Por Marcelo Donegá (marcelo.henrique.souza@usp.br)
A minissérie britânica Adolescência liderou a audiência logo nas primeiras semanas. Ocupou o primeiro lugar por duas semanas consecutivas entre as atrações mais assistidas globalmente do catálogo da plataforma Netflix. No período, somou mais de 42 milhões de reproduções e 161 milhões de horas assistidas.
O mise-en-scène da trama conta com elementos marcantes, como a utilização do plano-sequência, filmagem de uma cena inteira sem cortes, que acompanha o personagem e a ação de forma contínua, segundo a Academia Internacional de Cinema. No entanto, não são apenas esses recursos audiovisuais que impulsionaram a audiência. A premissa da minissérie, centrada em um jovem de 13 anos acusado de assassinar uma colega da mesma idade, também chamou atenção.
O enredo gerou discussões nas redes sociais sobre os conflitos familiares da adolescência atual, bem como a influência de discursos misóginos em grupos virtuais para homens cis adolescentes.
A Manosfera
Esses discursos misóginos estão presentes em grupos da internet, como os chans, fóruns de discussão que contam com o anonimato dos membros. Muitos desses ambientes são facilitadores de ideias violentas e integram a manosfera, uma comunidade de grupos misóginos que veta a participação de mulheres e compartilha pensamentos machistas.
Entre os grupos da manosfera, destacam-se os red pill que defendem a importância de entender como as mulheres são manipuladoras, insensíveis e controladoras. O termo se inspira no filme Matrix (1999), em que o protagonista Neo tem a opção de ingerir uma pílula vermelha e, assim, enxergar a mediocridade do mundo.

Outro grupo dessa manosfera é o dos incels, abreviação de celibate involuntary (celibatários involuntários em inglês . De acordo com a Liga Anti- Difamação, trata-se de indivíduos que culpabilizam as mulheres por sua falta de sucesso romântico. O grupo alimenta ódio e amargura contra pessoas do sexo feminino,com o argumento de que elas se interessam apenas pelos ‘Chads, indivíduos sexualmente atraentes e ativos sexuais.
Além de responsabilizar as mulheres, os incels também culpam a própria aparência, família, tecnologia e “cultura moderna”. Essa aversão ao sexo feminino faz com que alguns integrantes desses chans se organizem para atacar e afrontar mulheres. Um dos casos foi o de Gabriela Santos, doula, trancista e criadora de conteúdo no Instagram e no X.
As vítimas
“Eu tinha uma página com um certo alcance no Twitter (atual X), e um adolescente de 19 anos me seguiu nessa rede. Ele era bem low profile, todo o conteúdo que ele seguia e comentava era de futebol, o seu maior ídolo era o Neymar.Eu tenho uma página profissional com meu número de telefone para contatar clientes. Ele descobriu essa página e , a partir disso, ele começou a me mandar mensagem. No início, comecei a desconversar educadamente, até um momento em que eu parei de responder.“ Gabriela relata que a partir desse momento o hater começou a ligar para ela o tempo todo e na mesma época, uma amiga que não quis se identificar teve suas fotos íntimas vazadas. A vítima entende que esse comportamento é típico de um incel eminício de formação.
“Eles fazem esse tipo de coisa porque se sentem respaldados. Se não houvesse outras pessoas agindo da mesma forma, eles não fariam. É esse discurso que vemos na internet dos incels e dos red pill. O cara precisa ir até o limite para se provar para o grupo, e isso é muito assustador.”
Gabriela Santos
Para a trancista, é evidente que os haters são parte de um grupo maior. Sua fala reforça a importância do grupo para os adolescentes e aponta para uma questão central: de que forma o cérebro adolescente é influenciado por discursos misóginos disseminados por grupos na internet?
O cérebro adolescente
De acordo com psiquiatra, professor e coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Neurociência do Desenvolvimento Afetivo e Social da Universidade Federal do ABC (UFABC), Claudinei Eduardo Biazoli Junior, a adolescência é uma fase de descobertas, marcada pela necessidade de pertencimento.
“A adolescência tem muito essa questão da indeterminação, dessa fase de se explorar e de explorar identidades. Antes, os adolescentes se dividiam em torno de gostos musicais. Hoje,a identidade sexual e política são pontos importantes de pertencimento. A cultura muda, mas o fenômeno de ser adolescente continua sempre o mesmo(…) O cérebro adolescente é propenso a fazer essas divisões [em grupos], pois a procura por seu um grupo é um traço marcante da adolescência”, afirma o cientista.

Para Claudinei, a busca por identidade, confusão dos adolescentes, impulsos e até mesmo a propensão à violência, em certos casos, podem ser explicados, em parte, pela plasticidade cerebral dessa faixa etária.
“É nesse período que as sinapses,pontos de contatos e comunicação entre os neurônios, são desfeitas e refeitas, o que muda significativamente a estrutura cerebral e sua estrutura de ligação entre as células. Em seguida, a ligação entre as células é eliminada e são feitas novas conexões, por meio do mecanismo de mielinização, que é a formação da bainha de mielina, uma capa protetora das células do sistema nervoso. Esse é um fenômeno clássico nos estudos sobre a adolescência e acontece claramente até por volta dos 21 anos de idade. Não é à toa que alguns definem o fim da adolescência aos 21”, explica o neurocientista.
“A puberdade é um momento marcante de mudança corporal, no qual os mecanismos de plasticidade cerebral se ampliam significativamente na adolescência. Nos primeiros anos de vida, há uma plasticidade enorme no cérebro, é quando os estímulos do ambiente interferem em como o cérebro funcionará. Isso explica, por exemplo, a razão de uma criança de 5 anos aprender uma segunda língua em pouco tempo. Mas, dos 7 anos até o início da puberdade, essa plasticidade diminui muito, conta Claudinei.
“ Ao chegar a puberdade, essa plasticidade se ‘abre’ novamente. E isso pode determinar o quanto o indivíduo ou organismo é influenciado pelo ambiente. Um adolescente inserido em um ambiente ruim pode ser desastroso”
Claudinei Eduardo Biazoli Júnior
“De tudo o que já vi e pesquisei, esse problema sempre tem origem em alguma questão familiar anterior. É sempre uma falta ou um excesso, de violência ou de presença. Sempre há algo que pode ter surgido no seio familiar. Deve ter faltado algo no passado do rapaz para ele não interpretar que não pode obrigar mulheres a se relacionarem com ele”, conta Gabriela Santos, vítima de perseguição virtual, que também se preocupa com essa questão do ambiente.