A franquia Uma Noite de Crime já nasceu, em 2013, politizada. Relacionando temáticas da história e da atualidade estadunidense com a ação e o terror que o gênero pede, a ideia inicial conseguiu prolongar-se por quatro filmes – sendo, este último, um prelúdio, mas claramente pensado para ser o mais contemporâneo de todos. Em A Primeira Noite de Crime (The First Purge, 2018), o diretor Gerard Murray assume a franquia com mãos pesadas: de violência, de política, e de ideias mal concretizadas.
Construído a partir de um roteiro de James DeMonaco, diretor original da série de filmes, o mais recente longa conta o processo da idealização até a concretização da primeira “noite de crime” – um período noturno de doze horas em que todos os crimes são legalizados pelo governo. O cenário onde tal medida seria proposta é intrigante, e tenebrosamente familiar: a economia em colapso e um contingente populacional desesperado por emprego, comida e moradia, vivendo em sobrevida. A desesperança é generalizada, e frustração e raiva borbulham entre as classes empobrecidas, esquecidas pelo governo.
Surge, então, um novo partido, quebrando a dualidade entre os partidos republicano e democrático, que costumam se alternar no poder. Eis uma inteligente referência ao fenômeno dos outsiders: indivíduos e grupos que se apresentam como uma “alternativa” aos políticos tradicionais, aproveitando-se da opinião anti-política da população para construir uma base de apoio. Este é o NFFA (New Founding Fathers of America, ou “novos pais fundadores da América”), e é em seu regime que tudo virá a ocorrer.
Um parênteses: tal situação é cômoda. Já que um partido alternativo é o culpado por todas as atrocidades a seguir, os rótulos “republicano” e “democrata” não são mais mencionados, tornando o filme um pouco mais diplomático com públicos de ambos partidos.
A situação política apresentada é bastante similar à conjuntura que os EUA vivem atualmente, e também apresenta fenômenos que o mundo todo começa a sentir – a desilusão e o afastamento da política pela sociedade, bem como o surgimento de outsiders e uma inclinação crescente ao autoritarismo e à intolerância. No entanto, Murray começa a pesar a mão logo nesta abertura. O paralelo entre a conjuntura do filme e a vida real é traçado muito facilmente por qualquer um que esteja observando nossa realidade; porém, o longa parece sentir a necessidade de explicitar e reforçar tal relação a cada momento. Uma boa crítica torna-se forçada, apelativa. Em defesa do novo diretor, este erro é quase marca registrada da franquia. Noite de Crime poderia usufruir bem da subjetividade.
A ideia é atribuída a uma psicóloga comportamental, que vê como solução para a frustração e desesperança da população uma forma de “violência libertadora”, sancionada e mesmo incentivada pelo governo. Para ela, um momento em que o povo pudesse liberar sua raiva sem preocupar-se com punições poderia ser saudável, e amenizar as tensões no restante do ano.
Para o governo, isto cai como uma luva. Afinal, qual melhor maneira de controlar a pobreza do que deixar com que pobres matem uns aos outros? Obviamente, isto é dito sob palavras mais simpáticas: controle populacional, por exemplo. Para garantir o máximo de eficácia, ainda é instituído um sistema de recompensas para os participantes mais “ativos” na noite: cada crime equivale a uma quantia monetária, a ser dada ao criminoso.
A maior? Homicídio.
E, porque não é suficiente garantir assassinos, é preciso assegurar que hajam pessoas para serem mortas, quem ficar no local do experimento durante toda a noite, receberá US$ 5 mil. Para uma população que não sabe se passará fome no dia seguinte, é uma oferta inegável.
O experimento se passa em uma das vizinhanças mais empobrecidas de Staten Island, cujos habitantes são, quase em totalidade, negros e latinos. Foi uma escolha específica e planejada do governo – por razões que o longa reafirma, vezes o bastante para cansar. Muito por esta escolha, a maior parte do elenco principal é negro. Há três personagens relevantes brancos – todos com um grau de vilania. Há também um vilão negro, que acaba sendo um dos maiores erros do filme: extremamente caricato e unidimensional, sua presença em nada agrega ao enredo além de alguns jumpscares medianos.
Mas não é como se os outros personagens fossem tão melhores assim. Em sua grande maioria, são rasos e previsíveis, e, apesar de acompanharmos seu sofrimento e nos identificarmos com suas falas – por diversas vezes, parecem ser meras reproduções de discursos ideológicos mal inseridas, mas vez ou outra, são relevantes –, não constroem empatia ou impactam o suficiente para serem lembrados.
Ao longo do filme, as falas tornam-se secundárias, e as ações principais dos personagens são: correr, bater, matar. Algumas cenas conseguem impressionar, com um uso mais experimental dos movimentos de câmera, de efeitos visuais e cortes, mas acabam parecendo deslocadas em meio à imensidão de clichês de horror e ação que parecem afogar a trama.
A Primeira Noite de Crime te faz deixar o cinema com um profundo sentimento do que “poderia ter sido”. Poderia ter sido um bom filme, com críticas sociais bem colocadas e muito correspondentes à realidade, com um elenco de diversidade notável e muito potencial, e com momentos significativos de suspense e ação, e mesmo a violência, para corroborar a tese da “América caótica e brutal”. No entanto, não foi. Por tentar demais ser todas estas coisas, A Primeira Noite acaba não sendo nenhuma delas.
O longa estreia em 27 de setembro. Confira o trailer:
por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com