Por Bernardo Medeiros (bernardo10medeiros@usp.br)
Martina (Mercedes Morán) perdeu sua filha para os campos de concentração durante a ditadura militar argentina. Cinco décadas depois, ela procura o neto que nasceu e foi raptado durante o período repressivo. A Procura de Martina (La búsqueda de Martina, 2025) alterna entre os cenários portenhos e cariocas, criando um diálogo entre memória e esquecimento em uma aventura trágica. A trama da diretora Márcia Faria estreia nesta quinta (05) e ultrapassa a narrativa de resistência política, suscitando reflexões sobre uma outra morte: o apagamento.
Integrante das Avós da Praça de Maio, grupo político que procura os filhos dos militantes presos durante o regime discricionário, Martina recebe a notícia que o seu neto foi localizado no Rio de Janeiro. No entanto, a luta dela não é apenas política. Ela também batalha contra o Alzheimer, doença degenerativa que causa a perda gradual da memória. A trama se desenvolve com o difícil trabalho de conciliar a viagem à capital fluminense e a doença que piora a cada dia, sem nenhuma família próxima na Argentina ou no Brasil.
Às vezes cômica e outras vezes trágica, a obra remete à diversas reflexões sobre as ditaduras latinoamericanas e sobre o apagamento e esquecimento dos crimes cometidos durante o período. Mesmo não sendo perfeito tecnicamente, o longa é devastador e forte. Este consegue atingir em cheio um dos maiores temores psicológicos do ser humano: ser esquecido.

A crítica mais evidente do filme é política. A trama retoma a temática da ditadura, fazendo o que Ainda Estou Aqui (2024) fez para o cinema nacional. Mesmo assim, as referências ao período são sublimes, e a crítica mais pesada está nas entrelinhas do roteiro, desenhando o conflito principal do longa. Evidentemente, a ditadura argentina é posta mais em questão, no entanto, isso não significa que a ditadura brasileira consiga escapar do escopo da obra.
Na ditadura argentina, todos os torturadores e generais do baixo ao alto escalão que colaboraram com o sistema repressivo foram julgados e condenados. Já no Brasil, os crimes cometidos foram ignorados (e ainda são). Essa disparidade no tratamento dado por cada país se reflete na obra. Enquanto está na Argentina, Martina retêm parte de sua memória pessoal, ainda que fraca. Já no Brasil, os seus episódios de esquecimento se tornam mais frequentes. E é justamente no país que ela passa por um momento decisivo, que a faz esquecer, por completo, da morte de sua filha.
O paralelismo entre a experiência pessoal de Martina e a experiência política dos dois países é evidente: enquanto a Argentina preserva a memória da ditadura, o Brasil prefere esquecê-la. A própria trajetória do pai adotivo da criança raptada cria essa dicotomia: um general argentino que, embora fosse condecorado e reconhecido pelo seu trabalho no país natal, fugiu e preferiu o esquecimento e o “perdão” em terras brasileiras. As suas medalhas, que antes ocuparam um local de destaque no exército argentino, agora enfeitam uma parede nos subúrbios cariocas.

Mas a crítica principal talvez não seja a mais óbvia. A narrativa também lida com as memórias e o esquecimento de Martina com outros olhos. Ela, em muitos momentos, apenas reflete a irracionalidade materna, de quem faria qualquer coisa pela segurança e bem estar dos filhos. Ao mesmo tempo, ela possui uma luta própria e interna contra a doença que causa a degradação das suas células nervosas.
Essa luta é facilmente confundida como impaciência, especialmente no início da obra. No entanto, na verdade, essa é apenas o medo de se tornar muito tarde para resgatar o neto, por conta de todas as dificuldades que a sua doença implica. Para Martina, cada segundo que passa se torna pior, e ela tenta desviar a qualquer custo do preço final: esquecer que o neto existe.
Acompanhada de suas duas amigas, Rosa (Cristina Banegas) e Norma (Adriana Aizemberg), a luta e trajetória de Martina finalizam em uma história realmente fascinante. Obstinada e impertinente, ela batalha até o fim para encontrar o neto, encontrando a felicidade na sua própria determinação.

O encontro entre a pauta política e psicológica forma um filme arrebatador. Seja pela memória dos anos de chumbo ou pelo medo de esquecer — ou ser esquecido — o efeito final é de contemplação e arrebatamento. Enquanto os créditos descem ao som de “Oração ao Tempo”, do Caetano Veloso, o público fica com a impressão de ter visto uma história redonda, bonita e poderosa. A atuação de todas as atrizes merece destaque, mas especialmente Mercedes Morán e Carla Ribas (Hilda) fazem um ótimo trabalho melodramático, que pode pecar um pouco pelo exagero, mas nunca quebra a imersão.
De outro modo, o filme falha bastante nos aspectos técnicos. As tomadas são em sua maioria fechadas, o fundo geralmente é desfocado e os cortes são secos e rápidos. Todos esses elementos ajudam na construção da narrativa do filme, dando uma sensação de turbulência e vertigem, igualando o espectador e a personagem. Mesmo assim, o uso desses recursos repetidamente se torna cansativo e retira qualidade da fotografia.
Outra problemática é a duração do longa, de uma hora e vinte e sete minutos. O tempo é suficiente para fechar grande parte das histórias, mas ainda sobram pontas soltas. Por exemplo, Jéssica (Luciana Pais), concierge que ajudou Martina durante toda a sua estada no Brasil, sai da narrativa abruptamente. O filme conseguiria desenvolver esses sub-tramas com mais meia hora, ou mesmo vinte minutos de duração.

A Procura de Martina faz uma boa comparação entre memória e política. O longa consegue fazer uma análise conjunta, mas também explora os temas, especialmente a memória, de maneira individual. Limites técnicos e de duração infelizmente limitam a experiência, mas não a desconstrói completamente. Fazendo uma ponte entre a ditadura argentina e a ditadura brasileira, a obra traz mais perguntas do que respostas, mas consegue carregar uma mensagem importante para o público nacional: nunca esquecer.

A Procura de Martina já está disponível nos cinemas brasileiros. Confira o trailer:
*Imagem da capa: Leo Bittencourt/Divulgação