para seus objetivos e sonhos. Quando Charlotte, até então ausente, decide encerrar suas turnês e se dedicar completamente à família, acha que tomou a decisão correta e agora, está tudo bem, mas para Eva, a realidade era diferente.
Eva se sentiu torturada por sua mãe, que direcionou a ela suas frustrações e cobranças, tornando a vida da menina de 14 anos, tensa e cansativa ao sobrecarregá-la com preocupações e cuidados fúteis depois de anos de negligência, na tentativa de compensar a ausência física e psicológica. O filme de Bergman carrega o sentimento de uma família negligenciada e uma mãe culpada que se divide entre seus sonhos e deveres.
Para alguns, pode ser um filme dramático, cruel e incomum ao trazer uma mãe ausente que parece se arrepender, mas nunca de fato muda seu relacionamento com a família, arquétipo diferente de uma mãe controladora e psicótica como Norma Bates, ou de mulheres que sacrificam a si mesmas em prol do bem-estar de sua família, que perdem sua identidade e senso de si como Francesca, que ao encontrar Robert percebe o quanto de suas vontades e sonhos deixou para trás para assumir integralmente seu papel de mãe e esposa e agora, quase vinte anos depois, já não sabe quase nada sobre si mesma.
Há ainda a representação de mulheres que em meio a dificuldades da maternidade se perdem e com saúde mental cada vez mais instável, cercam a si mesmas e seus filhos de cuidados extremos ou da falta deles, prejudicando sua família.
A mãe louca

Em Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under The Influence, 1974) de John Cassavetes, uma família da classe trabalhadora passa por período turbulento quando a mãe Mabel (Gena Rowlands) começa a demonstrar sintomas de desequilíbrio mental que afetam cada vez mais a si mesma e que passa a preocupar Nick (Peter Falk), seu marido, quando seus episódios começam a colocar em risco seus filhos.
Mabel é uma mãe que chega ao seu limite mental e físico em meio a cobranças ligadas a exercer seu papel de mãe e esposa, combinadas com as dificuldades financeiras impostas à família.
A obra carrega reflexões que vão além da discussão sociológica de papeis sociais e passam a limitações psicológicas causadas pelas altas cobranças da maternidade, principalmente uma marcada por limitações econômicas, já que Mabel se encontra em um estado mental delicado após anos de maternidade marcada por dedicação total a família, nenhum descanso e o consequentemente, o soterramento de sua identidade.
Fabiana aponta a importância do filme para o debate sobre as responsabilidades da maternidade e a saúde mental de mães e donas de casa em meio a tantas exigências. Para ela, o filme aponta para como apesar da mãe parecer cada vez mais sobrecarregada, tomando uma série de decisões controversas as quais os espectadores costumam julgar e colocar o peso da situação apenas sobre a mãe, pouco refletindo sobre a figura paterna da família que, apesar de presente, é ausente em muitos momentos, parecendo não se importar com a situação.
A crítica também menciona as diferentes cobranças entre os personagens do filme. Enquanto Mabel é cobrada até um colapso mental, seu marido não recebe tais cobranças, tarefas essas que são tipicamente delegadas e dirigidas à figura da mulher. Segundo ela, Uma Mulher Sob Influência agrega complexidade ao tema por abordar as questões mentais que Mabel enfrenta e a forma como é tratada por sua família.
Mesmo sendo uma mulher com claros sinais de exaustão e confusão mental devido a sua rotina como mãe e esposa em tempo integral, Mabel ainda sofre com as cobranças da maternidade e é apontada como a culpada de seu desgaste mental. Estar louca é sua culpa e ela deve ser internada para que volte a ser uma boa mãe e esposa.

Na trama, um dos momentos mais angustiantes é marcado por uma discussão entre o marido, a mãe dele e Mabel. A sogra, convencida da instabilidade mental de Mabel e crendo que ela representa um perigo para seus filhos e até mesmo seu marido, acredita que a melhor resposta para a situação é interná-la. Enquanto para seu marido, que está conflitante sobre o cenário, internar Mabel às vezes parece uma resposta e outro momento uma ideia improvável e distante.
“Ela pede ao pai, para alguém se levantar por ela, apoia-lá de alguma forma, porque ela está em desespero e sabe que provavelmente, será internada. É um momento triste porque ali ela está implorando para que alguém olhe por ela e a veja de uma forma mais humana, mas ninguém ali está disposto a defendê-la e ter um pensamento diferente sobre a situação que ela está vivendo.”, explica Fabiana.
De certa forma, isso é relativamente comum às mães, o trabalho como mãe e esposa que leva muitas mulheres à loucura e exaustão, já que muitas são pessoas que se anulam para se dedicarem à família.
Sobre o filme, Fabiana Lima aponta “somos pessoas complexas porque temos vontades e frustrações, cheias de vivências que moldam quem nós somos. Se não estamos vivendo na maior parte do tempo em função de nós mesmos, mas em função de uma outra pessoa, isso é prejudicial, uma mãe também tem vontades e deve preservar sua individualidade. Quando se subtrai isso você não tem mais uma pessoa ali, que é o que acontece com a personagem de Gena Rowlands.”
No filme Possessão (Possession, 1981), um casal passa por um período difícil de um casamento que parece cada vez mais próximo do fim. Durante o filme, Anna (Isabelle Adjani) tem comportamentos que beiram a psicose. Ela se autoflagela, negligencia seu filho e chega a cometer um homicídio.
A personagem atinge um estado mental crítico depois de anos de um casamento problemático e uma maternidade marcada pela solidão, já que seu marido, Mark (Sam Neill), está sempre trabalhando e viajando.

O que inicia o conflito do filme é Anna pedindo divórcio. Mark não aceita a ideia e passa a agir de maneira obsessiva e violenta com relação a Anna, chegando a contratar um detetive particular para investigar se a esposa tem um caso e até mesmo a agredi-lá. E de fato, descobre que Anna não só se relaciona com outros homens como também se relaciona com uma criatura monstruosa que ela mesma criou.
Por se tratar de um filme de terror, muitos temas permeiam a narrativa através de coisas fantasiosas como o monstro e os doppelgangers — sósia em tradução livre do alemão — por exemplo, mas são na verdade metáforas.
O monstro, que mais tarde se torna um doppelganger, é uma representação das versões idealizadas que os personagens têm um do outro. Mark vê a versão idealizada de Anna como uma mulher pura, bondosa e amável, uma mãe santa e perfeita. Essa visão dele enquadra Anna como alguém que coloca em segundo plano o bem estar de seu marido e filho, como uma mulher falha enquanto mãe e esposa. Uma mãe monstruosa.
No artigo Formas de Subordinação Cinematográfica aos mitos da Maternidade: método, pesquisa e inventário, a professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberta Veiga, ao falar sobre O Senhor Babadook (Babadook, 2014), outro filme de terror que lida com a ideia de uma mãe monstruosa, escreve “não há dúvidas de que a primeira impressão é de que a mãe monstruosa é inaceitável. Ela é um desvio porque oposta a figura santificada, paciente e devota, que funda o mito materno cristão. O filme vai longe, bem ao gosto do gênero do terror, deixando claro um esquema mãe-monstro-algoz versus criança-vítima-amedrontada — que sem dúvidas é inadmissível.”
Segundo a professora, o filme apresenta uma polarização entre uma mãe devota e permissiva que se torna monstruosa ao impor limites e expõe uma lógica maniqueísta sobre elas. Uma ideia de que podem apenas desempenharem um papel de boa ou papel de má.
A autora discorre sobre qual seria o limite entre uma boa ou má mãe e questiona se “seria possível a protagonista-mãe do filme escapar da condição sufocante de uma maternidade tóxica sem se tornar um monstro?”.