Por Clara Hanek (clarahanek@usp.br)
A doença celíaca (DC) é autoimune, crônica, genética e hereditária. Em termos simplificados, condição em que o corpo ataca suas próprias células saudáveis, não há cura, e ela é causada por um gene passado através das gerações. A doença se caracteriza pela hipersensibilidade e intolerância permanente ao glúten, que causa inflamação no intestino delgado. O único tratamento é seguir integralmente uma dieta sem glúten (DSG).
A enfermidade era considerada rara, mas já foi classificada como de alta prevalência no ocidente. O estudo The Global Burden of Childhood Coeliac Disease: A Neglected Component of Diarrhoeal Mortality? (2011) sugere que, no ano anterior, havia 2.2 milhões de crianças celíacas menores de cinco anos no mundo e, dentre essas, 42 mil poderiam ter mortes associadas à doença, anualmente.
A patologia multissistêmica acomete pessoas geneticamente predispostas (com os alelos HLA-DQ2 e HLA-DQ8), mas o seu desenvolvimento também está associado a fatores imunológicos e ambientais. Os genes podem, por isso, ser “ativados” em diferentes momentos da vida, normalmente após alguma fragilidade no sistema imunológico ou outro gatilho. Assim, enquanto a maioria dos celíacos descobre a doença na primeira infância, muitos só começam a desenvolver sintomas na vida adulta. Dado a necessidade da associação com fatores externos, nem todos os portadores vão de fato desenvolver a doença em algum momento, apesar da predisposição.
Beatriz Dinis e Larissa Morais, duas amigas que descobriram a DC em 2020 e 2019, respectivamente, criaram o instagram Belas Celíacas, em que compartilham suas rotinas e experiências com a doença. Plataformas como essa são importantes porque funcionam como um suporte ao recém diagnosticado, que normalmente está perdido e com medo, e mostram que é possível viver bem com a DC.
O que é o glúten?
Glúten é um composto de proteínas presente em alguns cereais, entre eles: trigo, centeio, cevada, triticale e malte. A gliadina, proteína monomérica que compõe o glúten, é o que de fato afeta os portadores de DC. Ela não causa mal para indivíduos saudáveis (sem DC, sensibilidade ou alergia ao trigo), apesar de ter sido colocada como vilã pelas dietas restritivas nas últimas décadas.
Mecanismos
O glúten é reconhecido pelas células do intestino celíaco como um antígeno (invasor, ameaça), o que desencadeia uma reação do sistema imunológico, que passa a agir contra essas partículas e resulta na destruição dos próprios tecidos e células saudáveis.
As microvilosidades intestinais são como “dobras” de tecido que servem para aumentar a superfície de absorção de nutrientes. O intestino de uma pessoa celíaca que consome glúten é chamado de “careca”, pois essas microvilosidades são destruídas e, por isso, a pessoa apresenta um quadro de desnutrição — que pode, inclusive, levar à morte.
Sintomas
A doença foi apelidada de “doença camaleão” pelo gastroenterologista Alessio Fasano, professor de pediatria em Harvard e diretor do Centro de Pesquisas Celíacas do Hospital Geral de Massachusetts (EUA). A expressão é aplicada por ele dado a multiplicidade de sintomas, que complica e retarda ainda mais o diagnóstico. A doença é como um camaleão porque se esconde atrás de diversas manifestações clínicas que podem divergir das gastrointestinais típicas (desnutrição, diarreia ou prisão de ventre, enjoos, dores abdominais e vômitos).
Apesar dos sintomas mais clássicos estarem focados no sistema gastrointestinal, existem os atípicos: distúrbios ósseos, neurológicos, hepáticos, hematológicos e até reprodutivos (muitas mulheres descobrem a DC enquanto investigam causas de infertilidade). Os atípicos incluem anemia ferropriva, fadiga, artrite, osteoporose, dermatite herpetiforme, névoa mental, depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, enxaquecas frequentes, transtornos alimentares e etc.
No entanto, uma pequena parcela das pessoas é assintomática e, apesar de nenhum sintoma externo, o intestino é danificado e o consumo de glúten pode desencadear consequências futuras (como tumores, infertilidade e danos potencialmente irreversíveis à parede intestinal) da mesma maneira.
Diagnóstico
O diagnóstico pode começar com um exame de sangue que procure a presença dos anticorpos anti-transglutaminase tecidual IgA e anti-endomísio (marcadores mais comuns). No entanto, é necessária uma endoscopia com biópsia do duodeno para ter um diagnóstico conclusivo, apesar do quadro clínico ser um grande indicador. Em 1956, a gastroenterologista e pesquisadora Dr. Margot Shiner fez a primeira biópsia oral em uma criança celíaca. Ela desenvolveu a técnica da biópsia duodenal e foi creditada pelo lançamento da especialidade da pediatria gastrointestinal.
Recomenda-se que a pessoa com suspeita da doença consuma glúten normalmente até o exame para não afetar os resultados, uma vez que os tecidos intestinais são capazes de regeneração, e seguir uma DSG antes da liberação do médico pode levar a um diagnóstico inconclusivo.
O Prof. Michael Marsh, médico e pesquisador britânico, criou um sistema de classificação para as alterações fisiológicas intestinais causadas pela DC, que podem ser identificadas pela biópsia. Os Graus de Marsh vão do zero ao quatro, sendo zero o estágio pré-infiltrativo (normal) e quatro a atrofia total potencialmente irreversível.

O celíaco deve acompanhar o status da doença por meio de endoscopias periódicas e, no melhor cenário (com alto controle da dieta e cuidado com a contaminação cruzada), apresentaria grau zero de Marsh, de forma que a doença pode ser considerada “inativa”. A melhora é gradual de acordo com a capacidade de regeneração epitelial do intestino; o celíaco que teve um processo diagnóstico mais longo pode demorar mais tempo para diminuir os graus de atrofia até atingir o ideal, o grau zero.
Linha do tempo
Acredita-se que a DC apareceu em humanos pela primeira vez com o advento da Revolução Agrícola. Com a expansão da dieta permitida pelas plantações, algumas intolerâncias e sensitividades apareceram pela primeira vez na história humana.
No século 2 A.C, Arateus da Capadócia, médico grego, descreveu as características gastrointestinais da doença pela primeira vez. Ele a batizou de “koilakos” a partir da palavra grega “koelia” (abdômen), o que explica a origem do termo coeliacs, que começou a ser utilizado posteriormente para se referir às pessoas com esses sintomas. Em 1887, o médico inglês Dr. Samuel Gee teorizou que as pessoas celíacas podem ser tratadas através da dieta. Gee experimentou múltiplas dietas com seus pacientes, mas faleceu antes de descobrir qual alimento era responsável pela enfermidade.
Foi apenas durante a Segunda Guerra Mundial que o agente causador da DC foi descoberto. Com a fome e a indisponibilidade do pão nos Países Baixos, o médico holandês Dr. Willem Dicke teorizou que a proteína do trigo era a causa da DC. Durante aquele período de Guerra, sem acesso ao pão, a taxa de mortalidade dos pacientes celíacos caiu para zero em seu hospital.

Contaminação cruzada
Não basta o alimento ser naturalmente isento de glúten: se uma pessoa fizer uma tapioca na mesma frigideira em que esquentou um pão, a tapioca passará a conter glúten, devido à contaminação cruzada — e os celíacos mais sensíveis podem ter fortes reações.
A lógica é a mesma para, por exemplo, um requeijão ou manteiga. Ambos são alimentos isentos de glúten e seguros para celíacos. O problema ocorre quando outro indivíduo passa a faca no pão comum e depois a retorna ao pote — a partir desse contato, mesmo que não haja migalhas visíveis, o pote está contaminado com glúten. Até um beijo pode ser suficiente para contaminar o celíaco, caso o parceiro não tenha escovado os dentes após alguma refeição com glúten ou tenha consumido algumas bebidas, como cerveja.
A preocupação com contaminação cruzada é maior ainda fora de casa. O glúten é amplamente utilizado na culinária, e engana-se quem pensa apenas em massas. É difícil para o celíaco se sentir seguro ao comer em restaurantes — mesmo pratos que, teoricamente, não deveriam conter glúten. Batata e óleo são alimentos sem glúten. Por isso, muitas pessoas assumem que a batata frita é segura para celíacos. Mas, na verdade, grande parte dos estabelecimentos reutilizam e reaproveitam o óleo. Tendo isso em vista, o celíaco pode ser contaminado acidentalmente, porque no mesmo óleo em que sua batata foi frita, algum alimento empanado havia sido frito antes.
Com o movimento dietético recente, em que influencers sem formação e outros charlatões do terrorismo nutricional incentivam o corte do glúten na dieta do cidadão comum, vários restaurantes, principalmente os de culinária italiana, passaram a oferecer a opção de massa sem glúten no cardápio. No entanto, essa oferta quase nunca é segura para celíacos e, muitas vezes, o macarrão sem glúten é até cozido na mesma água do macarrão comum, o que configura uma situação de contaminação grave.
A falta de informação sobre a doença afeta diretamente a vida dos celíacos, até dentro do próprio âmbito familiar, mas principalmente na rua. Larissa, que é nutricionista recém formada pela UnB, diz: “Acredito que se fosse mais falado, talvez as pessoas levassem mais a sério e a gente não teria que se desgastar tanto. Eu acredito que deveriam ser feitos treinamentos sobre as restrições alimentares com os funcionários [de restaurantes], porque muitas vezes elas são tratadas como frescura.”
Pessoas celíacas podem comer em restaurantes compartilhados por meio do gerenciamento de riscos. Pedir um prato mais simples, questionar sobre os temperos e preparo e explicar a condição para o garçom pode funcionar. No entanto, a necessidade de conversar com a equipe do restaurante pode gerar constrangimento, principalmente pela falta de preparo, conhecimento e compreensão da própria. “Até hoje eu tenho vergonha e sempre explico que estou perguntando muito porque eu tenho alergia. É uma coisa muito séria e eu preciso que eles sejam sinceros comigo”, diz Beatriz, sobre a conversa que é necessária quando precisa comer em estabelecimentos comuns.
Comunidade
Tudo pode estar contaminado, desde a chapa do restaurante até os instrumentos utilizados na cozinha, o que leva o celíaco a potencialmente desenvolver uma hipervigilância não saudável, que o causa medo e evasão social. Além disso, a doença está tipicamente associada a grandes dificuldades sociais e condições mentais. Por isso, a formação de uma comunidade é essencial para a vida dos celíacos.
O artigo Os impactos psicossociais gerados pelo diagnóstico e tratamento da doença celíaca mostra, a partir de entrevistas com doze pacientes recém diagnosticados, como a DC impacta substancialmente as relações sociais, familiares e o psicológico dos indivíduos. A pesquisa destaca a frustração que o paciente apresenta ao não ter liberdade para escolher o que consumir, a geração de conflitos na família pelos cuidados necessários no ambiente e o sentimento de culpa do próprio paciente, que sente que perturba a rotina daqueles ao seu redor.
O diagnóstico cria a necessidade de um novo comportamento social, já que todas as relações são permeadas pelo consumo de alimentos e refeições (como reuniões, jantares de família, confraternizações de trabalho, aniversários, casamentos e festas). A adesão à DSG entre pacientes diagnosticados não é total. Isso pode acontecer devido à dieta muito restritiva, alto custo dos alimentos substitutos (pães, macarrões, bolos, bolachas, mix de farinhas sem glúten), sentimento de exclusão social, dificuldade de identificar alimentos seguros, falta de instrução, entre outros.
Assim, a relação entre a DC e a saúde mental é íntima, e, junto ao diagnóstico, podem ser desenvolvidos vários fatores psicossociais: depressão, ansiedade, distúrbios alimentares (desde restrição extrema e medo da comida até compulsão alimentar), estresse extremo etc.
“Eu sempre tentei colocar na minha cabeça que eu não ia me excluir ou não socializar, porque se não eu ia parar de viver, sabe?”
Beatriz Dinis
Para aumentar o bem-estar em uma vida sem glúten, o celíaco deve reconstruir seu relacionamento com a comida, procurar apoio social e ajuda profissional para sintomas psicológicos e físicos que não melhoram mesmo com a dieta. Deve, também, processar e aprender a lidar com as mudanças e perdas: não poder mais consumir as comidas favoritas e de conforto, aumento de fardos (planejamento alimentar, precisar levar alimentos para festas ou viagens), mudanças na vida social e aceitar que viverá para sempre com uma doença crônica.
Em apenas quatro anos desde sua criação, o “Belas Celíacas” tem mais de 34 mil seguidores, o que demonstra o anseio da comunidade por representação nas redes sociais. Não só isso, como a plataforma ajuda pessoas a buscarem ajuda e receberem um diagnóstico. “Teve uma mulher que entrou em contato e disse que estava há mais de 30 anos tentando descobrir o que tinha, e foi só após ver um vídeo nosso e ir atrás [de um especialista] que ela conseguiu ser diagnosticada “, conta Larissa.
Não contém glúten
A partir da Lei 10.674 de 16 de maio de 2003, foi estabelecida a obrigatoriedade de informar nos rótulos de todos os produtos alimentícios a indicação “contém glúten” ou “não contém glúten”, com penalidades previstas em caso de descumprimento. Muitas vezes, o alimento na verdade não tem glúten na composição, mas precisa ser rotulado como se contivesse devido ao risco de contaminação cruzada durante a produção, seja por compartilhamento do ambiente ou maquinário.
A aveia, por exemplo, é um cereal naturalmente isento de glúten mas, na maioria das vezes, apresenta um risco muito alto de contaminação cruzada devido à plantação em rotação de cultura com outros cereais. As marcas de aveia garantidas sem glúten são vendidas por alto preço no mercado.
A Organização Mundial da Saúde considera que produtos com menos de 20 ppm (partes por milhão) de glúten são seguros para celíacos e essa é a referência que os países seguem nas legislações de rotulagem.
Em 2019, foi criado o projeto de rotulagem similar para todos os produtos industrializados. A Lei 487 é de extrema importância, uma vez que remédios podem conter glúten em sua composição (normalmente aparece como “amido modificado”, um componente não reagente). Não só isso, como também cosméticos, produtos labiais que podem ser ingeridos acidentalmente em pequenas quantidades e, principalmente, massas de modelar infantis, que apresentam riscos para crianças celíacas.
Doenças associadas
Além de muitas doenças autoimunes compartilharem a predisposição genética (principalmente do sistema HLA) com a DC, a presença de uma desordem autoimune torna o indivíduo mais vulnerável e suscetível a outras, por isso a DC é comumente associada a outras patologias. O hipotireoidismo, por exemplo, é quatro vezes mais comum entre indivíduos com DC do que entre a população geral.
Pelo mesmo motivo, a prevalência da DC entre indivíduos com Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1) é cerca de dez vezes superior à da população geral. Larissa, antes de ser diagnosticada com a DC, já tinha Hashimoto e Vitiligo, ambas doenças autoimunes. Após se descobrir celíaca, a jovem também recebeu o diagnóstico de DM1.
Estudos e avanços
Não há, atualmente, um tratamento para a doença além da DSG. No entanto, alguns estudos estão em andamento, com amplas abordagens: de imunoterapias (intenção de “reeducar” o sistema imunológico para que não reaja ao glúten) à vacinas (induzir resposta imune tolerante ao glúten) e novas medicações (que tratariam ou preveniriam a inflamação intestinal).
As pesquisas são demoradas por falta de investimentos das farmacêuticas, mas algumas já chegaram à etapa de testes clínicos com voluntários celíacos. Há esperança de que, no futuro, a dieta restritiva não seja a única opção para os celíacos.
Estratégias
O subdiagnóstico da DC já é considerado um problema de saúde global. Para melhorar esse quadro, existem algumas estratégias válidas, como a triagem pró-ativa em massa e a inclusão dos anticorpos indicadores em exames de sangue de rotina.
O diagnóstico precoce é muito importante, uma vez que quanto mais exposto ao glúten, mais danificado será o intestino e mais tempo levará para o intestino do celíaco melhorar após adesão à DSG. A ampla testagem em escala global permitiria melhor mapeamento de incidência da doença, melhores estatísticas e ajudaria na disseminação de informações.
A Itália, justamente por ter a culinária baseada em trigo, é um dos melhores destinos de viagem para celíacos. Isso se deve ao alto grau de informação, instrução e conscientização sobre a doença na população geral. O parlamento italiano aprovou, em setembro de 2023, um projeto de testagem em massa para rastrear a presença de DC e DM1 em todas as crianças de 1 a 17 anos no país. Com um investimento de quase quatro milhões de euros para o projeto em 2024 e 2025 e, a partir desse período, 2.85 milhões por ano, o governo pretende garantir o diagnóstico precoce para evitar danos irreversíveis a longo prazo.
De acordo com a estimativa mais recente da Italian Society of Gastroenterology, Hepatology and Pediatric Nutrition (SIGENP), uma em cada 60 crianças italianas é celíaca (prevalência de 1.65%), mas 60% permanece sem diagnóstico. Com um dos maiores índices de DC do mundo, o país lidera a medicina preventiva na população pediátrica e a aprovação do projeto foi unânime no parlamento.