Por: Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Anora (2024) é a mais recente obra de Sean Baker, diretor norte-americano reconhecido por suas produções subversivas e esteticamente chamativas, como o sucesso Projeto Flórida (The Florida Project, 2017). Além dessa premiação de renome, o filme recebeu quatro indicações para o Gotham Awards 2024. A estreia internacional ocorreu no dia 18 de outubro, e a chegada antecipada na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo lotou múltiplas sessões de fãs brasileiros.A estreia nos cinemas nacionais, prevista para o final de outubro de 2024, foi adiada este janeiro, ação que pode ter sido pensada para se aproximar mais da data do Oscar.
Anora (Mikey Madison) protagoniza esse thriller cômico e maníaco, e garante um entretenimento (quase) interminável ao público. Madison vive uma stripper e prostituta que acredita ter encontrado o amor com um cliente recorrente, Ivan Zakharov (Mark Eidelshtein), um jovem russo vindo de uma família milionária que a apresenta para um estilo de vida que ela nunca vira antes. Durante o primeiro ato da obra, a relação dos dois rapidamente se intensifica, e em uma viagem impulsiva a Las Vegas, ele a pede em casamento.
Fascinada com a possibilidade de ascender socioeconomicamente e viver despreocupada com abundância, Anora aceita o pedido. Entretanto, o conto de fadas não dura muito tempo: a trama se desenrola quando ela descobre que os pais de Ivan não aprovam a relação e irão lutar por uma anulação do casamento — e que Ivan não é o garoto perfeito que aparentava ser.

Apesar de refletir a ingenuidade da protagonista, Baker vai muito além da premissa inicial do longa. Anora é uma mulher caricata: com uma personalidade forte, que garante diversos momentos de comédia, ela tem um comportamento autêntico, confrontando figuras de autoridade e lutando por seu espaço durante toda a obra.
Sua performance reflete a força física e mental que sustenta a energia vibrante e intensa do longa, mesmo nos momentos em que ela é dominada pelos homens poderosos que trabalham para a família Zakharov — e cumprem com êxito o papel de vilões desengonçados. Sem perder em nenhum momento a hilaridade dos diálogos e situações absurdas que acontecem entre eles, o longa insere com cautela momentos de catarse e reflexão, revelando as origens de classe que tornaram Anora quem ela é.
A temática da obra é recorrente em outros longas de Baker, como Tangerina (Tangerine, 2015) e Foguete Vermelho (Red Rocket, 2021): a vida de profissionais do sexo. Fugindo de abordagens mistificadoras e misóginas, o diretor sempre procura dar enfoque à desestigmatização deste trabalho, por meio da construção de personagens complexas, cujo ofício é apenas uma das facetas. Baker pontua intercessões muito importantes entre a vivência em condições de vulnerabilidade e o aspecto pessoal, emocional e relacional das personagens — e não faz diferente em Anora.

Entretanto, se afastando de produções anteriores do diretor, o carro chefe do lançamento é, definitivamente, o humor. Anora oficializa a entrada de Baker no cenário mainstream do cinema, com um orçamento muito maior do que projetos anteriores. O desejo de alcançar um público alvo mais amplo é perceptível, tanto na escolha do gênero cinematográfico como na construção mais dinâmica das cenas — filmes como Projeto Flórida e Foguete Vermelho possuíam um ritmo muito mais lento e gradual. A cinematografia fica sob responsabilidade de Drew Daniels, que cumpre com êxito essa transição estilística.
Apesar de sair de sua zona de conforto, o diretor se mantém fiel às ideologias que busca retratar, mesmo que através de lentes mais caras. É preciso muita sensibilidade para inserir as questões sociais da vida da protagonista sem perder o foco central da obra, e Baker cumpre essa tarefa com maestria. A exploração constante que tange a esfera sexual, financeira e mental da vida de Anora justifica a sua crença na falsa promessa de libertação.
Um ponto importante do longa é a apresentação do personagem Igor (Yuriy Borisov) no segundo ato. Carregada inicialmente pela comédia e pela raiva da protagonista, a relação dos dois ganha diferentes contornos ao longo do filme, e se torna um eixo importante para compreendê-la.
O terceiro ato, mais emocional e lento, nos remete às raízes do diretor, e promove uma quebra de expectativas que deixa o espectador com sentimentos conflitantes. Essa quebra revela de forma muito crua a fragilidade social e emocional da personagem, auxiliando o público a criar um senso de empatia ao sentir na pele a montanha-russa vivida por Anora.

A trilha sonora inclui músicas modernas que compõem perfeitamente o cenário almejado, nas grandes festas, stripclubs e cassinos de Vegas. A abundância e a libertinagem dos ambientes são transmitidas através do som, e garantem uma experiência muito mais imersiva ao espectador.
A coloração é outro elemento essencial para a atmosfera glamourosa e romantizada do primeiro ato da obra, cheia de glitter e luzes neon — assim como para a quebra dessa ilusão ao longo da continuação da história. Ryan Scott Fitzgerald, diretor de Arte da obra, realiza um trabalho de cores muito bem feito, sem perder em nenhum momento a estética marcante de Baker, caracterizada por belas paisagens e cenários mesmo em momentos de conflito.
A edição do filme foi feita pelo próprio diretor, uma escolha polêmica e notória em algumas cenas estendidas por tempo demais, o que dificulta a coesão no desenvolvimento da narrativa. Porém, não há grandes perdas para o conjunto da obra, e as expectativas para a indicação ao Oscar estão altas.

Vivaz, caótico, estressante, e secretamente encantador, Anora balanceia perfeitamente momentos de descontração e sensações profundas. O final pode te atingir como um soco no estômago, mas, acima de tudo, é difícil esquecer das boas risadas compartilhadas em uma sala de cinema.

O filme já está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer: