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A influência da literatura russa no cinema

Grandes autores russos promovem impacto direto e indireto nos valores e construções retratados em filmes
Por Rachel M. Mendes (rachelmmendes@usp.br)

Desde os primórdios da humanidade, movimentos artísticos exercem influência uns sobre os outros. Os limites de cada expressão de arte extravasam, unindo-se na representação da mentalidade de um período acerca de suas vivências e eventos de impacto. Em meio às transformações sociais e tecnológicas dos séculos 20 e 21, ideias já apresentadas pela literatura russa há aproximadamente dois séculos continuam a ser expressadas pelo cinema.

Em entrevista ao Cinéfilos, a escritora, tradutora e docente de literatura russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), Aurora Bernardini, afirma que os clássicos literários russos carregam em si valores e estilos de construção de trama e personagens distintos das demais literaturas. Por isso, no mundo ocidental, ela é considerada a mais importante escola literária do século 19.

As peculiaridades dos temas e estilos dessa literatura, concentrados em questões psicológicas e existenciais — abordadas, sobretudo, por meio do escritor Fiódor Dostoiévski — ganharam adaptações cinematográficas de obras como Noites Brancas (Editora 34, 1848) e Crime e Castigo (Editora 34, 1866). Além disso, impactaram produções filosóficas como o existencialismo e a psicanálise freudiana.

Quanto a essa última, Franthiesco Ballerini, escritor, jornalista e crítico de cinema, diz, em entrevista ao Cinéfilos, que as ideias do neurologista judeu Sigmund Freud inspiraram o movimento surrealista. O surrealismo não demorou para adentrar a indústria cinematográfica, que se inspirou no movimento artístico para construir principalmente a estética e o enredo das suas produções durante o século 20.

O longa-metragem dirigido por Luchino Visconti adaptou a obra clássica de Dostoiévski ‘Noites Brancas’ para o contexto italiano [Imagem: Reprodução/IMDb]

Características da literatura russa

Da esquerda para a direita: Fiódor Dostoiévski, Leo Tolstoi, Anton Tchekhov e Isaak Bábel [Imagens: Reprodução/Wikimedia Commons]

A literatura, de uma maneira geral, expressa valores sociais e individuais daqueles que as produzem. Aos autores russos, isso não é diferente. Aurora Bernardini, que traduziu a obra de Iuri Tyniánov, O Tenente Quetange (Editora 34, 1928), confirma: “O que caracteriza os ‘grandes russos’  é a preocupação, expressa pelos protagonistas de suas tramas, com os problemas fundamentais da humanidade.”

Alguns exemplos de questionamentos comuns abordados nos livros são: Para que existimos? O que restará de nós? O ser humano é fundamentalmente bom ou mau? Se Deus existe, por que criou um mundo tão injusto?

Segundo a especialista, o arco do protagonista russo percorre sua vida inteira, o que enfatiza suas respostas diante das reviravoltas do destino ao longo da trama. Devotos cristãos ortodoxos, Fiódor Dostoiévski e Leo Tolstoi demonstraram, em suas obras, diversas reflexões morais, como a possibilidade de redenção por meio do amor ao próximo.

A existência de um caminho redentor é apresentada como uma característica intrínseca dos clássicos russos. Ela é explorada por meio do trabalho compenetrado para o autor Anton Tchekhov e por meio da ação e da retribuição de justiça nos livros de Isaak Bábel, explica Bernardini.

Dentro do cinema

Para Franthiesco Ballerini, finalista do 60.º Prêmio Jabuti, a literatura sempre foi fonte de inspiração para o cinema. “Especialmente no começo, quando o cinema não tinha linguagem, as adaptações cinematográficas sempre foram muito comuns em todas as cinematografias do mundo inteiro”, diz.

A literatura russa possui dois canais para expressar seu impacto: diretamente, por meio de adaptações, e indiretamente, por meio de valores e construções típicas russas que aparecem nas telas ou de influências filosóficas abordadas nos enredos de filmes. Em relação à influência direta, Ballerini afirma que o cinema russo sempre adaptou obras como as de Dostoiévski e Tolstói, por exemplo.

Em escala mundial, há versões audiovisuais como o hollywoodiano Os Irmãos Karamazov (The Brothers Karamazov, 1958), de Richard Brooks,  que adapta a obra homônima de Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo (Prestuplênie i nakazánie, 1970), produção russa dividida em dois filmes e dirigida por Lev Kulidzhanov, e a adaptação de Hollywood do clássico de Leo Tolstói Guerra e Paz (War and Peace, 1956), dirigido por King Vidor e estrelado por Audrey Hepburn.

Audrey Hepburn como a personagem Natasha Rostova, de ‘Guerra e Paz’ [Imagem: Reprodução/IMDb]

Indiretamente, pode-se comparar e aludir filmes cujas tramas se concentram nas ações dos protagonistas diante do destino e sua imprevisibilidade, da possibilidade de redenção e da preocupação com problemas essenciais da humanidade. Essas características podem ser notadas em produções cinematográficas russas e globais.

“Os russos sempre tiveram uma aptidão por um cinema mais trágico, com um final não feliz e isso é muito parte da literatura”
Franthiesco Ballerini

Em análise mais profunda, a literatura russa — com destaque para Fiódor Dostoiévski, jornalista e escritor natural de Moscou — impactou a filosofia, que, por sua vez, impactou o cinema.

Ao considerar, em primeiro lugar, o existencialismo, a filósofa Sarah Bakewell, em sua obra No Café Existencialista (Companhia das Letras, 2017), apresenta títulos cinematográficos que geram angústia existencial e colocam o espectador para pensar e entender, na prática, o que dizia Sartre. Entre eles: Matrix (1999), Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) e O Show de Truman (Truman Show, 1998).

Em relação, agora, à psicanálise, Franthiesco Ballerini pensa que “Freud foi o grande influenciador do movimento surrealista, que fez cem anos no ano passado, com o Manifesto Surrealista de André Breton.”

Ao longo dos anos, outros diretores trabalharam com vertentes da psicanálise. Ballerini traz como exemplo o diretor David Lynch, influenciado pelo surrealismo no âmbito dos sonhos e seu poder. “O [David] Cronenberg também trabalhou muito isso” complementa. O jornalista também identifica em Matrix relação com as ideias de Freud ao tensionar o que é e o que não é real.

Em ‘Cidade dos Sonhos’ (Mulholland Drive, 2001), dirigido por David Lynch, nunca fica claro para o espectador o que é sonho e o que é realidade [Imagem: Reprodução/TMDb]

Quanto à obra cinematográfica de expressionismo alemão O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), Ballerini nota a influência psicanalítica nos conceitos de hipnose, consciência, inconsciente e autocontrole, especialmente ao levar em conta o contexto de destruição e pessimismo em que a Alemanha se encontrava.

“O expressionismo alemão faz parte das vanguardas europeias, das quais o surrealismo faz parte. Então, todas se comunicavam, se viam e se inspiravam muito naquele momento”, afirma.

O longa-metragem é emblemático no movimento expressionista e foi dirigido por Robert Wiene [Imagem: Reprodução/IMDb]

Em relação ao existencialismo e sua relação com Dostoiévski, Aurora Bernardini diz que outros autores russos contemporâneos analisam como a literatura clássica influenciou a filosofia. “Ele [Dostoiévski] dá importância às ações do ser humano para que elas modifiquem sua existência”, comenta ela. 

Para a professora, a discussão sobre a frase de Dostoiévski “Se Deus não existe, tudo é permitido” é um dos pivôs para essa corrente de pensamento. O filósofo Jean-Paul Sartre também é essencial nessa análise, já que ele interpretou o livro Memórias do Subsolo (Editora 34, 1864) como prelúdio do existencialismo ao defender essa filosofia como um novo humanismo. 

O primeiro embate entre Dostoiévski e o existencialismo se deu entre o homem do subsolo e Paul Hilbert, o protagonista de O muro (Nova Fronteira, 1936), de Sartre, e Antoine Roquentin de A náusea (Nova Fronteira, 1938), do mesmo autor.

“Roquentin sente-se sufocado pelas pessoas e sente náusea por tudo. Para ele, que propõe o culto da náusea ou do absurdo e que se declara não-humanista, o triunfo do humanismo é a inércia cega da consciência tribal universalizada.”, comenta Bernardini. A história de Hilbert foi adaptada para o cinema francês com a produção The Wall (Le Mur, 1967).

Entretanto, Aurora Bernardini afirma que a proposta de Dostoiévski se opõe à de Sartre por apoiar-se na lei da “vida viva”, em que ele propõe uma perspectiva de superação da filosofia individualista, analisando “o âmago do ser humano” e encontrando ‘‘o homem no homem”. A perspectiva do autor russo e do homem do subsolo aparece na produção cinematográfica Notas do Subsolo (Notes from Underground, 1995).

A adaptação cinematográfica de ‘Notas do Subsolo’ divide opiniões dos fãs da literatura russa quanto à qualidade da representação do existencialismo presente na obra original [Imagem: Reprodução/IMDb]

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