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A lama permeia as relações em Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi

A chuva ameaça despencar do céu, e dois irmãos apressam-se para cavar na terra úmida uma cova para seu pai. Encontram um crânio em decomposição, que supõem ser de um escravo que tentou fugir anos atrás, e foi impedido por uma bala. “Isso resolve, então”, um deles conclui. “Não vou enterrar meu pai na cova …

A lama permeia as relações em Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi Leia mais »

A chuva ameaça despencar do céu, e dois irmãos apressam-se para cavar na terra úmida uma cova para seu pai. Encontram um crânio em decomposição, que supõem ser de um escravo que tentou fugir anos atrás, e foi impedido por uma bala. “Isso resolve, então”, um deles conclui. “Não vou enterrar meu pai na cova de um escravo”. Eis a primeira aparição – e também a última – dos três principais temas de Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi (Mudbound, 2017): a terra, a morte, o racismo.

(Os trechos desta resenha que contém spoilers estão borrados. Para exibí-los, é só clicar.)

Os irmãos são Jamie (Garrett Hedlund) e Henry McAllen (Jason Clarke). Jamie fora um dia estudante de teatro em Oxford, e mesmo após anos de experiências traumáticas preserva traços do charme e a afeição que nessa época exibia. Recém dispensado ex-piloto de caça da Segunda Guerra Mundial, carrega demônios desse período que apenas o tornam ainda mais deslocado da cena rural e arcaica do Mississipi, onde o enredo se aloja.

Henry, o irmão mais velho, não podia ser mais antagônico ao caçula. Não possui tão mais idade que Jamie, porém em seu rosto os anos parecem ser multiplicados pela frieza e a seriedade. Eles não trazem, porém, a sabedoria; é por sofrer um golpe que acaba trocando a charmosa casa de sua família na cidade grande por um barraco na zona mais isolada do interior do estado.

É então que as cenas urbanas, com sua arquitetura charmosa, suas vestimentas luxuosas e abundância de cores são trocadas pela paisagem pálida e lamacenta das fazendas do Mississipi. Os tons de marrom passam a dominar a fotografia, intensificando o teor desgastante e sufocante que o enredo toma. A escolha se relaciona intimamente e é quase que justificada com a fala inicial de uma das principais e mais complexas personagens do longa: a esposa de Henry, Laura McAllen.

Mudbound
“Quando eu penso na fazenda, penso na lama. Incrustada nos joelhos e cabelos, marchando em pegadas de bota pelo chão. Eu sonhava em marrom” (Divulgação)

Aos 31 anos e ainda uma virgem, Laura (Carey Mulligan) é apresentada a Henry pelos pais. Ela não o ama, mas é grata a ele – o primeiro homem a prestar atenção nela. Seu pedido de casamento é menos um pedido do que uma afirmação. Mesmo assim, ela se apega a vida doméstica e acredita realmente ser feliz na vida que ele a proporcionou. Isto muda, é claro, quando sua vivência urbana e culta é trocada pela terra, a precariedade e o tédio da fazenda.

A lama parece engolir a família, manchando quase que permanentemente a pele clara de Laura e das filhas, tingindo de marrom os sapatos e as bordas dos vestidos. No decorrer do longa torna-se cada vez mais difícil diferenciá-las visualmente do restante da população rural, que ali nasceu e outra realidade nunca conheceu. No entanto, mesmo estando também numa situação de quase-miséria, ainda se encontram no extremo mais privilegiado das relações sociais do campo. No menos privilegiado, está a outra família que protagoniza a obra: os Jackson.

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Hap e os dois filhos mais novos trabalham nas terras dos McAllen (Divulgação)

Com um filho que acabou de ir para a guerra, a fonte de renda da família é o trabalho braçal do pai, Hap (Rob Morgan), que cuida das terras que agora pertencem aos McAllen, ao mesmo tempo que junta o pouco dinheiro recebido para comprar um terreno para a mulher e filhos. A família, descendente de escravos, se vê tão presa e manipulada quanto seus ascendentes, tendo que ceder a todas as necessidades de Henry e Laura, deixando de lado interesses próprios.

A agonia de esperar pelo retorno do filho, sendo consolados apenas por cartas escritas por ele e que apenas Hap consegue ler, somado ao sufocamento de ter de trabalhar indefinidamente para os donos das terras onde os Jackson habitam, traz um grande peso para a rotina repetitiva da família. No entanto, é curioso notar que ainda sob estas condições o afeto nas relações entre os irmãos Jackson e entre seus pais é muito mais intenso do que se vê entre os McAllen. Essa diferença é clara quando se compara as interações entre Laura e Henry – reduzidas a conversas obrigatórias sobre a fazenda, os filhos, o dinheiro – e entre Hap e a esposa, que ainda mantêm o amor conjugal vivo.

Mary J. Blige, icônica cantora de hip-hop, interpreta Florence, a mãe da família. Extremamente dedicada aos filhos e ao marido, ela acaba se vendo lamentosamente na mesma situação de sua própria mãe, [spoiler]tornando-se a babá das filhas de Laura McAllen – situação em que jurou nunca estar.[/spoiler]

Embora Laura mais de uma vez tenha ido contra as vontades do marido para ajudar a família Jackson, a desigualdade de poder entre as duas famílias é gritante. A relação entre elas é puramente de trabalho – Henry exige, Laura pede, Hap e a família Jackson se desdobram para cumprir.

Até que Jamie e o filho mais velho dos Jackson, Ronsel (Jason Mitchell) retornam da guerra.

Atormentado pelos fantasmas de seu período como capitão das Forças Aéreas Americanas, Jamie agora encontra conforto na bebida, nas sobrinhas, e nas tímidas interações com Laura – ainda que poucas, são muito mais significantes que qualquer troca de palavras entre ela e o próprio marido. O homem que liderou soldados, viu amigos sucumbirem à ataques inimigos e causou a morte de um número desconhecido de civis e militares agora apenas perambula a cidade num estado quase que permanente bêbado, representando uma ameaça à reputação da família.

Já Ronsel, ex-sargento líder de tanques de guerra, deixou uma pequena cidade alemã onde era respeitado por seu status como soldado, e uma mulher que o amava. Ao chegar em sua cidade natal, é imediatamente recebido com ameaças racistas, olhares de julgamento e um regime de apartheid a todo vapor.

A amizade entre os dois inicia por uma identificação – compartilham os mesmos traumas, os mesmos fantasmas, o mesmo sentimento de isolamento e uma inusitada saudade da guerra. Ambos compartilham os diálogos de maior conteúdo e significância de todo o longa. No entanto, esta relação é constantemente ameaçada pela sociedade racista, conservadora e extremamente vigilante desta pequena cidade rural.

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Ronsel viaja com Jamie ocupando o banco de passageiro da caminhonete dos McAllen (Divulgação)

O enredo é extremamente complexo, sofrendo reviravolta pós reviravolta, preenchendo cada minuto das 2h14min pelas quais o filme se estende. Embora seja muito bem apoiado por atuações impecáveis, com destaque para Rob Morgan, Mary J. Blige, Carey Mulligan e Jason Mitchell, acaba se perdendo em sua própria complexidade. Certas problemáticas acabam sendo pouco exploradas, enquanto outras são inseridas de maneira desleixada e com pouca conexão com o restante do enredo. Embora os problemas de ambas as famílias pareçam nunca ter fim, piorando cada vez mais no decorrer do longa, a conclusão delas é inusitadamente otimista, mesmo que ligeiramente vaga.

O longa chega aos cinemas no dia 15 de fevereiro. Após sua temporada em cartaz, ele estará disponível na plataforma de streaming Netflix. Assista ao trailer:

por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com

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